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Opinião

Histórias que não gostamos de ouvir

Por Billy Lane

A Bíblia é um livro de muitas histórias. A maior parte da Bíblia está em forma narrativa e conta a história de indivíduos, famílias e nações. Qualquer pessoa que tenha crescido na igreja provavelmente lembra-se dessas histórias desde a infância quando as ouviu contada, cantada, visualizada, encenada e dramatizada na escola bíblica dominical.

Uma particularidade das histórias bíblicas é que, de certo modo, nelas não há heróis humanos. Talvez, nós leitores é que tornamos os protagonistas em heróis, mas essas personagens estão longe de ser heróis, por mais que sejam figuras inspiradoras para os leitores. Mesmo que os consideremos heróis, as histórias não escondem as falhas deles. As principais figuras da história da salvação na Bíblia – Adão, Noé, Abraão, Moisés, Davi, Salomão, Paulo, Pedro – são humanos fracos e falhos. Nossos ‘heróis’ cometeram toda sorte de maldade. Há histórias de homicídio, fratricídio, adultério, traição, incesto, estupro, suicídio, conspiração contra o pai, conspiração contra irmão, opressão, genocídio, sequestro, rapto, roubo, mutilação, engano, mentira e tantos outros crimes envolvendo todas essas personagens e outras.

Longe de relativizar esses atos e sugerir que devam ser aceitos como normais, a Bíblia os condena, embora o juízo e condenação desses atos se manifestam de modo indireto pelos fatos que se sucedem. De todo modo, o que se percebe é que as histórias bíblicas não escondem o lado humano e pecaminoso do ser humano e não deixam de mostrar as falhas de seus ‘heróis’.

Talvez, quando nos deparamos com algumas dessas histórias temos a impressão de que retratam uma sociedade muito primitiva e tribal, por isso, damos um desconto e entendemos que muitos dos crimes cometidos eram devido à falta de confiança e fidelidade à Deus, mas que hoje não é mais assim. Contudo, ao olhar para noticiário de hoje, ouvimos muitas histórias que não gostaríamos de ouvir. Não estou me referindo a histórias de povos tribais ou estados totalitários. Estou falando de uma sociedade moderna, civilizada, pluralista, livre, tolerante, de direito constituído. São histórias de violência, estupro, assassinato, roubos, assaltos, opressão, guerra, traição, etc. Às vezes, parece que estamos mais próximos das histórias dos livros de Juízes do que das histórias inocentes do Davi que derrotou o Golias, Jonas que foi engolido pela baleia, Moisés que fez abrir o mar, Josué que atravessou o Jordão e derrubou as muralhas de Jericó.

Diante de algumas histórias de violência, crime e calamidades da atualidade nos sentimos como Jeremias que diz, “quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm 3.21). Queremos ouvir histórias de acertos, bons exemplos, relatos inspiradores e motivadores que despertem nossa esperança e confiança de que as coisas não estão fora de controle, que não é possível que uma sociedade moderna, livre de padrões morais e éticos nobres, com instituições sociais, religiosas, políticas e judiciais sólidas chega a tamanho grau de degradação moral e ética de suas instituições e cidadãos.

Algumas histórias que mais me impressionam na Bíblia quanto à depravação humana e da sociedade estão no livro de Juízes. A importância do livro de Juízes parece ser apenas para mostrar a transição entre a liderança de Moisés e Josué para a monarquia de Israel e, claro, para contar histórias do heroísmo de Gideão e de Sansão, ou de Balão que foi contratado para amaldiçoar Israel, mas por intervenção de Deus acabou abençoando o povo de Deus. Mas olhando com calma, percebo que é muito significativa sua mensagem e muito pertinente e relevante para nós hoje.

A história do livro de Juízes é uma daquelas histórias que começa ruim e termina pior ainda. Não dá para dizer ‘pior do que está não fica’, porque durante o período dos juízes a sociedade se desintegra do ponto de vista da coesão nacional, estruturas de poder, religião e moral. Juízes nos conta que depois da morte de Josué e toda aquela geração, a geração seguinte não conhecia o Senhor nem as obras que ele fez em Israel, e os israelitas passaram a servir os deuses dos cananeus (Jz 2.9-12). As últimas palavras de Juízes dizem, “Naqueles dias Israel não tinha rei; cada um fazia o que parecia certo a seus próprios olhos” (Jz 21.25; NVT). De todo modo, podemos aprender algumas coisas com as histórias de Juízes.

1.
A tragédia de uma geração que não conhece a Deus. O fato de uma geração surgir sem conhecer a Deus e os seus feitos significa que a geração anterior deixou de contar as histórias dos feitos de Deus para seus filhos e netos. Salmos 78 tratam disso: “O que ouvimos e aprendemos, o que nos contaram nossos pais, não o encobriremos a seus filhos; contaremos à vindoura geração os louvores do SENHOR, e o seu poder, e as maravilhas que fez [...] a fim de que a nova geração os conhecesse [...] para que pusessem em Deus a sua confiança e não se esquecessem dos feitos de Deus” (78.3-4, 6, 7, RA). A geração de Josué deixou de contar as histórias da redenção. Isso foi uma tragédia do ponto de vista da vida religiosa e política da nação.

2.
Uma sociedade deixada à sua própria sorte faz brotar o pior da natureza e instinto humanos
, embora o ideal da autonomia do indivíduo e da sociedade do humanismo iluminista moderno deposite grande confiança na bondade e altruísmo dos indivíduos. Juízes retrata uma crise de liderança na sociedade e a falta de parâmetros morais, religiosos, políticos e sociais. Uma sociedade assim abre caminho para lideranças violentas, autoritárias e abusivas.

3.
A pior opressão de Israel em Juízes não é a que foi causada por reis estrangeiros, mas a que foi provocada pelos próprios israelitas contra os seus irmãos. Até o capítulo 16, Juízes conta a história dos juízes que libertaram o povo da opressão de reis inimigos. O último juiz foi Sansão, cuja história ocupa quatro capítulos (13–16) e é o mais pitoresco. Temos dificuldade de entender o sentido dessa história além de talvez acentuar a insensatez e a total depravação da sociedade daquela época. Porém, quando se pensa que já se ouviu de tudo, descobrimos que as histórias de Sansão não são nada em comparação com o que vem em seguida. Os últimos capítulos (17–21) contam basicamente duas histórias chocantes. Uma de um cidadão que institui um levita como sacerdote em seu santuário particular, que depois é raptado junto com as imagens e utensílios sagrados pela tribo de Dã. A outra história também envolve um levita e sua concubina que foi violentada pelos homens da cidade de Gibeá e depois esquartejada pelo próprio levita e enviada em pedaços para todas as tribos de Israel (Jz 19).

Por quatro vezes, se repete a expressão “não havia rei em Israel” (17.6; 18.1; 19.1; 21.25). Talvez seja uma forma de justificar posteriormente a importância de um rei em Israel (1Sm 8). Seja como for, mostra a maldade que os israelitas foram capazes de provocar aos seus próprios irmãos. O problema de Israel não era nem o imperialismo de grandes nações, o expansionismo das nações vizinhas, nem um rei déspota que oprimia seu povo. A nação tinha abandonado a aliança, isto é, o padrão de justiça estabelecido por Deus por meio da aliança.

4.
Apesar da corrupção e idolatria do povo e de seus líderes, Deus age de modo extraordinário enviando libertadores (juízes) para livrar o seu povo da opressão inimiga. Esses juízes estão longe de serem bons exemplos, pelo contrário, não fosse o “Espírito do Senhor” (3.10; 6.34; 11.29; 13.25; 14.6), o juiz não era capaz de agir sozinho.

Ouvimos muitas histórias em nossos dias que preferíamos não ouvir. Pensamos até onde chegará a maldade, injustiça, desigualdade, violência, corrupção, ganância e prepotência humana. Quando pensamos que chegamos ao fundo do poço, ouvimos histórias ainda mais horrendas.

Sem querer despertar nenhum maniqueísmo político, religioso ou social, as últimas palavras do cântico de Débora (provavelmente o mais antigo poema da Bíblia) refletem qual deve ser a nossa esperança: “Assim, ó Senhor, pereçam todos os teus inimigos! Porém os que te amam brilham como o sol quando se levanta no seu esplendor” (Jz 5.31). Não podemos achar, porém, que o inimigo é o outro partido político, a outra religião ou outra nação. O inimigo a ser vencido é o pecado humano e tudo que promova a morte e a desintegração do ser humano e sua alienação de Deus, do próximo, de si mesmo e da natureza.

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Pastor presbiteriano e doutor em Antigo Testamento, é professor e capelão no Seminário Presbiteriano do Sul, e tradutor de obras teológicas. É autor do livro O propósito bíblico da missão.
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