Leitores e leituras
1No Brasil o número de leitores fiéis ao exercício da leitura, infelizmente, é menor do que os amantes dos exercícios do corpo. Claro que cuidar do corpo é algo importante, e bem sabemos que nem todos que se exercitam o fazem por gosto, mas necessidade, por acreditarem nos benefícios à saúde advindos desse hábito. Mas, como desenvolver uma academia de leitores? Em tese, isso não viria de nossas bibliotecas? Será que igrejas não poderia contribuir mais para estimular, ensinar e encorajar a termos mais leitores, e depois, bons leitores?
Vamos aos números. Saiu há pouco a nova edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. Apesar de aumentar o número de leitores em nosso país, de 50% a 56% desde 2011, vemos que 44% dos brasileiros não leem regularmente e 30% nunca adquiriu um livro. Além disso, 73% dos entrevistados nessa 4ª edição da pesquisa dizem ver TV no tempo livre. A atividade lidera o ócio dos brasileiros, mas perdeu espaço, já que em 2011 era 85%. A leitura ficou em 10º lugar quando o assunto foi esse: o que gosta de fazer no tempo livre. Pouca leitura e ainda bastante tempo destinado à TV. Leitura não é prioridade no tempo livre e nem hábito.
A pesquisa apontou também que 50% dos professores disseram não ter lido nenhum livro nos três meses anteriores à pesquisa e 22% tinham lido a Bíblia. Índices que nos desafiam a melhorar e denunciam que crianças talvez não tenham tanto bons exemplos nesse aspecto.
Outro dia, em sua coluna no jornal “O Estado de S.Paulo”, Marcelo Rubens Paiva dizia: “As aberrações ditas em redes sociais, a vergonha alheia no púlpito dos poderes, o contexto nebuloso na política, a baixa cultura e educação, provam que o desconhecimento de História, a falta de leitura, traz um dano que prejudica o pouco que resta de Projeto de Nação”. E comenta sobre professores que atestam não querer que os alunos encarem o livro como obrigação, mas com prazer, sendo assim, não forçam. É quando acrescenta: “Beleza, não obrigam, eles não leem. Poderiam também não os obrigar à Química Orgânica, Biologia, Gramática, Trigonometria, façam eles terem uma relação de prazer com o conhecimento. Ensinem apenas o que lhes dá prazer. Criem uma geração hedonista e manipulável”. O fato de citá-lo não significa que concorde com ele inteiramente, mas, acredito ser uma boa provocação. Criar o hábito da leitura é algo importante para o desenvolvimento das pessoas e do país.
Dizia Marcel Proust que “a leitura é uma amizade”. Se assim for, parece que não temos muitos amigos. Uma minoria aprendeu a desenvolver essa amizade. Talvez, um tesouro menosprezado. E vamos convivendo com as consequências em sociedade. Muitas são as implicações. Sem esse compromisso com a leitura a interpretação do mundo fica menor. As ignorâncias tendem a se ampliarem e os preconceitos ganham a correnteza.
Em nosso país, segundo essa pesquisa Retratos do Brasil, o brasileiro lê apenas 4,96 livros por ano, sendo 2,88 lidos por vontade própria. Uma pesquisa divulgada em outubro passado pelo Pew Research Center revelou que a média de leitura da população norte-americana, em geral, é de doze livros por ano. Isso para ficarmos apenas com um exemplo. Nos índices da América Latina passamos vergonha.
A professora da New York University, Susan Keuman, em entrevista recente disse que “se uma criança não vê ninguém lendo habitualmente já é ruim, porque está sempre a procura de modelos que indiquem como o mundo funciona. Se não observa à sua volta uma cultura de leitura, tem menos chances de se sentir atraída por livros”. E acrescenta: “nem toda mãe ou todo pai pode passar muito tempo leno à noite para cada filho. Mas não importa, nem que seja alguns minutos, abrace e beije a criança, olhe nos olhos enquanto abre um livro. Ela guarda estas emoções na memória e vai sempre associar a leitura a momentos preciosos”. Parece ser uma boa dica, não? Ao invés de pais ansiosos para tornar seus filhos mais competitivos na escola, pais compromissados em oferecer afeto e exemplo, incentivo à leitura.
Os não leitores, voltando à referência da pesquisa brasileira, afirmaram que as razões para não terem lido nada nos três meses anteriores seria: falta de tempo (32%), não gosta de ler (28%), não tem paciência (13%), prefere outras atividades (10%), dificuldades para ler (9%), sente-se cansado para ler (4%). Temos muito o que pensar e considerar como lidaremos com os atuais desafios. E isso sem contar naqueles que leem, porém, tem enorme dificuldade de compreensão do texto. Muitos desejam argumentar, mas nem sequer entenderam.
Os cristãos têm razões maiores para se interessarem pela leitura e em como anda a leitura no próprio país, afinal, é a partir da leitura e interpretação bíblica que se amplia a chance de desenvolver uma fé consistente, onde se compreende melhor o potencial da vida, o que Cristo ensina, o que ele quis dizer sobre uma vida abundante, plena. Mãos ao livro!
Alma – como vai?
0A alma deseja aconchego
lugar onde chego e encontro sossego
A alma busca sua própria avenida
onde possa caminhar com familiaridade apesar de todo trânsito
A alma necessita ser reconhecida na sede que traz
essa insatisfação, às vezes, gera contorções
A alma assustada, ressabiada pelas marcas da vida
se protege, esconde-se, camufla-se na paisagem das adequações
A alma num mundo esfomeado anda raquítica
aliás, quase não anda, arrasta-se
A alma contorna riscos por desejar segurança
quase não arrisca mais, vê-se toda rabiscada
A alma rouca já nem grita
geme num suspiro cansado
A alma reclama, perturbada
muito ruído para pouca resposta
A alma sente… saudade
do tempo que nunca foi, mas que ela almeja
A alma sobrecarregada
vaga cansada
A alma que transborda de sensações
para cair no abismo da noite escura
A alma armada afasta até boas intenções
prefere a dor da solidão que mais desilusões
A alma carregada
de perguntas embaladas a vácuo
Calma, alma. Escuta:
uma melodia em volume baixo
“Por que estás abatida dentro em mim?
Olhe para Deus. Ponha sua esperança em Deus!”
Uma inquieta alma procurou salmodiar
Goles profundos de Deus.
Dores do mundo
4São muitas as dores do mundo e elas parecem sugar nossa força, de modo que, beiramos o esgotamento. E aí propor refletir sobre elas parece demais, pois, seria mais cansaço para um debilitado. A tendência é entregarmos os pontos nesse jogo cruel, ou, jogarmos a toalha nessa luta constante. Mais fácil é sermos tragados pelas faltas, sem preenchimento de sentidos. A sensação de que nada tapa alguns buracos existenciais desanima muitos que tem já veem perspectivas estreitas no seu dia a dia.
Alguns param, desistem e são consumidos por angústias inomináveis no momento. Outros, vivem no automático. Da casa para o trabalho, do garfo a boca, da academia para o encontro com colegas, da sala de aula para a cama, mas é só. Um esforço para manter um desempenho social. Afinal, a vida nos palcos digitais exige espetáculo, as redes sociais fisgaram nosso tempo congelando nosso sorriso, e, os cliques não podem parar.
Ameaçados pelo fracasso remamos nesse oceano do sucesso, que prometem tempestades à vista. Nossa embarcação parece tão miúda frente a imensidão do mar! Na meteorologia interior o tempo está nublado sujeito a trovoadas. Mas a viagem precisa prosseguir, mesmo que não se saiba bem o destino ou se perceba à deriva. Ventos que nos carreguem! Resta-nos torcer pelo menos pior. Sobrevivência. Ao menos, coisas estão acontecendo…
Nesse ritmo cria-se intervalos de frenesi. Em algum lugar é preciso liberar um tanto dessa aflição, a sensação é que se permanecermos entalados a implosão se dará a qualquer instante. Então, escapadas ilegais são consentidas. Vive-se aventuras errantes, um descarrego fundamental. Ignora-se a culpa e faz-se as pazes com “pequenas transgressões”. Cada vez se incomoda menos, e é integrado a uma suposta normalidade, uma frequência maior, comum, sem crises, apenas dependências. Por que não?
Além do mais a indústria farmacêutica está a nosso favor. Desenvolve-se para nos servir. Portanto, abusos podem aumentar. Testes cotidianos para ver até onde aguentamos.
Lugar para espiritualidade? Nem sempre, mas cabe como espaço da vida no automático. Ou ainda, como memória remota num alento em frestas de esperança a serem resgatadas.
“Duvidaram de Deus, dizendo: ‘Poderá Deus preparar uma mesa no deserto?” (Sl 78.19).
Famintos, mas desconfiados. É tanta frustração e cansaço que esperar algo bom no deserto seria demais, pouco provável. O cativeiro ao menos é conhecido. A ansiedade já é familiar, nada de criar novas expectativas. Nada como uma cova onde eu já me sinto quase confortável. A esperança foi enterrada antes da gente.
A fé na dor é maior que qualquer fé no amor. Uma geração comprometida, que faz mera manutenção da existência, e não mais considera uma mesa no deserto. A realidade do deserto é sofreguidão, escassez, adaptações às desgraças. Acreditar numa intervenção divina? Milagres são miragens.
E uma revolta cresce no coração de alguns, enquanto outros, amorfos, se ajeitam na cama-caixão. “não creram em Deus nem confiaram no seu poder salvador” (Sl 78.22).
O que a fé, a esperança e o amor poderiam fazer?
Não existem apenas esses grupos de pessoas, onde o trágico predomina. Há mais alguns que se deixaram penetrar por fé, amor e esperança. Contrapondo ao relato do salmista quanto
àquela gente desconfiada, o apóstolo Paulo conta de uma outra gente que vive diferente: “Lembramos continuamente, diante de nosso Deus e Pai, que vocês têm demostrado: o trabalho que resulta da fé, o esforço motivado pelo amor e a perseverança proveniente da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo” (I Ts 1.3). Aqui tem trabalho, esforço, luta, dificuldades que requerem perseverança, mas, há uma relação de confiança, fé nutrida mesmo no deserto, o amor como combustível, nutriente fundamental, e esperança numa pessoa – Deus feito gente, Jesus Cristo.
Um Nobel e a vida
5O professor Angus Deaton, 69 anos, economista da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, cidadão britânico e americano, recebeu dias atrás o prêmio Nobel de Economia.
Ao anunciar o ganhador a Academia Real das Ciências da Suécia disse: “Para criar políticas econômicas que promovam o bem-estar e reduzam a pobreza, precisamos primeiro entender as escolhas individuais de consumo. Mais que qualquer outra pessoa, Angus Deaton melhorou esse entendimento”.
Em entrevista, após o saber-se ganhador, Deaton disse “existe uma verdadeira urgência moral de compreender como as pessoas se comportam e o que podemos ou devemos fazer a respeito disso”. Em certo sentido, esse também é o desafio daqueles que ensinam, daqueles que querem compreender mais do ser humano contemporâneo, daqueles que desejam dialogar sobre a sociedade e o evangelho.
Deaton também contou que teve como mentor, Richard Stone, professor de Cambridge que recebeu o Nobel de economia em 1984. E acrescenta: “Sempre quis ser como ele”. O que nos remete à importância, por vezes negligenciada, de termos mentores na vida. E que também nos leva a pensar quem nos inspira atualmente, com quem desejamos parecer. Muitos provavelmente dirão sem pestanejar: “Quero ser parecido com Cristo”. Amém. Nesse processo, talvez seja significativo você encontrar pessoas, nessa geração, que lhe seja referência positiva. Quem sabe pessoas que você possa encontrar, conversar, agradecer, tocar e trocar ideias, dúvidas, impressões, etc. Em tempos de comemorar e lembrar do papel dos professores, isso pode ser um simples e significativo exercício.
Achei curioso ler o comentário da chefe de Deaton, a diretora do Departamento, Janet Currie, dizendo que ele é “tremendamente espirituoso, engraçado e culto, de uma erudição assustadora, e excelente companhia”, e ainda que “sempre se preocupou em capturar a complexidade do mundo real”. Certamente não se trata de alguém perfeito. Ao se entrevistar colegas de alguém que acaba de ser premiado com um prêmio tão prestigiado, é de se esperar que falem bem. Contudo, o que escolheram salientar, parece ser potencialmente proveitoso para quem escuta. Um economista de outra universidade destaca, como algo extraordinário em Deaton, “sua capacidade de apresentar ideias incrivelmente complicadas de uma maneira que meros mortais seriam capazes de compreender”. Outro professor, colega de Deaton, afirmou: “trata-se de alguém com a língua afiada e ele sempre teve na mira aqueles que fazem afirmações muito fortes a respeito dessa ou daquela política”. Chama minha atenção esse homem que se dedica a conhecer mais da complexidade da sociedade e do ser social, não dado a extremos em seus posicionamentos, sem deixar de ser crítico, sendo simples sem ser simplista, temperando com bom humor e inteligência, buscando sempre achar o que realmente é importante. E nesse contexto onde se multiplicam fundamentalistas, onde as agressões gratuitas se encontram em todo lugar, onde é fácil se perder e não mais compreender o que é de fato importante, não só cada qual em sua área, mas também na vida como um todo, Deaton nos provoca com sua vida e escolhas, em como escolheu desenvolver e aplicar suas habilidades.
Quando o evangelho de Jesus chega em nós somos desafiados a nos desenvolvermos, inclusive, como parte de nosso culto a Deus, como forma de adoração ao Criador. Somos convidados a considerar tudo o que fazemos como fazendo de todo coração para o Senhor (Cl 3.23), sem medos que nos levam a enterrar talentos. Somos apresentados a novas perspectivas, novos paradigmas, novos sentidos, novas experiências. Ou, como diz o apóstolo Paulo, trata-se de “novidade de vida” (Rm 6.4). Morremos para antigos pressupostos, viciados modos de vida, e somos abertos para o novo, feitos novamente, nos descobrimos num novo viver. A graça divina aí está sendo derramada sobre todos. E os que têm consciência disso podem vivenciá-la em maiores e profundas dimensões.
Nem todos alcançarão um Nobel em sua área, mas há um reconhecimento que a vida no Espírito nos concede e premia com frescor e sabor únicos. E o que pode aparecer é uma vida amorosa, que vai se desenvolvendo em qualidades inerentes e outras adquiridas, e que redunda em benefício de outros. Longe de ser perfeita, mas, sendo aperfeiçoada em amor, em meio a erros e acertos, fracassos e avanços, uma reconciliação fundante vai se dando.
Olhamos para a vida, olhamos para a Bíblia; observamos a sociedade, refletimos sobre nossas escolhas e as implicações da vida em comunidade. Aprendemos com outros, repartimos do que temos, investimos mais e nos escondemos menos, e assim, um cotidiano precioso vai sendo construído. Menos consumo, menos pressa, menos desperdício, melhor aproveitamento, mais paciência, mais consciência. Vamos?
Tempo de quê?
4Quando se abre a Bíblia encontra-se um Deus comprometido com a história humana. Um Deus que ouve o clamor de um povo em sofrimento, um Deus que enxerga ovelhas sem pastor e se comove. Enfim, um Deus que ama. Há diversas intervenções divinas, misericordiosas, a fim de que haja alívio, libertação e salvação. Até que com o nascimento de Jesus, a encarnação do próprio Deus, a mensagem fica mais evidente – o verbo se faz carne (Jo 1.14), e tudo o que se via era graça e verdade.
Em tempos de crise ética, política, econômica, o que esperar? Como agir? Que leitura fazer? Há lição de casa para todo aquele que se diz cristão, afinal, o que não falta é manipulação. Entretanto, ao ver esse Deus da Bíblia, somos inspirados a orar, cheios de esperança.
Nenhuma dor é ignorada, nenhum sofrimento é desconhecido de Deus. As soluções não são mágicas, uma longa trajetória parece ainda nos aguardar, e, fazemos parte daquilo que construímos. Mas, qual o lugar da oração nesses dias?
Mais do que orar por vingança dentro de nossa leitura limitada, de suposta justiça aos nossos olhos turvos, é colocar-se diante de Deus com um coração disposto a ouvir e reconhecer Deus mesmo em tempos difíceis.
Preocupados com o futuro, entregues à ansiedade, engasgamos com o presente, não digerimos o cotidiano, e o mal estar se instala. Abre-se as portas para o desespero, a língua para uma crítica que pouco propõe, sem sabedoria e sem respeito.
Davi, em tempos difíceis, ora e diz: “Contaste os meus passos quando sofri perseguições; recolheste as minhas lágrimas no teu odre; não estão elas inscritas no teu livro? Em Deus, cuja palavra eu louvo, no Senhor, cuja palavra eu louvo, neste Deus ponho minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer o homem?” (Sl 56.8,10-11).
A oração tem o potencial de nos reorientar, nos trazer paz, nos tratar, nos ajudar a reconhecer e bendizer a Deus.
Salomão, filho de Davi, também ora e numa noite ouve o Senhor, que lhe diz: “se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, orar e me buscar, e se converter dos seus maus caminhos…” (II Cr 7.14). O que nos indica a necessidade de orarmos, e que enquanto o fazemos, podemos reconhecer quem somos, a quem verdadeiramente buscamos e entrarmos, ou prosseguirmos, num profundo processo de conversão.
O teólogo Karl Barth dizia que “entrelaçar as mãos em oração é o começo de uma revolução contra a desordem do mundo”. O pastor e professor Eugene Peterson faz a seguinte colocação: “uma vida de oração nos obriga a lidar com a realidade do mundo e de nossas próprias vidas a uma profundidade e a um nível de honestidade raramente experimentados pelos que não oram, além de muita daquela realidade que, certamente, evitaríamos se nos fosse possível”. E o escritor Philip Yancey, comenta que “na oração ficamos perante Deus para interceder por nossa situação, bem como pela situação dos que nos rodeiam. Nesse processo, o ato da oração me dá coragem para participar do trabalho de transformar o mundo num lugar em que a vontade do Pai é de fato feita como é no céu. Afinal, somos o corpo de Cristo na Terra; ele não tem outras mãos a não ser as nossas. E, contudo, para agirmos como Corpo de Cristo, precisamos de uma ligação ininterrupta com a Cabeça [Jesus]”. Ou seja, a oração nos leva a olhar mais uma vez, atentamente, a Jesus. A oração nos conduz a uma observação mais profunda da atitude de Jesus diante da corrupção, da miséria humana, diante dos negligenciados e privilegiados.
Oremos. Para o bem de nossa vida, para o bem da nação, oremos.
Vulnerabilidade crescente na aceleração
4Por esses dias fui a uma livraria perto de casa que costumo frequentar. Lá há um vendedor que, com o decorrer dos anos, desenvolvi uma boa relação. Ele me dá sugestão de livros, trocamos ideias, comentamos sobre o que vemos ao nosso redor, notícias do dia, etc. Ele é um sujeito otimista, apesar de seus 60 anos, e muito atento às impressões das pessoas, suas leituras, o comportamento humano. Assim que cheguei, ao cumprimentá-lo, ele me respondeu: “Na correria, sempre”. Isto também tinha a ver com o novo livro do Drauzio Varella: “Correr”, que eu trazia nas mãos. E aí comentou que hoje as pessoas estão sempre correndo, não importa nem a direção e até nem mesmo a razão, apenas para não se sentir deslocado, para acompanhar o fluxo, e pela facilidade da adesão. Assim, a correria tornou-se modus vivendi.
Abro o jornal e vejo o artigo do renomado filósofo, Oswaldo Giacoia Junior, falando da intensificação da agitação em escala global. Ele comenta que “nossa cadência é determinada pela velocidade operante nos circuitos informativos e comunicacionais nos quais estamos enredados. Nunca se falou e escreveu tanto… acelerando vertiginosamente a temporalidade e proliferando espaços imateriais de fala e escrita conectados em redes sociais de amplíssimo alcance. O WhatsApp, em especial, tornou-se mania, uma irresistível solicitação que nos mantém permanentemente online, fazendo desaparecer nossas horas de estudo e contemplação, alterando nossas noções de urgência e emergência”. Novos ritmos, que nos empurram a uma aceleração maior, que nos fazem ultrapassar limites de velocidade como se não houvesse multas para a alma. Sim, há prejuízos que temos ignorado. Giacoia Jr. prossegue: “Hoje a regra é dada pela ansiedade, que assume proporções exponenciais, a ponto de uma cultura não poder mais amadurecer seus frutos por excesso de rapidez no fluxo do tempo. A civilização barbarizou-se, por falta de tranquilidade. Nunca homens e mulheres ativos, isto é, intranquilos e permanentemente excitados, valeram tanto. Entretanto, no fundo da alma do homem hiperativo disfarça-se a indolência… A rapidez das operações foi transformada em imperativo categórico, que suprime o ‘tempo de pensar’. Nossa loquacidade é signo de indigência mental”.
Desacelerei por um pouco. Meu espírito foi fisgado. Reconheci que em meu caminho havia placas de sinalização que eu precisava respeitar. E isso é tarefa diária.
Nesse tempo, silencio, pauso, depois abro as Escrituras, e leio o registro de Deus falando ao seu povo através do profeta Jeremias: “Vocês se destruirão a si mesmos” (Jr 44.8). Esse alerta divino incluía a questão da idolatria que é sempre autodestrutiva. E considerando nosso contexto com seus falsos deuses e nossas idolatrias modernas, não estaríamos confusos ou ignorantes em relação ao que realmente adoramos, e até mesmo nos autodestruindo sem clareza de nossa ruína? Se temos essa capacidade não seria o caso de revermos a causa de tanta intranquilidade, as ansiedades acalentadas, a correria constante, o coração tão dividido?
A ideia não é multiplicar culpas. Mas o que mais encontro são variados sofrimentos advindos de uma culpa incessante. Ela também me atormenta. E é quase como se a correria, a interação contínua via redes sociais, o não desligar-se nunca, fosse nossa maneira de aplacarmos uma culpa que nem sabemos nomear ao certo. Lembro do Paul Tournier, respeitado psiquiatra cristão, afirmando que “acreditar-se culpado faz exatamente o mesmo efeito que ser culpado, bem como crer-se menos amado faz o mesmo efeito de ser realmente menos amado”.
Ouvir, meditar, desacelerar, contemplar, silenciar, são escolhas. Escolhas necessárias por serem tão preciosas para vermos melhor a vida, aprendermos mais a respeito de nós mesmos, tratarmos aflições ocultas e as já reveladas.
Somos responsáveis por nossas escolhas, e dentre elas, como escolhemos administrar e viver o tempo que nos é dado. E muitos sofrem, ameaçados pelo medo da exclusão, de serem deixados para trás, serem esquecidos nessa multidão sintonizada 24 horas por dia. Buscam, ora com desespero, ora com agressividade, espaços para chamarem atenção, serem notados, reconhecidos, mesmo temerosos de fracassarem. Desassossegados.
Não se lê bem, não se ouve bem, não se permite tempo de reflexão. Apenas se veem pressionados pela urgência de respostas, pela necessidade de se manifestarem, sinalizando que já sabiam, que estão acompanhando, que estão alertas. Cansados e culpados.
Somos tentados a viver, como diz, Giacoia Jr, “a incontinência do entretenimento verborrágico, sempre ocupada e curiosa”. O que escolhemos?
Caim, transtornado, ouviu de Deus: “O pecado o ameaça à porta; ele deseja conquistá-lo, mas você deve dominá-lo” (Gn 4.7). A responsabilidade pelas nossas escolhas é coisa séria. E num contexto onde as opções se multiplicam e caem em nosso colo como um grande avalanche, é preciso refletirmos cuidadosamente sobre as implicações, as motivações e as interações que escolhemos nutrir.
Claro que termos algum espaço para o entretenimento pode ser benéfico, e sem dúvida, interações nas redes sociais podem ser muito bem aproveitadas, entretanto, não é preciso aderir a tudo; dizer “nãos” e ter um tempo maior para refletir sobre as escolhas pode ser estratégico na lida com as tensões cotidianas.
Gente frenética tomando todo tipo de decisão, angustiada pelo medo de errar, cuja ansiedade faz ceder a diversos impulsos. Como diz Zygmunt Bauman: “Antes de agir, não há como ter certeza de que os erros não serão cometidos, assim como é impossível saber de antemão se, no fim do dia, teremos provado estar à altura das circunstâncias. Não há receitas para uma ação à prova de erros, totalmente confiável, ‘sucesso garantido ou seu dinheiro de volta’. (…) Viver é assumir riscos”. Mas uma postura possível, é apontada por Tournier: “Este então é o segredo: um encontro pessoal com Deus. A vida torna-se uma aventura cheia de gozo que é continuamente renovado. Tudo fala de Deus e Deus nos fala através de cada circunstância. Todas as narrativas da Bíblia e todo o ensinamento da igreja nos levam a um conhecimento mais profundo de nós mesmos. Há uma ampliação do campo da consciência”.
Atuando no mundo virtual, interagindo nas redes sociais, lendo um jornal, encontrando conhecidos e conhecendo outros, tudo, potencialmente, passa ser uma oportunidade para amadurecermos, para aprendermos de Deus. Distraídos ficamos mais vulneráveis à idolatrias. Ansiosos, mais vulneráveis à autodestrutividade. Culpados, podemos desprezar a graça de Deus. Como decidimos viver nossa vulnerabilidade em tempos acelerados?
Descobertas sobre um Deus Amigo
3Diante do medo, tristeza, incertezas de discípulos confusos, Jesus diz: “O Amigo, o Espírito Santo, irá esclarecer tudo para vocês” (Jo 14.26).
Jesus estava consciente do que vinha pela frente. Despedidas, crucificação, término de uma etapa, que mudaria tudo, cumpriria algo já resolvido desde a eternidade. Mas também sabia que aqueles que andavam com ele estavam perturbados no coração, desorientados ficariam ainda mais. E ele quer cuidar, prepará-los para tempos difíceis. Gostariam que eles tivessem paz, mesmo em tempos de prováveis inquietações. “Não permitam que esta situação os aflija. Vocês confiam em Deus, não confiam? Confiem em mim” e, “não ficam deprimidos nem perturbados”, “eu os deixarei com assistência plena” (Jo 14.1, 27).
Ao lermos toda a história registrada no Novo Testamento vemos em boa parte o quanto o Espírito de Deus esclareceu, animou, renovou, conduziu, consolou, desafiou, enviou, enfim, fez-se amigo presente – Deus entre nós.
O Espírito de Cristo nos faz lembrar de que Deus sempre desejou oferecer essa segurança ao ser humano caído, aflito, temeroso, abatido. Sensação de derrota e abandono são frequentes em seres frágeis como somos.
E através do profeta Isaías, assim diz o Senhor Deus: “Não tenham medo, eu os redimi. Eu os chamei pelo nome. Vocês são meus. Quando estiverem atolados até o pescoço em problemas, estarei lá com vocês. Quando estiverem atravessando águas profundas, vocês não se afogarão. Quando estiverem entre a cruz e a espada, não será um beco sem saída — Porque eu sou o Eterno, o seu Deus pessoal, seu Salvador”. (Is 43.1-3) E insiste claramente: “não tenham medo: estou com vocês” (Is 43.5).
Jesus evidenciou esse desejo do Pai. Foi a revelação maior desse amor real e profundo que tanto nossa alma almeja. E o Espírito de Deus até hoje procura nos ajudar a vivenciar tão grande amor.
Àqueles que se condenam, àqueles que acham que não tem mais jeito, aos desesperançados e cansados até de si mesmo, àqueles que não sabem por onde ir, aos inseguros e assustados, há palavras seguras: “Diz o Eterno, o Deus que constrói uma estrada através do oceano, que inaugura um caminho através das ondas furiosas; O Deus que fez sair cavalos, carros e exércitos — e eles se deitaram e não conseguiram mais se levantar, foram apagados como um pavio: ‘Esqueçam o que aconteceu, não fiquem lembrando velhas histórias. Fiquem atentos. Não se distraiam. Vou fazer uma coisa diferente. E está para acontecer, não estão percebendo? Estou abrindo uma estrada através do deserto, fazendo correr rios em terras devastadas. Os animais selvagens dirão: ‘Obrigado!’ — os chacais e as corujas — Porque providenciei água no deserto, Rios através da terra ressecada.” (Is 43.16-20). A poética nos convida a lindas imagens que alimentam gente esgotada.
Jesus fez um convite válido para hoje: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Rios de água viva irão jorrar e brotar do íntimo de quem crer em mim, como dizem as Escrituras” (Jo 7.37-8). E é isso que o Espírito de Deus faz em nós. Abre-nos um caminho no coração, faz-nos enxergar por onde ir, nos tira do atoleiro confuso e angustiante, faz algo novo em nós. Do lado de dentro para fora. E usa o lado de fora para trabalhar coisas do lado de dentro. A terra devastada, o deserto, nada disso tem a última palavra. O Espírito nos lembra que Jesus é a esperança de pernas, a esperança feito gente. E nos convida a crer nele. O Deus presente e cuidadoso não nos abandona, seja qual for a situação. E até o silêncio nos fala em algum momento. Assim, vamos descobrindo como se dá o que Jesus disse: “O Amigo, o Espírito Santo, irá clarear, ensinar, esclarecer mais e melhor para vocês”.
Essa vida não é fácil, mas é cheia de esperança. A mais bela aventura.
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