Espiritualidade

Vencer ou Vem ser – um chamado para a vida

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Nós gostamos dessa ideia de que nascemos para vencer. Histórias de superação nos encantam. Um discurso que fale de vitórias na vida nos atrai. Entretanto, quais vitórias, ou, do que se fala quando nos dizem sobre vitória?

Bom êxito no viver, sim, o que seria viver bem? Como isso é compreendido num contexto onde impera o capitalismo senão uma vida farta, muito acúmulo de bens, segurança material?! Triunfar é ter sucesso, e também isto é compreendido, ao menos em boa parte, como conquistar fama, admiração, ou seja, lutamos para sermos reconhecidos, de preferência por termos uma vida brilhante. Ser um destaque, ser muito bom, superior em alguma área. Queremos um espaço na galeria dos que sobressaíram e foram condecorados, afinal, hoje em dia só é considerado vitória se houver aplausos, seguidores, comentários, curtidas, etc. Eu vencer e ninguém ficar sabendo não é mais suficiente. A validação da plateia é o que buscamos incansavelmente.

Numa sociedade assim o medo do fracasso cresce cada vez mais. Passar pela vida desapercebido? Muitos vão se desesperando ao ver o tempo passar e a ilusões não serem satisfeitas, outros estão cansados e oprimidos, na marcha depressiva dos desistentes.

Cada vez mais me parece que estamos sensíveis a qualquer fracasso, a paúra de se encontrar entre os perdedores, seja em que área for. E a derrota nem precisa ser definitiva, basta ser a de um dia para nos derrubar. Alguns se recuperam, outros se veem fora, abatidos, procurando voltar para a casa que eles já nem possuem. Há falta de um lugar para serem acolhidos, compreendidos em suas dores, acalentados.

Ao olhar para tal situação cresce em mim a força de um encontro, relatado por um médico, chamado Lucas. Sim, aquele que escreveu um dos evangelhos. Conta de um pescador abatido, desanimado, com o gosto amargo do fracasso, pois, havia se esforçado a noite inteira e não pegou nada. Só lhe restava lavar as redes e esperar por melhor sorte noutro dia.

A este Jesus diz: “Vá para onde as águas são mais fundas” (Lc 5.4). Jesus insiste para que volte ao lago e ouse mais. Desafia-o a fazer nova tentativa, só que não da mesma forma, agora, em águas mais fundas. Que pescador que não sabe disso? Contudo, que pescador cansado e que já passou toda uma noite tentando ainda tem coragem e fôlego?

A resposta do pescador esforçado e derrotado é: “porque és tu quem está dizendo isto, vou lançar as redes” (Lc 5.5). É alguém que apesar de todo esforço em vão ainda se permite nova tentativa. É alguém ainda capaz de ouvir, capaz de respeitar a voz de alguém especial, capaz de acreditar na autoridade daquele que fascinava multidões por falar a palavra de Deus.

Relata-se, então, a surpresa do conhecedor daquelas águas. Um experiente pescador que ousa ir às aguas mais profundas para em seguida ver suas redes rompendo de tantos peixes. Um homem que rapidamente sai da derrota para a inesperada vitória abundante. E isso não seria suficiente? Haveria espaço para algo mais? As águas profundas não tinham sido alcançadas, a obediência se dado e o resultado positivo obtido? Já poderia se encerrar a história, o final feliz estava pronto.

O pescador estava assustado com tamanho imprevisto. Era bom, mas era muito. Sentiu-se constrangido. Pediu para que Jesus se afastasse. E a resposta de Jesus é: “Não tenha medo; de agora em diante você será pescador de homens” (Lc 5.10). Assim, Jesus chama a uma vida que é paradoxalmente parecida e diferente. A semelhança é que ele continuará a ser pescador, mas, não um pescador comum, agora, pescador de gente.

Jesus convida-nos a ser. Penso que essa é a melhor vitória – a de que podemos viver para aquilo que fomos chamados a ser. Não se trata uma vitória que necessariamente ganhará manchetes, que atrairá os holofotes da vida, mas de um viver onde a realização se dá em águas mais profundas.

Para aquele pescador uma revolução acabara de acontecer. Mais do que aquele resultado exterior, há um resultado interior – um chamado a ser diferente. Em sua singularidade ele poderia agora descobrir o que seria ser pescador de gente. E ao reler sua história na Bíblia vemos o quão significativo foi aquele pescador ter ouvido aquele chamado.

Mais do que se preocupar com o êxito com aquilo que se faz, embora isso possa ter certa legitimidade, não necessariamente prioridade, trata-se de atentar para quem se é. Não ceder a pressão da correnteza que nos sugere forçar algumas proezas, falsas ou ilusórias vitórias. Correr atrás do vento pode ser divertido por um tempo, mas, tem o seu limite. Não preenche, não colabora para a identidade. Ouvir a Jesus é ser desafiado a algo novo. E dentre algumas implicações, talvez, seja preciso abandonar redes que já são familiares, abandonar velho hábitos, se aventurar e confiar naquele que chama-nos a uma nova vida. Quem vai ouvi-lo hoje?

Gritos de hoje, de ontem e…

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Nessa semana, andando pela cidade de São Paulo, paro num semáforo. Enquanto olho para o sinal vermelho ouço palavras misturadas e gritadas, e do que consigo entender, frases soltas se repetem: “De tanto medo de morrer fiquei com medo de viver. Eu quero minha alma de volta. Devolvam minha alma”.

Olhei pelo canto do olho e vi que se tratava de um senhor, talvez por volta de seus 50 e poucos anos, maltrapilho, desses homens de rua que cruzamos o tempo todo, e de tanto encontrá-los vamos ficando indiferentes. Ignoramos, em geral, suas solicitações, suas condições, e irritados e/ou assustados, nos afastamos.

Contudo, aquela fala ficou ecoando em mim. Em meio às suas perturbações psicológicas aquele homem tinha uma lucidez estranha de sua situação, uma vez que lucidez encontra-se quase em extinção. Ele, com um rádio antigo na mão e um pedaço curto de pau (simbolizando um microfone), gritava sua angústia e repartia sua realidade.

Por um lado pergunto-me: quem ouve esse gemido? Andamos tão apressados, tão ensimesmados que gritos de fora somam-se aos gritos de dentro e, por não aguentarmos tanto ruído, nos perdemos em afazeres sem fim.

Por outro lado, penso que aquela aflição, gritada em desespero, retrata a nossa realidade. Assim como aquele homem, já com pouca ou nenhuma referência de sua própria dignidade, ora se perde em pensamentos desconexos, ora compreende e coloca acertadamente em palavras o que se passa do lado de dentro. Alguns poucos conseguem expressar-se tão verdadeiramente bem, assumindo seus medos e consequências, repartindo suas fragilidades e expondo debilidades. Muitos escondem-se atrás de máscaras, funcionam bancando aparência de fortaleza e sabedoria, mas, sofrendo horrores que não nomeiam. Optam pelo orgulho de manter-se em pé, mas interiormente estão prostrados pelo medo, onde a alma perdeu-se.

Os evangelhos registram a história de um homem de rua, um cego, que vivia à beira do caminho. Limitado por suas condições, pedia esmolas. Essa era sua vida, assumir suas limitações e brigar por ela.  Mas, certo dia, começou também a gritar. Seu grito não foi ignorado. Entretanto, para a maioria o incômodo era pior do que suas condições, então, o mandavam se calar. Mas, ele não só insistia como começou a gritar mais alto ainda: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim!” (Mc 10.48). Jesus, que por ali passava, parou e pediu para o chamarem. E assim que ele se aproximou Jesus lhe pergunta: “O que você quer que eu lhe faça?”. Não era evidente? Por que essa pergunta? É impressionante o número de coisas supostamente sabidas, mas pouco assumidas. Em nós, seres de desejos e de gula, fica confuso o que realmente queremos ao gritarmos, e até mesmo o que queremos de Deus.

Nós, não pouca vezes, achamo-nos organizados, bons em articulações, fazendo ligações aqui e ali, associações variadas, pronunciando-nos sobre tantos assuntos até com alguma distinção e clareza, porém, cegos para nossa real necessidade.

O cego que buscou Jesus respondeu: “Mestre, eu quero ver!” (Mc 10.51). Ele não pediu para ter um dia de boas esmolas, não pediu para ter um bom cão-guia, não pediu para desfrutar de uma refeição única, enfim, não desperdiçou a oportunidade.  Era cego, mas não era estúpido. E a pergunta de Jesus o ajudou a ter consciência clara de sua necessidade prioritária. Sim, boas perguntas podem nos provocar e nos organizar interiormente.

Aquele homem foi atendido em seu gemido. O homem que encontrei essa semana não sei se já foi. Mas pedi a Deus por ele, pedi a Deus por mim. Ele me ajudou a lembrar de angústias não nomeadas, de medos devastadores, de não perder a alma em meio à confusão, de minha própria cegueira. Então, também clamei…“Filho de Davi, tem misericórdia de mim, tem misericórdia daqueles que dão seu jeito de serem ouvidos e não desistem mesmo quando reprimidos e discriminados, tem misericórdia dos corajosos que se apresentam!”

E é bom saber que Jesus nos ouve, nos chama, mas, o que já discernimos da vida?

Teologia do Quartinho

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O que nunca foi simples parece estar ainda mais complicado, consideremos as relações entre verdade e mentira, ficção e realidade, essência e aparência.

O que caracteriza nossa vida no século XXI? Vertiginosos processos de espetacularização do nosso mundo, onde apenas o que causa sensação é percebido e valorizado, ou seja, experiência e intensidade são palavras chaves em nosso tempo.

Vivemos dias onde tudo o que não causa impacto em nossas sensações tende a desaparecer rapidamente no fluxo de informações, apesar, claro, de que aquilo que nos causa sensações fortes também desaparecerá em breve período, mas ao menos deixa marcas. O que quero destacar é o quanto vamos nos tornando viciados em injeções de sensações que agudizam nosso sistema nervoso, favorecendo assim, um jeito de ser que depende de sequências de instantes que nos joguem na vida como montanha russa permanente.

Dentre as sensações mais buscadas está o de ser visto, admirado, seguido (criar tendência e espalhá-las com agilidade porque logo se esvai, tudo é muito efêmero – sensação é vapor).

No regime ditatorial da espetacularização da vida crescem novas construções identitárias, onde valho quanto causo (provoco sensações nos que me cercam), sou quando sou percebida (necessidade de destaque na vitrine da vida).

Há sempre muito mais nos obscuros meandros de nossa alma, e quão pouco ainda sabemos da bagagem enigmática que carregamos. Mas, algumas coisas carregamos há muito, constitui-nos como humanidade caída.

A questão de exibirmo-nos, de sermos validados pelo outro, de desejarmos ser não apenas aprovados, mas admirados é grande desde sempre. E isso aparece inclusive no âmbito da espiritualidade.

Ao mesmo tempo que queremos novidades (novas e mais intensas sensações), trazemos desejos antigos, que nos confundem e nos empurram a práticas já conhecidas.

Aprecio sempre como as palavras de Jesus são atuais. Como profundo conhecedor de nossa alma carente, de nossos desvios e labirintos interiores, ele adianta e revela comportamentos mascarados, mas que achamos que nunca ninguém descobriria o que estava por detrás – achamo-nos convincentes.

Assim diz Jesus: “Quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas. Eles gostam de ficar orando em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos outros” (Mt 6.5). Jesus, firmemente, denuncia a hipocrisia na espiritualidade. Quem de nós escapa?

A oração é um convite desafiador para o desvendamento de própria alma, sempre surpreendente. Contudo, até a oração pode ser instrumento fundamental em meu jogo de cena na espetacularização da espiritualidade, uma maneira de esmolarmos atenção e reconhecimento, provocando sensações diversas em mim e no outro.

Jesus instrui seus discípulos dizendo: “mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está sem secreto” (Mt 6.6).

Nós vivemos num tempo onde a tentação é abrir a porta do quarto e nos mostrarmo-nos – exibicionismo de intimidade perdida. É muito contracultura o que Jesus nos pede. É estranho a nossa alma, afinal, vida privada é algo que está em desuso, intimidade é algo desconhecido e deturpado (novas construções vem por aí?), e discrição é cada vez mais difícil de se viver.

Fechar a porta é um trabalho árduo e que não nos chama a atenção por ir na contramão do que tem sido mais valorizado, nada glamoroso, então, quem vai atender a tal pedido e aprender essa nova forma de ser?

Buscamos compensar nossas inseguranças quanto ao nosso valor e identidade com frenesis espetaculares, fantasias grandiosas que denunciam a deficiência de valor e significado.

Não ser hipócrita, não enganar o outro e nem a si mesmo é deslocar-se do palco para a coxia, para os bastidores. Encarar a vida a partir de quem se é, não de quem se desejaria ser. É fechar as cortinas, olhar no espelho, arrancar máscaras e maquiagens e ver quem de fato somos. Não precisamos ter medo, pois Jesus nos lembra, temos um Pai que nos vê em secreto, ou seja, para Deus não será novidade, talvez, sejamos novidade apenas para nós mesmos (e, quem sabe, para alguns diante de quem ainda sustentamos máscaras e vivemos papéis decorados, conforme manda o script).

O Pai que nos vê como somos, conhece nossas reais necessidades (Mt 6.8),e cuidará de nós. Crer nisso pode ser o início de uma caminhada nova e profunda, num caminho estreito, é fato, onde poucos seguem. Mas abandonar tendências, fugir de tais tentações, não viver por meras sensações, exigem a coragem de fechar a porta do quarto e ser tratado num genuíno espaço de oração. Quem quer assim ser trabalhado?

Fé em ação

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Como é triste sentir-se perseguido, perceber conspirações contra si, reconhecer inimigos tão perto, conviver com agressores, receber ataques, viver ameaçado.

Davi ao se ver nessa situação clama: “Levanta-te para ajudar-me; olha para a situação em que me encontro!” (Sl 59.4b). Ele suplica confiante em Deus: “Ó tu, minha força, por ti vou aguardar; tu, ó Deus, és o meu alto refúgio. O meu Deus fiel virá ao meu encontro.” (Sl 59. 9-10).

É bonito ler na Bíblia como alguém que se vê correndo tão séria e explicitamente risco de vida, rodeado de gente que rosna como cães bravos, é capaz de assegurar-se tão fortemente em Deus, convicto de que o amor de Deus é infalível e que aparece na hora certa o socorro.

É claro que ele deseja que seus inimigos desapareçam, mas, não antes de serem apanhados em seu orgulho, serem feridos pela própria língua malignas deles, serem derrubados pela justiça.

O olhar de Davi enxerga adversários insaciáveis, mas vê também e maior a fidelidade de Deus e sua força. E sabe que cantará e celebrará as façanhas de Deus – sempre presente em tempos ruins, estranhos e esgotantes.

Ao mesmo tempo que Davi vê o ódio de seus inimigos, vê também o amor de Deus, onde ele pode se abrigar, ficar seguro, e descansar. Ele diz: “Tu és o meu alto refúgio, abrigo seguro nos tempos difíceis. Ó minha força, canto louvores a ti; tu és, ó Deus, o meu alto refúgio, o Deus que me ama” (Sl 59.16-17).

A vida é reorientada e reconfortada a partir da fé em Deus. A esperança é renovada com essa fé. E a certeza e total segurança num Deus pessoal que o ama faz ele prosseguir e enfrentar os dias.

Thomas Merton afirma que “não somos perfeitamente livres enquanto não vivemos de pura esperança. Sem esperança, a nossa fé só nos dá distantes relações com Deus. Sem amor e esperança, a fé só O conhece como a um estranho. Pois a esperança é que nos joga nos braços da Sua misericórdia e da Sua providência. Se esperamos em Deus, não nos limitaremos a saber que Ele é bom, mas experimentaremos em nossa vida a Sua misericórdia”.

Esperar em Deus, contudo, não é sinônimo de passividade. Esse salmo que Davi escreve se dá no contexto em que Saul envia homens para vigiarem a casa de Davi a fim de matá-lo, pois, naquele mesmo dia, antes de anoitecer, ele já havia escapado por um triz de uma lança contra ele. Já em casa, é Mical, sua esposa, que o alerta: “Se você não fugir esta noite para salvar sua vida, amanhã estará morto” (I Sm 19.11). Ela, então, fez Davi descer por uma janela a fim de que fugisse. E enquanto ele fugia ela montou um esquema criativo para despistar os guardas e ganhar tempo a favor de Davi.

Acho interessante como a inteligência e perspicácia de Mical foi importante nesse episódio e como Davi reconhece isso tudo como ação do amor de Deus, que dele cuida em todo tempo. Sim, Deus cuida e o faz, muitas vezes, através de pessoas. E aproveita, utiliza-se da inteligência, sensibilidade e agudeza de espírito de pessoas que nos cercam.

Voltando a Merton, ele diz: “a esperança esvazia-nos as mãos para que possamos trabalhar com elas. (…) Se Deus é bom e se a minha inteligência é uma dádiva Sua, o meu dever é mostrar, pela inteligência, a minha confiança na Sua bondade. Devo deixar a fé elevar, curar e transformar a luz da minha mente”.

O amor de Deus não negligencia as dádivas, capacidades, características que ele mesmo nos deu. Podemos desenvolver-nos com esperança, fé e amor em Deus, participativos dos livramentos que Ele promove.

Saibamos ouvir, agir, repartir sobre o que Deus faz, reconhecendo-o em todos os nossos caminhos.

Nossa história, nossos tempos, nossos movimentos

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Quem não conhece as palavras de Jesus: “No mundo tereis aflições” (Jo 16.33)? Quem não se angustia a ouvir e ler os jornais? Quem no momento não conhece alguém, mais de perto, que esteja passando por duras lutas?

Como isso nos afeta? Que efeitos traz para os de perto e os de longe? Qual o nível de tolerância de cada um? Quem persevera? Até quando, onde?

Lembro-me de Jules Michelet ao dizer: “O difícil não é subir; é, depois de ter subido, continuar sendo o mesmo”.

Tempos difíceis é da vida. Faz parte do que acontece na terra dos viventes. Mas o que fica, após um tempo onde as dificuldades parecem fortes demais, e ainda se multiplicam?

Uma das reações comuns é que começamos a lembrar e valorizar os tempos mais tranquilos, dias ensolarados, festivos, onde o riso vinha fácil, onde a saúde nem era lembrada por estar boa demais, onde a mesa era farta e as águas serenas. Mas, nem sempre.

É frequente nessa ocasião lembrarmo-nos do bom que havíamos esquecido, quase apagado. Porém, isso salienta negligências e ignorâncias do cotidiano. A dor tem o potencial de nos chamar atenção para coisas, pessoas, situações que antes não víamos, não reconhecíamos, é como se alimentássemo-nos de distrações.

Nossa alteridade é presente, apesar de nem sempre nomeada. Os altos e baixos fazem parte de nós, claro, em alguns mais, e em outros, menos. Mas, geralmente é preciso a dor chegar perto a fim de que abramos os olhos para algumas coisas.

Não precisamos aprender só na dor, não precisamos viver de esquecimentos, não necessitamos celebrar apenas em situações já esperadas. Mas, o acúmulo de tarefas, os desejos confusos, metas e compromissos nos levam, por vezes, a desligarmos a capacidade de observar e atentar a detalhes, e até mesmo para situações, gestos e falas que não era para serem atropeladas.

A reverência à vida vai sendo banalizada, nos entregamos as exterioridades, às imagens tão cultivadas, vitrines existenciais, corremos atrás do vento confundindo-o com miragens, obstinados por ilusões com cara de paraísos. O que se passa dentro de nós?

O Salmo 78 conta um pouco da história do povo de Israel, conta de altos e baixos, do que ora era lembrado, ora esquecido, de movimentos que são humanos, e que revelam realidades e perigos para nossa alma.

Saliento um verso (11) que diz: “Esqueceram o que Deus tinha feito, as maravilhas que lhes havia mostrado”. O contexto é que esqueceram do compromisso assumido com Deus, se acovardaram, se recusaram a caminhar pela Palavra de Deus e então, a consequência, foi perderem no baú de recordações o quanto Deus já tinha feito por eles e realizado neles.

A gratidão, não raro, vai minguando. Deixa-se, assim, de acessar memórias que celebravam a bondade de Deus, recordar as revelações de seus feitos maravilhosos. Afastamo-nos, com coração desleal, com espírito infiel, com rebeldias enraizadas. Sim, o texto relata que isso aconteceu, que é humanamente possível e provável quando não cultivamos espaços em que o silêncio e o descanso favorecem a atenção, onde estamos alertas, vendo com clareza onde depositamos nossa confiança, exercitamos a gratidão e o reconhecimento daquilo que Deus está fazendo.

Sem esse tempo sagrado, quer dias tranquilos, quer dias difíceis, nos distraímos e obedecemos ao império particular de desejos selvagens, ou, o desespero aumenta e a murmuração encontra-se a um passo da amargura.

Nossa trajetória e as histórias acumuladas nela podem nos ensinar, nos lembrar, nos tratar em questões fundamentais. A dor e a alegria nos habitam, faltas e apetite pela plenitude também, mas o reconhecimento e a memória da bondade divina podem ser um espaço de preservação do sabor da vida, do exercício da fé e da esperança, onde o amor é cultivado.

O Rabi Nachman de Breslav dizia: “Todo mundo diz que as histórias são um remédio para o sono. Eu, porém, digo que elas têm o poder de despertar as pessoas de sua sonolência”. Visitemos, pois, nossas histórias, acordemos para a gratidão.

Lotação e estrebaria no século XXI

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A cidade estava lotada devido o primeiro recenseamento do período em que Quirino era governador da Síria. Sim, em Belém, José enquanto tenta cumprir suas obrigações vê sua noiva grávida começar com as contrações. Embora não saibamos quanto tempo isso levou, sabemos que foi uma situação delicada, sendo preciso cuidados redobrados, pois, só lhes restou a manjedoura de uma estrebaria (Lc 2.7).

Ali onde se colocava comida para os animais é onde Jesus é colocado. Lugar não muito convidativo para um recém-nascido. Ali foi o lugar dado a Jesus – o menino Salvador. Mas, espere um pouco, deixe que as perguntas cheguem: Um rei não é digno de lugar nobre? O Messias não merecia algo melhor?

Jesus nasceu, cresceu, ensinou, se deu. Ele morreu e ressuscitou. Segundo o ensino bíblico ele vive agora, pelo seu Espírito, no coração daqueles que nele creem. Contudo, olhando para meu coração, não vejo que melhorou algo daquela velha estrabaria para cá.

Que acomodação dentro em mim ofereço? Aqui há “sujeiras” de todos os tipos. Animais se alimentam nesse lugar, há selvagerias, há bichos que nem consigo nomear, outros que ainda desconheço.

Posso tentar ajeitar, porém, meu esforço é inútil. Foge do controle, é mais forte do que eu, me solidarizo com o apóstolo Paulo que bem sabia disso: “nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e, sim, o que detesto” (Rm 7.15).

Não há em mim um botão autolimpante, desses que a tecnologia colocou hoje em tantos aparelhos domésticos, por exemplo. Eu queria oferecer algo melhor a Jesus, entretanto, não posso nem disfarçar, seria em vão. Ele sabe, reconhece bem.

A manjedoura foi consequência de uma superlotação na cidade. Hoje, minha manjedoura particular é consequência de minha natureza (Sl 51.5), que tanto se apega e constrói uma superlotação interior – tudo cheio.

Esse período onde comemoramos, segundo o calendário vigente em nossa cultura, o Natal é um período onde somos tentados o tempo todo a nos enchermos mais, especialmente de ilusões, do que não precisamos, do que nos faz mais mal do que bem. Nossa estrebaria supõe-se “enriquecida” de supérfluos, a manjedoura fica apertada, mais bagunça, sujeira e confusão.

Em sua misericórdia amorosa Jesus não se importa, não se impõe, quer apenas fazer morada. Contudo, uma vez dentro, ele revela-se o Messias, e ele faz o que não posso, não consigo e o que geralmente resisto – ele purifica-me. O primo de Jesus, João Batista, descobriu isso e anunciou com todo fôlego: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (Jo 1.29). E no processo de sua vida, João tinha claro que convinha que Jesus crescesse e ele diminuísse (Jo 3.30). O apóstolo Paulo chegou a poder afirmar: “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20).

Nesse Natal minha oração é de gratidão pelo Rei que aceita uma singela, suja e bagunçada manjedoura; minha prece é para que ele ganhe mais espaço em mim, me ajude a abandonar tanta coisa, que ele faça o que ele sabe que está por fazer, e que é melhor do que possa eu imaginar.

Aproveite com alegria o Natal – Cristo em nós!

Eu gostaria… (uma constatação a partir de I Coríntios 13)

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Eu gostaria de falar com eloquência humana e com êxtase própria dos anjos.

Eu gostaria de pregar a Palavra de Deus com poder, revelando mistérios e deixando tudo mais claro, Cristo em evidência.

Eu gostaria de ter uma fé inabalável, exemplar, inspiradora, notória.

Eu gostaria de dar tudo o que tenho aos pobres, oferecer-me como sacrifício, enfrentando o que tiver que enfrentar.

Eu gostaria que tanto do que é buscado e aprovado na vida cristã, reconhecido como importante, estivesse em mim.

Eu preciso, contudo, é do amor de Deus. Caso contrário, estarei falida.

O amor é que faz a diferença, que pode me fazer diferente.

O amor é que ensinará a perseverar, não me deixará desistir quando tudo ao meu redor favorecer o deixar para lá. Só o amor pode tratar minha impaciência crônica.

O amor é que me educará para a bondade, só ele me fará tirar os olhos do meu próprio umbigo, e ensinará, verdadeiramente, a me interessar por aquele que entra em meu caminho. Aliás, me ampliará o horizonte, me ajudando a perceber que “meu” caminho está dentro de um caminho maior na história de salvação.

O amor é que poderá corrigir e transformar a inveja que me habita. Sim, ele tem o potencial de me ajudar a não querer o que não tenho, e a alegrar-me com os que possuem e conquistam coisas boas. Mais gratidão e celebração do que comparação e competição.

O amor é que não me deixará mergulhar na arrogância e nutrir uma mente soberba. Ele é que me dará discernimento, me mostrará em quantas ocasiões e em como, de variadas maneiras, tento me impor aos outros, disfarçada ou escrachadamente, maltratando quem poderia ser bem cuidado, manipulando para que as coisas saiam do meu jeito, conforme a minha vontade, ocupando-me tão somente dos meus desejos mais escondidos.

O amor é que me fará enxergar como facilmente ajo na base do “eu primeiro”, buscando continuamente meus próprios interesses, alimentando meu egocentrismo.

O amor é que não me deixará perder as estribeiras, e me entregar rapidamente à ira, através da qual deixo escapar uma agressividade intensa que tento controlar com minhas próprias forças.

O amor é que me conduzirá ao perdão, não me deixando cair em contabilizações dos erros dos outros e supostas dívidas que considero que tenham a mim. O rancor se dissolverá quanto mais o amor reinar.

Afinal, o amor não festeja quando os outros rastejam, o amor não se alegra com injustiça alguma, antes, o amor me deixa muito mais sensível a qualquer injustiça a meu redor e até longe de mim, e assim, a dor do que sofre passa a ser também minha. Só no amor há esperança de um coração verdadeiramente solidário, capaz inclusive de realmente ter prazer, vibrar saltitante com o desabrochar da verdade.

O amor é que me fará suportar o que de outra forma jamais conseguiria.

O amor é que me ajuda a ver e crer além, e por isso, caminhar na confiança do que Deus está fazendo por detrás, acima, e além do que consigo ver. E assim, descansar nele, sabendo que no amor o melhor é buscado, que o amor encontra caminhos de vida, de perdão, de reconciliação, que o amor é esperançoso. Portanto, não é preso no passado, é livre para tentar mais uma vez, não precisa enroscar na decepção que me faz afastar-me para ilusoriamente proteger-me. Enquanto o medo encontra brechas, o amor escancara espaços, respeitando limites. Dessa maneira ele segue até o fim, imortal, sem perecer pelo caminho da existência.

Muito ideal, muita perfeição? Esse amor é o amor de Deus por nós – frágeis, assustados, rebeldes. Esse amor de Deus é o que nos cura. Esse amor é que em mim pode ser revolucionário. Por mais que cresça, é bem verdade, não me dominará por completo nessa vida, onde enxergamos apenas em parte, e vivemos em incompletude. Mas, quando vier aquele que é Completo, não mais haverá limites em mim, e verei e viverei mais do que jamais imaginei.

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