Espiritualidade

Do que eu preciso para viver?

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Por esses dias, quando noticiou-se a morte do rei Abdullah, da Arábia Saudita, chamou-me a atenção seu enterro. Ele, sendo um dos homens mais ricos do mundo, foi envolto em uma mortalha branca simples e enterrado num túmulo anônimo de um cemitério de Riad, junto a muitos de seus plebeus. Dentre as tradições islâmicas, segundo a escola wahabista do sunismo, que é a que predomina na Arábia Saudita, a ostentação pode ser considerada um pecado semelhante à idolatria.

Por aqui, onde a ostentação é cada vez mais falada, valorizada, invejada e muito mais, não encaramos tanto como problema, no geral, é mais uma amostra de sua suposta vitória, de suas conquistas, do “sucesso” alcançado. No meio cristão, há também uma versão disso, ora mais discreta, ora escancarada. Tem louvor ostentação, pastor ostentação, igreja ostentação, confissão ostentação e por aí vai. Alimenta orgulhos particulares, até coletivos, mas nem sempre vemos a sério a questão da idolatria, do quanto nosso coração se ilude com tais façanhas.

O ensino sobre os desafios de uma vida simples em pleno século XXI, por exemplo, é cada mais raro, inadequado, evitado. O glamour é disfarçado em nome de um discurso de que é para Deus, é reverência, e o luxo é a prática.

Esbanjar é visto, entre muitos cristãos, como um sinal de prosperidade, algo positivo. Ignora-se as necessidades da maioria da população brasileira, ou seja, da realidade ao nosso redor num mundo tão desigual.

Disputa-se glórias humanas racionalizando como honra ao servo do Senhor. Acreditamos que merecemos, gostamos de gente nos idolatrando de alguma maneira.

Queremos mais, e não menos. O desapego é difícil de exercitar, acabamos confiando em nossos recursos próprios e tentando nos proteger através deles.

Volto-me para Jesus, lembrando-me de quando ele enviou os doze apóstolos a pregar o Reino de Deus e a curar os enfermos. Ele disse: “Não levem nada pelo caminho: nem bordão, nem saco de viagem, nem pão, nem dinheiro, nem túnica extra” (Lc 9.3). Por que tamanha rigidez? Não seria falta de prudência? Excesso de singeleza?

Acho interessante tais instruções. Eles não precisavam acumular nada, necessitavam andar leve, sem maiores preocupações e empecilhos. Livres.

Como ouvimos isso hoje? Que espaço há para tais reflexões em nosso coração? Nosso contexto favorece um viver impulsionado a consumir sempre e mais, buscamos provar nossa capacidade e valor através do que conquistamos, portanto, atrai-nos uma vida abastada.

Não levar nada pelo caminho? Como poderia viver sem meu smartphone, bem como todos meus aparatos eletrônicos e tecnológicos? Ficar desconectado para muitos é não viver. Nosso caminho é repleto de estímulos “irresistíveis”. Andamos carregados, afinal, tudo passou a ser “necessidade”.

Num mundo de tantas inseguranças somos tentados a justificar ganâncias, articulamos como se fosse sabedoria. As coisas, o dinheiro, tomaram proporções enormes em nossa agenda interior, e aí parece que não podemos viver sem isso, ou aquilo.

Parece que os curados no Reino de Deus são pessoas simples, livres, que celebram a partilha das boas novas e do bem viver. O pouco não só é suficiente, como se torna muito, pode até ser repartido.

Nesse início de ano considerarmos mais profundamente possíveis idolatrias, nossas ostentações particulares e ver o que seria dispensável, pode abrir novos caminhos, novas escutas, novos espaços, nova disposição, e até mesmo, novas conversas. Que a novidade de vida nos alcance.

 

Linguagens da alma e a experiência com os Salmos (102)

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Sujeito te procura:

– por favor, você pode me ouvir?

– pois não…

– estou te procurando na esperança que meu grito de socorro seja percebido.

– pode falar.

– você não vai fugir?

– pode falar.

– você vai mesmo voltar seus ouvidos para mim?

– conte-me de você.

– meus dias estão desaparecendo diante de mim como fumaça e os meus ossos queimam como fogo. Meu coração está seco, totalmente seco. Não tenho apetite algum. Estou pele e osso e parece que é de tanto gemer. Além do mais, não durmo. A insônia me castiga há tempos. Pareço uma coruja, não consigo dormir, é horrível. Pareço um pássaro solitário no telhado. Sim, sinto-me só.

– e você não tem ninguém por perto?

– sim, tenho. Estou cercado de inimigos. Sofro bullying o tempo todo. É como se eu fosse um amaldiçoado que só recebe mais maldições.

– e sua alimentação?

– ah, como cinza, poeira, aí misturo com água, a água dos meus olhos e bebo.

– como é teu cotidiano?

– meus dias são uma escuridão que não para de crescer. Vivo na sombra. Sou como uma planta que vai murchando…

– você tem algum tipo de esperança?

– eu ainda espero em Deus, espero que ele se levante e aja com misericórdia. Eu vivo dizendo a ele que já é hora de ele mostrar compaixão, que aliás, está passando da hora. Acredito que ele pode reconstruir tudo. Que ele ouve a oração dos desamparados e que não despreza as súplicas desses.

– e você em relação a isso?

– eu penso em escrever a fim de que outros saibam. Para aqueles que vierem depois de mim tomem conhecimento disso. Já que meus dias são abreviados, que minha vida foi abatida no meio do caminho…

– você acha isso mesmo?

– Eu até pedi: “Ó meu Deus, não me leva no meio dos meus dias, ainda sou jovem para tanto. O Senhor vai durar pra sempre, mas eu tenho pouco tempo. Os teus dias não tem fim, as gerações vão passar e o Senhor continuará o mesmo, mas agora olha para essa geração.”

 

Essa poderia bem ser uma conversa entre você e o salmista, conforme se registra no Sl. 102. Com os salmos sabemos mais de nós, aprendemos a nos expressar melhor, e somos lembrados e desafiados a confiar em Deus. Leiamos e meditemos. Aproximemo-nos uns dos outros e de Deus.

Linguagens da alma e a experiência com os Salmos (121)

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Sinto-me apavorada. O entorno me assusta. Não sei o que poderei encontrar. Pode vir o perigo de qualquer lado. A tendência é eu ficar paralisada, completamente travada pelo pavor. O que será de mim?

Então levanto os meus olhos para os montes e me pergunto: de onde me virá o socorro?

Aí aparece uma resposta em mim que é certamente surpreendente: “O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra” (v.2). E é essa confiança que me faz entrar e sair, chegar e partir.

Alguém me olha, protege sem se distrair, cuida-me o tempo todo. Esse é Deus, que não precisa de sono, logo não dorme, vive em amoroso alerta.

Deus, o Eterno, é como uma sombra que protege. Não permitindo que o sol fira e nem a lua, a noite assombre. Ele que é e está faz-me seguir segura.

Já não importa se é dia ou se é noite, nele encontro abrigo e posso descansar tranquila. Peregrinando sigo.

 

Linguagens da alma e a experiência com os Salmos (139)

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No melhor dos meus sonhos está uma relação com alguém que conheça tudo a meu respeito, inteiramente.

Alguém que sabe quando estou trabalhando, e me olha ali. Mas também sabe e me vê enquanto descanso. Não só me respeita nesse tempo, como se alegra por mim. Zela por meu sono, pois assim, descanso até melhor.

Alguém que me conheça tanto que saiba até meu pensamento. Portanto, antes mesmo da palavra escapar por minha boca, esse alguém já a conheceria completamente. De longe e de perto a precisão é a mesma. Absolutamente.

Alguém que esteja comigo sempre, mesmo não se fazendo notar. Alguém que saiba comigo silenciar, saiba me calar e saiba falar ao meu coração, onde a razão é livre e o sentimento bem-vindo.

Alguém que seja poderoso para me proteger. Alguém que não me deixa fugir. Alguém que me guia enquanto perdida. Alguém que me dê a mão quando no sufoco me encontro. Alguém que me deixa voar sem me perder de vista, sem me deixar. Alguém que conheça meus mergulhos e me socorra quando já falta o ar. Enfim, alguém para quem não exista distância, embora haja espaço digno.

Alguém que me achasse mesmo quando considero que esteja na maior escuridão do mundo. Quando a alma, na noite escura, assustada e perto do esgotamento, simplesmente bloqueia, sem caber nenhum suspiro mais, esse alguém me alcançaria, me enxergando claramente, como o sol ao meio dia.

Que sonho é esse? Que desejo insaciável me acompanha! Impossível? É, esse alguém teria de ser onipotente, onisciente, onipresente.

Deus, assim se apresentas, e oferece tua relação. “Eu não consigo entender como tu me conheces tão bem; o teu conhecimento é profundo demais para mim” (v.6). Você que plasmou o meu interior, e me teceste no seio de minha mãe, conheces a sério a minha alma. Nada da minha substância escapava quando era formada no silêncio, tecida nas entranhas da vida humana. Mas ali estava tua mão artista. E assim tudo que fizeste foi maravilhoso, embora muitas vezes eu não reconheça bem e tenha dúvidas.

Minha vida não acabou, mas tu já conheces o fim dela. E do começo ao fim, nada lhe escapa, teu amor me cerca por todos os lados.

“Ó Deus, como é difícil entender os teus pensamentos! E eles são tantos! Se eu os contasse, seriam mais do que os grãos de areia. Quando acordo, ainda estou contigo” (vv.17-18).

Nessa vida, apesar disso tudo que me deste, que por mim fizeste, ainda vejo os maus. Falam mal de mim e de ti. Críticas, ódios, violências, inimizades. Enxergo isso neles, mas só vejo neles porque há isso tudo também em mim.

Ó Deus, examina-me, e tu que conheces o meu coração, mostra-o melhor a mim, dando-me provas de quem sou. Tu que vês tudo que há em mim, que conheces tão bem meus pensamentos, dirigi-me pelo caminho que leva a um viver pleno, mais consciente, mais grato, mais humilde, sobretudo, mais perto de ti.

 

Professores, alunos, estudantes e discípulos

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Dia 15 de outubro é tido como “Dia do Professor”, dia para se homenagear esses que se dispõem e/ou não viram outra saída a não ser exercer tal vocação (chamado inquieto e irrevogável), apesar de alguns ficarem apenas com a profissão. Esse dia já foi, mas dentro da margem de erro das pesquisas, ainda estamos em tempo. Aliás, sempre é tempo de homenagear e agradecer aqueles que nos ensinaram e ensinam, contribuíram para nossa formação, investiram em prol de nossa educação.

Penso que uma boa maneira de homenagear professores queridos, que nos marcaram positivamente, inspirando-nos a prosseguir no caminho da curiosidade, desejosos de saborear novos conhecimentos, pensar com maior profundidade e amplitude, compreender mais da vida, seja justamente considerarmos o quanto ainda queremos aprender e que tipo de estudantes somos hoje.

Gosto das reflexões a respeito das diferenças entre ser aluno e ser estudante que o admirável professor Thomaz Wood Jr. faz. Colocações que nos ajudam a distinguir entre um e outro, embora possam, à distância, se parecerem. Ele diz que aluno é aquele que atende regularmente a um curso, com a suposta finalidade de adquirir conhecimento ou ter direito a um título. Já o estudante é um ser que busca uma nova competência e pretende exercê-la, para o seu benefício e da sociedade. Enquanto o aluno recebe o estudante busca. Assim, pois, alunos entram e saem da sala de aula sem muito compromisso, e quando dentro, sentam e só aguardam que o show tenha início. Após 20 minutos, se tanto, vêm o tédio e o sono. Incapazes de se concentrar, eles espreguiçam e bocejam, para em seguida recorrerem ao celular, à internet e às mídias sociais. E o apelo é: procuram-se estudantes!

Não é difícil achar, inclusive nos seminários teológicos, nas Escolas Bíblicas Dominicais, nos bancos das igrejas e nos pequenos grupos a partir dela, alunos que agem como espectadores passivos, gente pouco interessada em ser agente do aprendizado e sedento discípulo de Jesus.

A boa notícia é que ensino de Jesus alcança acomodados, mas é tão provocador que fica difícil permanecer no mesmo estado. Jesus chama seus estudantes de discípulos, que no início estavam, talvez, mais para alunos. Contudo, andar com Jesus é ser desafiado continuamente a pensar e repensar, a praticar, a ver e conviver.

Em sua caminhada como fazedor de discípulos o Mestre Jesus amplia horizontes, desorganiza conteúdos acomodados, e ajuda seus seguidores a ver além.

Os saberes que vinham de Jesus carregavam frescor e novidade de vida. Era tão diferente que o povo ficava ora maravilhado, ora escandalizado, ora um pouco de tudo. Mas, multidões o procuravam e se aproximavam interessados em ouvir mais sobre aquele Reino que se anunciava.

Os relatos dos evangelhos estão cheios de exemplos do estilo do Mestre Jesus. Mas olhemos agora para um deles. Um relato conhecido e que se encontra nos quatro evangelhos (Mt 4.13-21; Mc 6.30-44; Lc 9.10-17 e Jo 6.1-15). Na narrativa segundo Lucas, os discípulos acabavam de voltar do envio missionário de Jesus, repletos de histórias sobre o que tinham feito. E o texto conta que Jesus os tomou para si e os levou consigo para outra cidade. Jesus privilegia pessoalidade, tempo a sós com eles, saídas didáticas e para refrigério. Mas, logo descobriram onde estava Jesus e uma multidão os cercou num lugar deserto. Parece que foram achados no meio do caminho e aí não tiveram mais sossego. Muitos com variados tipos de necessidades (físicas, emocionais, intelectuais, espirituais) e Jesus os acolheu bondosamente.

Ao fim da tarde os discípulos atentos sugeriram que a multidão fosse orientada a voltar para a casa ou ir aos campos vizinhos, ver se conseguiram alimento cada um para si. E aí vem Jesus com mais uma parte prática, um novo desafio, mais responsabilidades: “Deem-lhes vocês algo para comer” (Lc 9.13). E aí não puderam nem ir pela ideia que tiveram e nem tão somente assistir ao que Jesus faria. Eles tiveram que participar e assim foram verificar o que conseguiam, o que teriam, e aí apresentaram a Jesus os ínfimos recursos angariados. A partir daí vem a dica de organizar a multidão em grupos de cinquenta, e sim, o milagre, a multiplicação dos pães, com abundância.

A participação de estudantes/discípulos é fundamental para o nosso aprendizado. Os Doze certamente saíram daquele dia com algo mais do que euforia, saíram com um senso de cuidado ampliado.

Jesus é surpreendente em seu ensino e na maneira que faz discípulos. E nós podemos refletir a partir do que recebemos e acumulamos quanto nosso coração ainda é aprendiz, e, como a vida tem sido modificada na prática do ensino do Mestre.

Jesus ensinou pela maneira que viveu a fim de que nós seguíssemos seu exemplo e praticando descobríssemos uma felicidade única (Jo 13.15,17).

Que bom é na jornada encontrarmos bons professores, sobretudo aqueles professores que nos animam a prosseguir, dando testemunho e oferecendo a própria vida como exemplo de gente que busca ser discípulo de Cristo Jesus.

Apenas humanos

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A Bíblia é repleta de textos fascinantes, que nos impressionam por sua atualidade, por falarem tão profundamente de nossa humanidade. São trechos vivos, que nos provocam a refletir mais seriamente sobre a vida, nossas escolhas, e a estarmos atentos às tentações que nos cercam.

Por agora destaco uma parte da viagem missionária dos apóstolos Paulo e Barnabé em Listra (registrado por Lucas em Atos 14.8-15). O texto nos conta que lá havia um paralítico dos pés, aleijado desde que nasceu, nunca havia andado. Mas teve a oportunidade de ouvir Paulo e esse olhou diretamente para ele, viu nesse paralítico fé para ser curado, e assim, simplesmente disse para levantar e ficar em pé. O homem que vivia sentado, não apenas ficou em pé, ele deu um salto e começou a andar. E a multidão que ali estava para ouvir a Paulo ficou impressionadíssima e começou a gritar: “Os deuses desceram até nós em forma humana!” Culturalmente não seria a primeira vez, mas sempre um momento especial. E o que se faz diante de um deus? Oferece-se sacrifícios. Assim era entendido e assim começou-se a fazer. O sacerdote mais próximo começou a providenciar as oferendas rapidamente e agilizar outros a fim de que esses deuses fossem bem recebidos, adorados. E Barnabé e Paulo, ao entenderem do que se tratava, desejaram interromper aquilo tudo imediatamente, portanto, até rasgaram as roupas e procuraram gritar mais alto: “por que vocês estão fazendo isso? Nós também somos humanos como vocês… afastem-se dessas coisas vãs e se voltem para o Deus vivo”.

Hoje, encontramos com certa facilidade, líderes que ao contrário de Paulo e Barnabé buscam adoração, e olha que nem fazem muitos milagres! Mas desejam ter sua multidão particular de seguidores, de gente que os admirem, que se sacrifiquem por seus projetos pessoais, que confundam sua autoridade com a de Deus. Como é bom ser bajulado, solicitado, reverenciado, e esse gosto vai crescendo por dentro, até o sujeito achar natural que ele seja mesmo especial e notado por isso. Logo, não deve ser questionado, e discordar dele é como voltar-se contra Deus. Às vezes isso se dá de maneira sutil, lenta, mas exercer liderança é sempre correr esse risco, lidar com essa tentação.

Respeitados líderes e alguns mestres já nos alertaram. Clodovis Boff nos lembra que o poder humano está marcado pela concupiscência. Richard Foster comenta que “o casamento entre o orgulho e o poder leva-nos à beira do demoníaco”. Thomas Merton afirma sobre a necessidade de “sermos salvos do abismo de confusão e de absurdo que é o nosso próprio ser mundano. A pessoa tem de ser salva do indivíduo… ser libertado do ego esbanjador, hedonista e destruidor, que procura apenas cobrir-se com disfarces”. James Houston esclarece que “o narcisismo espiritual significa assumir a responsabilidade pessoal de ser seu próprio Salvador, de ser a força que move e molda a própria espiritualidade”.

Aprecio a ênfase de Paulo, salientando: “nós também somos humanos como vocês”. Parece que nosso tempo incentiva cada vez mais o cuidado vaidoso com a imagem que é o que se sobressai, embolado na igreja com um valorizado ativismo, resultando num afastamento natural daqueles que estão ao redor. Não há tempo para discipulado, mas há instantes para alimentar os fãs. Não há investimento na intimidade, no aprofundamento dos relacionamentos fraternos, mas há vitrines nos congressos que são concorridas, espaços nas mídias, e assim nos distanciamos do contato com a realidade, com a nossa humanidade pouco conhecida, quase nunca assumida.

Nos perdemos, ou no mínimo, nos distraímos com coisas vãs, com o supérfluo na caminhada cristã, não permitindo que o evangelho de Jesus Cristo arranque nossas máscaras, revele-nos quem de fato somos em nosso íntimo.

A preocupação com a popularidade parece maior do que o cuidado com a interioridade. Desprezamos o tempo de silêncio, banalizamos relacionamentos próximos, pessoalidade verdadeira, vínculos que exigem atenção e dedicação.

Há poucos interessados em conhecer de onde vêm suas dores, preferem apenas aplacar os sintomas como insônia, ansiedade, depressão, etc. Esconde-se fragilidades, e ignora-se sinais de que algo não vai bem do lado de dentro.

A comunhão genuína pode descortinar embaraços, nos ajudar a nomear inquietações, a confessar um narcisismo que não conhece freios. Permitir que outros se aproximem da gente como realmente somos e não como deveríamos ou gostaríamos de ser, é muito proveitoso, libertador, potencialmente curador. Podemos encontrar consolo e encorajamento, ajuda para voltarmos ao essencial, voltarmo-nos ao Deus vivo que tão bem nos conhece.

Pensamento mágico

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Nessas últimas semanas nosso país respirou Copa do Mundo, e desde nossa derrota para a Alemanha, que nos tirou da final, vimos uma enxurrada de comentários, críticas, muita piada, gente frustrada, lamentos por todo o canto, lágrimas, enfim, um tanto de brasilidade diante da derrota, nosso jeito de encarar beleza e tragédia.

A jornalista Eliane Brum escreveu (no jornal Folha de São Paulo – 11/07/2014) o seguinte: “Essa foi a seleção do pensamento mágico. Age-se como se houvesse uma predestinação. Se você acreditar muito, você consegue. Se você rezar muito, acontece. A arrogância enorme de achar que ‘deus’ é torcedor do seu time porque você é o mais merecedor expressa nas cenas de joelhos dentro do campo, os dedos apontando para o céu, a oração em transe nos momentos-limite. Só que acreditar não foi o suficiente para fazer acontecer. A realidade deu de goleada.”

Chamou-me a atenção o quanto esse pensamento mágico está por toda parte hoje em dia. Essa espécie de pensamento ilusório do tipo onipotente, infantilizado, crente de que apenas a força do pensamento seria capaz de reverter uma narrativa ou mudar um desfecho. E mesmo, o quanto hoje a oração, para muitos, não passa de um exercício supersticioso, um pensamento mágico, onde fé e pensamento positivo se misturam ou são praticamente a mesma coisa.

Parece que vivemos tempos confusos, onde as definições que ainda sobrevivem são pouco consistentes, fechadas ao diálogo, a agressividade na crítica tornou-se comum, e tudo é rápido e ralo. Lembro-me de Enrique Rojas, décadas atrás, dizendo: “Assim como nos últimos anos entraram em moda certos produtos light – o cigarro, algumas bebidas ou certos alimentos -, também foi sendo gerado um tipo de homem que poderia ser qualificado de homem light. Qual é o seu perfil psicológico? Como poderia ser definido? Trata-se de um homem relativamente bem-informado, mas de escassa educação humanista. Tudo lhe interessa, mas de forma superficial; não é capaz de fazer uma síntese daquilo que percebe e, como consequência, se converte numa pessoa trivial, superficial, frívola, que aceita tudo, mas que carece de critérios sólidos em sua conduta. Tudo nele se torna etéreo, leve, volátil, banal, permissivo”.

Nem tudo precisa ser denso, sério, perfeitamente elaborado, prolongado, mas, acentua-se o fato de que temos opinião pra tudo, mas nada sólido. Apenas um tanto de amargura que solta-se facilmente pela língua, e em tempos digitais – dedos, afiados. E no mundo religioso, dito cristão, parece que não é tão diferente. Uma espécie de “cristão light”, onde oração e fé, num país já bastante místico, têm um pouco de tudo e quase nada.

É interessante retomar a Thomas Merton que dizia que “como o homem é, assim ele ora. É pelo modo de falarmos a Deus que nós nos fazemos aquilo que somos. O homem que não ora jamais, é alguém que tentou fugir de si mesmo, porque fugiu de Deus”.

Desconfio que por não sabermos e não desejarmos orar, descobrimos conveniente fuga, vivendo como sujeitos light. Acrescido de pouco conhecimento bíblico, a vivência é ainda mais pobre, confusa e então, o vale tudo aparece, a superficialidade cresce, e o pensamento mágico domina.

Quero tempo para entender, calma para refletir, disciplina para estudar, empatia para ouvir, reverência para dialogar, silêncio para concluir.

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