Arte & Cultura

Leitores e leituras

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No Brasil o número de leitores fiéis ao exercício da leitura, infelizmente, é menor do que os amantes dos exercícios do corpo. Claro que cuidar do corpo é algo importante, e bem sabemos que nem todos que se exercitam o fazem por gosto, mas necessidade, por acreditarem nos benefícios à saúde advindos desse hábito. Mas, como desenvolver uma academia de leitores? Em tese, isso não viria de nossas bibliotecas? Será que igrejas não poderia contribuir mais para estimular, ensinar e encorajar a termos mais leitores, e depois, bons leitores?

Vamos aos números. Saiu há pouco a nova edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. Apesar de aumentar o número de leitores em nosso país, de 50% a 56% desde 2011, vemos que 44% dos brasileiros não leem regularmente e 30% nunca adquiriu um livro. Além disso, 73% dos entrevistados nessa 4ª edição da pesquisa dizem ver TV no tempo livre. A atividade lidera o ócio dos brasileiros, mas perdeu espaço, já que em 2011 era 85%. A leitura ficou em 10º lugar quando o assunto foi esse: o que gosta de fazer no tempo livre. Pouca leitura e ainda bastante tempo destinado à TV. Leitura não é prioridade no tempo livre e nem hábito.

A pesquisa apontou também que 50% dos professores disseram não ter lido nenhum livro nos três meses anteriores à pesquisa e 22% tinham lido a Bíblia. Índices que nos desafiam a melhorar e denunciam que crianças talvez não tenham tanto bons exemplos nesse aspecto.

Outro dia, em sua coluna no jornal “O Estado de S.Paulo”, Marcelo Rubens Paiva dizia: “As aberrações ditas em redes sociais, a vergonha alheia no púlpito dos poderes, o contexto nebuloso na política, a baixa cultura e educação, provam que o desconhecimento de História, a falta de leitura, traz um dano que prejudica o pouco que resta de Projeto de Nação”. E comenta sobre professores que atestam não querer que os alunos encarem o livro como obrigação, mas com prazer, sendo assim, não forçam. É quando acrescenta: “Beleza, não obrigam, eles não leem. Poderiam também não os obrigar à Química Orgânica, Biologia, Gramática, Trigonometria, façam eles terem uma relação de prazer com o conhecimento. Ensinem apenas o que lhes dá prazer. Criem uma geração hedonista e manipulável”. O fato de citá-lo não significa que concorde com ele inteiramente, mas, acredito ser uma boa provocação. Criar o hábito da leitura é algo importante para o desenvolvimento das pessoas e do país.

Dizia Marcel Proust que “a leitura é uma amizade”. Se assim for, parece que não temos muitos amigos. Uma minoria aprendeu a desenvolver essa amizade. Talvez, um tesouro menosprezado. E vamos convivendo com as consequências em sociedade. Muitas são as implicações. Sem esse compromisso com a leitura a interpretação do mundo fica menor. As ignorâncias tendem a se ampliarem e os preconceitos ganham a correnteza.

Em nosso país, segundo essa pesquisa Retratos do Brasil, o brasileiro lê apenas 4,96 livros por ano, sendo 2,88 lidos por vontade própria. Uma pesquisa divulgada em outubro passado pelo Pew Research Center revelou que a média de leitura da população norte-americana, em geral, é de doze livros por ano. Isso para ficarmos apenas com um exemplo. Nos índices da América Latina passamos vergonha.

A professora da New York University, Susan Keuman, em entrevista recente disse que “se uma criança não vê ninguém lendo habitualmente já é ruim, porque está sempre a procura de modelos que indiquem como o mundo funciona. Se não observa à sua volta uma cultura de leitura, tem menos chances de se sentir atraída por livros”. E acrescenta: “nem toda mãe ou todo pai pode passar muito tempo leno à noite para cada filho. Mas não importa, nem que seja alguns minutos, abrace e beije a criança, olhe nos olhos enquanto abre um livro. Ela guarda estas emoções na memória e vai sempre associar a leitura a momentos preciosos”. Parece ser uma boa dica, não? Ao invés de pais ansiosos para tornar seus filhos mais competitivos na escola, pais compromissados em oferecer afeto e exemplo, incentivo à leitura.

Os não leitores, voltando à referência da pesquisa brasileira, afirmaram que as razões para não terem lido nada nos três meses anteriores seria: falta de tempo (32%), não gosta de ler (28%), não tem paciência (13%), prefere outras atividades (10%), dificuldades para ler (9%), sente-se cansado para ler (4%). Temos muito o que pensar e considerar como lidaremos com os atuais desafios. E isso sem contar naqueles que leem, porém, tem enorme dificuldade de compreensão do texto. Muitos desejam argumentar, mas nem sequer entenderam.

Os cristãos têm razões maiores para se interessarem pela leitura e em como anda a leitura no próprio país, afinal, é a partir da leitura e interpretação bíblica que se amplia a chance de desenvolver uma fé consistente, onde se compreende melhor o potencial da vida, o que Cristo ensina, o que ele quis dizer sobre uma vida abundante, plena. Mãos ao livro!

Mais um poeta se vai

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Ele chegou aos oitenta anos, mas vinha sofrendo, nos últimos, com problemas físicos. Com os anos, as doenças também chegaram. Ora mais abatido, ora ainda mais sensível, prosseguiu enquanto pode.

Rubem Alves dizia poeticamente sobre a finitude que sentia se aproximar: “de um lado, sou o rio que vai indo pela planície, sem retorno, para o mar. Do outro sou piracema, peixes rio acima em busca da infância… E assim vou indo, o corpo trabalhando, na direção do mar, a alma brincando, na direção das nascentes…”. Alcançou o mar.

Em nossa memória ficam suas piracemas, sua alma brincante, sua delicadeza e sensibilidade. Seus textos fluíam como poucos. Era bom de ler. Mesmo quando eu divergia, eu me encantava, respeitosamente.

Sua escrita era carismática, ele era acolhedor. Bom ouvinte, criativo, cabeça de filósofo e coração de poeta. Boa conjugação! Já em seus anos avançados disse: “Na velhice saímos à cata das palavras essenciais. Por isso nos voltamos para os poetas”. E assim o fez, continuou cultivando a beleza e a alegria.

Há décadas lendo e encontrando Rubem Alves, sempre atenta a suas publicações, vendo sua maturidade em forma de frases bem colocadas, comecei a fazer um dicionário particular dele. Depois saíram diversas publicações com alguns verbetes, mas, há muito mais nele a ser aproveitado. Há uma herança a ser visitada.

Rubem não viveu do passado, embora tenha sido marcado por ele. Era alguém sintonizado, como bom educador, contextualizado. Atentava para a realidade sem perder a perspectiva esperançosa: “é preciso viver a vida com sabedoria para que ela, a vida, não seja estragada pela loucura que nos cerca”.

Eu celebrava suas percepções: “A alma chora pelo que não existe”. Sim, seres de incompletude, inquietos pela falta, e como Deus trabalha em nossa falta! Mas também sobre a alma dizia mais: “a alma é uma biblioteca. Nela se encontram as estórias que amamos”. E várias estórias ele as contou e nos abençoou com sua biblioteca interna e única. Como não sentir saudade?

Aproveito o que ele mesmo disse para lidar agora com essa saudade: “falamos para transformar a ausência em presença”, ou, “as grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior”. Quero estar perto, continuar falando de seus escritos, porque neles havia uma brisa de beleza da vida, de quem a seu modo conheceu o Criador. Viva a comunhão.

Rubem Alves foi um artista das palavras. De modo sucinto expressava: “a arte é isso, pegar o eterno que cintila por um instante no rio do tempo”, e ainda, “a arte são as asas do corpo. Por ela voamos!” E ele voou e tocou na eternidade que Deus colocou em nosso coração, o fez de forma singular.

Conhecedor da beleza ele repetia: “creio que dentro de todos, mora, adormecida, a nostalgia pela beleza”. Difícil ler o relato da criação no Gênesis e não assentir.

Em sua carta de despedida, lida em seu velório a pedido dele, disse: “não terei últimas palavras. O que tinha para dizer, já disse em vida”. E me alegro por ele ter dito tanto. E penso que valerá a pena visitarmos esse escritor nos livros que ele nos deixou. Sugiro que até os resistentes o façam. Desarme-se e aproveite. A beleza está logo aí.

Excesso

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O excesso parece dominar em vários setores da vida cotidiana. Excesso de excitação, excesso de consumo, excesso de informação, excesso de trabalho, e por aí vai.

É permitido, mas é indecente? Qual o limite? Conhecemos? O que é de fato necessário? Vivemos num tempo onde extremos atraem mais, e queremos sempre ultrapassar, intensidade nas experiências singulares, sobram desejos, falta a arte de comedir. Raros os que se contem, tornou-se exceção os moderados, embora, todos os radicais se julguem moderados e bem regulados a seus próprios olhos.

Cegueira e confusão parecem nos conduzir a maior parte do tempo. Uma teimosia e arrogância natural nos conduzem ao “mais” como conclusão de que isso seria bom. E aí ficamos entre o descartável e o acúmulo, com este último avançando.

Como diz Edgar Morin: “O homem manifesta uma afetividade extrema, convulsiva, com paixões, cóleras, gritos, mudanças brutais de humor; ele carrega consigo uma fonte permanente de delírio.” E assim, não é difícil perceber que não gostamos de limites, ainda que destemperos sejam visíveis.

Chamou-me atenção a música de Arnaldo Antunes em seu recente trabalho intitulado “Disco”:

tem muito carro e muito pouco chão

tem muita gente e muito pouco pão

tem muito papo e muito pouca ação

muito parente e muito pouco irmão

 

e então?

o que vamos fazer então

com mais um milhão?

e depois?

o que vamos fazer depois

com um grão de arroz?

 

tem muito pouca dúvida e muita razão

tem muito pouca ideia e muita opinião

muita pornografia e muito pouco tesão

muita cerimônia e muito pouca educação

 

e então?

e depois?

Temos feito o mundo cada vez mais frágil. A desconfiança cresce, mas plantamos violência, egoísmo, desigualdades. Engolimos caroços de corrupção e injustiças se proliferam, contudo, nos engasgamos é com a fraternidade que virou espinho na garganta, queremos cuspir.

Distanciamentos se ampliam, e a intimidade tornou-se quase desconhecida. Gente articulada, bem armada, bons discursos, mas a prática, o exemplo, o envolvimento minguam.

Fim de ano é tempo de avaliação, de colocarmos coisas na balança existencial, de fazermos faxina na alma, nos guarda-roupas, nas garagens, nos cantos que costumamos acumular. Rever e revisitar, repartir e celebrar. Arrepender e renovar-se. Ainda há tempo de novas escolhas, inéditas posturas.

Senhor Jesus, tem misericórdia de nós, e converte-nos ao teu evangelho – são boas e urgentes novas para o nosso século XXI.

Fim das forças

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Tivemos um carnaval diferente nesse 2013. No meio da folia, uma notícia séria. O tradicional marasmo noticiário foi rompido. As manchetes de jornais esperadas, com destaques de escola de samba, foram substituídas por algo que alvoroçou jornalistas e mais meio mundo – o papa renunciava.
Papa Bento 16, na segunda-feira, 11 de fevereiro, anunciou em seu discurso aos cardeais no Vaticano, sua renúncia: “Após ter examinado perante Deus reiteradamente minha consciência, cheguei à certeza de que, pela idade avançada, já não tenho forças para exercer adequadamente o ministério petrino”.
Muitas especulações se fazem a respeito dos reais motivos. Comentários se multiplicam, suspeitas são levantadas, apostas são feitas, ousadas afirmações distribuídas. Contudo, quanto custa a um papa assumir: “já não tenho forças”?
O que sabemos a respeito? Quem é capaz de reconhecer e confessar? Em que medida nos aproximamos dessa realidade e vivemos tal experiência?
No final de janeiro um filme me perturbou profundamente. Ele ainda está em mim, convulsionando-me nas emoções. Trata-se do filme “Amor”, do diretor austríaco Michael Haneke, 70 anos. Ele contou que a inspiração para o filme veio de sua própria história, pois, filho de atores, foi criado por uma tia, que sofria de reumatismo e, no auge da doença, aos 92 anos, pediu ajuda a Haneke para se matar. Ele se recusou. Um ano depois, ingerindo soníferos, ela se matou.
O filme retrata a decadência física e mental de um ser amado. Um casal de professores, já aposentados, com cultura, dinheiro e certo prestígio, vivem a sós num apartamento elegante, cercados de livros, música e um piano na sala de estar. Uma existência tranquila até que ela sofre um AVC, onde fica com uma paralisia parcial num primeiro momento, mas esse é apenas o princípio das dores. O relato lento, simples, triste, real e belo, aborda a impotência e a fragilidade humana de maneira delicada. Quando chegará o nosso fim? Não sabemos, mas suspeitamos, e um sinal evidente da aproximação do fim é a consciência do desvanecer das forças.
A atriz francesa, Emmanuelle Riva (indicada ao Oscar de melhor atriz por sua atuação nesse filme), consciente de que a juventude é efêmera, disse: “Acho que devemos encarar a velhice, e a presença da morte que ela traz muitas vezes, com alegria e não com tristeza. Eu, que vivo meus 86 anos, me pergunto sobre como lidar com a perda da dignidade, a dependência de outros, as dores. E como viver o amor nessas condições? […] O filme é uma dualidade, esta humanidade entre os dois, que está em todos nós, que seduz nesta história. É sobre um drama que todos nós vivemos ou vamos viver. Todos temos um mal, uma doença, uma fragilidade. Como lidamos com elas é que nos faz diferentes”.
A sociedade em geral corteja celebridades, amenidades, cultua a juventude ou aparência dela, consome o supérfluo com avidez, e, despreza a velhice, bem como a realidade, nem sempre agradável, que nos cerca.
Rotas de fuga não nos faltam. Entretenimentos nos cativam, nos levam para longe de responsabilidades, o mundo digital nos atrai mais do que encontros pessoais, laços afetivos vão se enfraquecendo, interesses “novidadeiros” nos encantam e falta-nos tempo para o cuidarmos do outro, ouvirmos repetidas histórias de alguns velhinhos, oferecermos atenção carinhosa e, de repente, recebermos um tesouro de sabedoria vinda da experiência daquele que viveu mais do que nós.
Não gostamos, nenhum um pouco, de abandonar ilusões de estimação existencial, e encarar a realidade da decadência física, das limitações que se expandem. Escamoteamos sensações que nos remetem ao fim. Talvez, por isso mesmo, o livro de Eclesiastes seja pouco palatável para tantos.
Alguém já disse que sabedoria é contemplar o abismo sem ser destruído por ele. Ou, nas palavras de Rainer Maria Rilke: “conter a morte inteira, docemente, sem nos tornar amargos”. E Rubem Alves insiste que “só podem viver bem aqueles que aprendem a sabedoria que a morte ensina”, e que por isso mesmo, “é preciso contemplar o crepúsculo no horizonte para sentir a beleza incomparável do momento”.
São muitas as perdas no decorrer da vida. O evangelho, no entanto, no ensina um princípio interessante: mesmo perdendo é possível ganhar. Mas se nossos medos nos dominam, nossa gula não vê limites, nossa arrogância nos enrijece e nos afasta da intimidade, e nossa ganância nos controla, aí, não teremos a coragem de perder a fim de ganhar.
Quando em 19 de abril de 2005 o papa Bento 16 assumiu, dificilmente imaginou viver essa realidade em menos de 8 anos. Por coragem ou por pressão, não sei, mas ouvir a afirmação: “já não tenho forças” me tocou. E aí, me lembrei das palavras de Henri Nouwen: “Estamos preparados para a morte ou a estamos desprezando por meio do trabalho? Estamos nos ajudando mutuamente a morrer ou simplesmente supomos que estaremos sempre aqui ao lado do próximo? Nossa morte dará nova vida, nova esperança e nova fé aos amigos ou será apenas mais um motivo de tristeza? A principal pergunta não é ‘Quanto seremos capazes de produzir durante os poucos anos de vida restante?’, mas, sim, ‘Como podemos nos preparar para nossa morte, de modo que ela seja uma nova forma de enviar o nosso espírito e o de Deus àqueles que amamos e que nos amaram?’.” Que as dores, e as perdas, nos ajudem a perceber mais profundamente a realidade de quem somos e para onde vamos.

A duração do dia, com arte nele

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Eis o título do novo livro de Adélia Prado – “A duração do dia”, que esteve em São Paulo, nesses tempos, para o lançamento desse. Claro, eu não quis perder. E ouvi-la mais uma vez é um privilégio que faz bem à alma.

Ler Adélia é encontrar tesouros, um baú de belezas frescas, mas ouvir a Adélia, nas oportunidades que tive até aqui, sempre foram momentos aonde ela me conduziu a um encontro mais profundo com o Criador. Ela sempre me provocou, santamente, me levando ao Eterno, me ajudando a reconhecer e reverenciar o Mistério. E dessa vez não foi diferente.

A escritora mineira falou sobre nossa necessidade da quietude em meio ao caos. E como, nesse contexto caótico, de instabilidade, irritabilidade, e tanto mais, precisamos de algo que nos fale que somos humanos. Caso contrário não resistimos, afinal, somos mais do que nosso corpo e nossa fome. Precisamos, pois, de uma vida simbólica significante.

Nesse caminho por significado encontramos algumas respostas. Não sempre respostas racionais, mas podemos encontrar respostas vitais, orgânicas, metafísicas, que acrescentam mais vida à nossa vida, que conferem alegria e coragem, sendo que alegria e coragem fazem parte do elã vital para a existência humana. Desconfio que as respostas possam até serem parciais diante do todo, mas significativas para o trecho a percorrer, para que a vida se faça em nós.

A beleza é componente fundamental. É graça manifesta em nosso instinto. Por isso, em boa parte do tempo sentimos fome, fome de beleza, do que se revela novo, original, e bole com as cordas mais sensíveis do coração, diz ela.

A Adélia também comentou que a arte é uma espécie de tenda onde as pessoas entram e encontram tranquilidade no caos, onde em meio ao espanto e reconhecimento do absurdo de viver encontra-se repouso, portanto, a arte é espiritual, um caminho de expressão íntima ante o assombroso mistério. Solene e serena declara que para o coração, e a sede que dele vem, o mar é uma gota.

A arte é um caminho de conhecimento. Inclusive, pondera a arte como sentimento de destinação. E acrescenta que a arte é fraterna, generosa e dá muita alegria, e isso se dá devido à possibilidade de identificação, onde se oferece como espelho, onde o outro pode se reconhecer, pode ver seu sentimento e experiência ali também. Sim, na arte é possível comunhão, pois nela se oferece um espaço interno. Isso acontece quando se oferece sentimento ao outro.

Como sábia e ousada, insiste que arte não é ideia, arte não é conceito, é sentimento, um olhar do coração. Ensina de que não precisamos entender, apenas, perceber. E nessas percepções, diz quem experimentou, é possível encontrar sentido em meio à desesperança. Uma intuição a respeito de algo que me ultrapassa em magnitude, em mistério e me serve de consolação, alegria e acrescenta vida.

Com leveza e humildade diz que seu canto de observação é sua partilha na e através da arte. E que cantinho precioso esse que ela nos convida a entrar, que nos oferta com a generosidade de sua vida.

Obrigada, tão querida Adélia. Você nos ajuda na vida, nos aponta para a beleza de Deus e sua graça, contudo, o faz com poesia singela e encantadora. Carrego em mim seus versos e um tanto de você permanece. É uma honra, presente de Deus.

Romance, vida e a gente

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No dia 18 de Junho de 2010, aos 87 anos de idade, o escritor português e Prêmio Nobel, José Saramago faleceu. Admirado por muitos, e criticado por não poucos, ele provoca-nos interessantes reflexões.

Oito meses antes de sua morte ele concedeu uma entrevista ao jornalista José Rodrigues dos Santos. E agora foi publicada com o título “A Última Entrevista de José Saramago” (pela Usina das Letras).

Em dado momento José Saramago comenta a respeito do romance com as seguintes palavras: “O romance – de acordo com as transformações por que passou recentemente e continua a passar – deixou de ser um gênero para se transformar num espaço literário. Deixou de ser um gênero classificado e dando a ideia de que fica definido para todo o resto do tempo. Não: modificou-se, alterou-se, encontrou, por instinto ou fosse porque fosse, portas de entrada. No fundo, para lhe dar uma imagem, é como se o romance fosse o mar e recebesse água dos seus afluentes, e que esses afluentes fossem, como eu digo, a poesia, o drama, o ensaio, a filosofia, tudo isso. O romance tornou-se outra coisa”.

Nesse momento faço uma pausa. Mais do que pensar a respeito das classificações, se o romance está em vias de extinção ou se e como tem se modificado, penso na vida como romance. Não necessariamente sobre uma vida romântica, tema que também atrai minhas fantasias e carências. Mas, sou levada a pensar na vida com seus afluentes, suas influências, suas portas e trancas, acolhidas e rejeições, filosofias e teorias, os dramas, poesias e ensaios que fazemos, achamos ou criamos em nossas próprias vidas.

Olho para trás e considero as minhas transformações pessoais, mas também as transformações da humanidade. Embora pouco saiba diante da vastidão das mudanças recentes e o turbilhão veloz de tantos acontecimentos a que somos expostos diariamente, o que torna bastante pretensiosa tais considerações, ainda assim, ouso pensar sobre o que tem se passado. Também procuro olhar para frente, onde nada está tão claro, contudo, os sinais e alguns apontamentos assustam.

Qual a imagem atual que o ser humano faz de si? Temos nos tornado outra coisa? É, talvez o mais assustador, é que o ser humano provavelmente esteja cada vez mais para coisa do que para gente. É o que queremos? Estamos conscientes? O que temos escolhido, permitido? Adaptamo-nos para sobreviver ou ignoramos o que deveríamos ser?

As velhas e permanentes questões aí estão. Nascemos de onde, para quê? Há identidade original? Um propósito inicial?

Saramago se foi. Nós estamos indo. Para onde mesmo?

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