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Opinião

Black Mirror e o nosso falso self de cada dia

Por Carlos e Clara Caldas

Você já assistiu a algum episódio de Black Mirror? Trata-se de uma série britânica com temática de ficção científica em estilo distópico, com situações apresentadas em um futuro próximo. O grande tema de Black Mirror está em analisar os efeitos da tecnologia na vida das pessoas, especialmente se estas se tornam dependentes daquelas. A série é bastante diferente das tradicionais, porque cada episódio tem elenco, tema e diretor diferentes. Mas sempre abordando a mesma questão macro, que, como já afirmado, tem a ver com as consequências da tecnologia no dia a dia das pessoas. A série está disponível no canal de streaming Netflix, e tem sido bastante aclamada em todo o mundo, tanto em termos de público como de crítica.

O título Black Mirror (“espelho negro”) é uma provocação: o espelho negro é a tela de TV, ou de um smartphone ou Iphone, ou um monitor de computador. É uma denúncia do vício em tecnologia que, praticamente, todo mundo sofre: estamos todos olhando para um espelho opaco, sem brilho, sem luz, que não reflete a nossa imagem, mas, talvez, exatamente o que existe por dentro.

Este artigo aborda apenas o primeiro episódio da terceira temporada: “Queda livre”. O título original, em inglês, é Nosedive, que significa literalmente “cair, ou mergulhar, de nariz”, o que faz com que o título em português seja uma boa tradução. Dirigido por Joe Wright, o episódio possui qualidades que o diferencia e o destaca de outros da série. A partir da primeira cena já é possível notar um detalhe que não diminuirá até a última: a paleta cromática. Todo o cenário, objetos de cena e figurino são deliciosamente harmônicos. Em tons pastéis, principalmente rosados, observamos o belo trabalho da direção de arte ao criar um mundo aparentemente perfeito, complementando brilhantemente toda a história.

A narrativa de “Queda Livre” fala de uma sociedade em um futuro próximo, no qual todos estão conectados em uma imensa rede social. Existe uma espécie de Facebook que, literalmente, controla a vida de todo mundo – absolutamente, todas as áreas da vida. As pessoas usam uma lente de contato que lhes informa quantos pontos cada pessoa tem, em uma pontuação que vai até cinco. Isso influencia não só o seu sucesso online, mas off-line também: o trabalho, lugar onde mora, onde pode ir, com quem pode conversar, o que pode comprar. Tudo depende da sua pontuação e até a atitude no trânsito pode influenciá-la. Quem tem escore alto, próximo de cinco, consegue descontos na compra de produtos e recebe atendimento diferenciado. Essa rede social funciona, então, como um banco, ou um RG. Aí, claro, todo mundo vai fazer tudo para parecer agradável e esbanjar simpatia, porque os mínimos olhares, gestos e atitudes de todos são avaliados por todos. E todos querem amizade com alguém que tem pontuação elevada. Por isso, todo mundo quer aparecer como sendo feliz, alegre e bem sucedido na vida. Tal como no Instagram e Facebook atuais. O que sugere pensar que a rede social inventada por Mark Zuckerberg bem que poderia se chamar “Fakebook” – algo como livro da farsa ou da enganação.

>>> Nosso ego sempre vai ter público nas redes sociais <<<

No episódio em questão, Lacie (a bela atriz norte-americana Bryce Dallas Howard), é solteira, vive com seu irmão e quer alugar uma casa, mas a que julga ser conveniente está muito acima do seu orçamento. Todavia, se ela alcançar uma média de 4,5 naquela rede social, conseguirá um desconto significativo que lhe permitirá fechar o negócio. Detalhe: sua nota atual é 4,2, ou seja, falta pouco para alcançar seu objetivo. A sorte parece sorrir para Lacie quando Naomie, sua amiga de infância, a convida para ser sua madrinha de casamento. Afinal, Naomie é uma das poucas que alcançou a fantástica nota 5. Só que a partir daí, a vida de Lacie entra em uma espiral descendente, ela se torna uma vítima da inexorável Lei de Murphy, e tudo que poderia acontecer de errado com ela, aconteceu. Em uma impressionante sequência de desventuras em série, ela vê sua nota despencar ladeira abaixo (o “nosedive” do título original). Por fim, ela é presa. Na cadeia vê um jovem que também estava trancafiado e começam a conversar. A libertação, a cura, vem quando um começa a xingar o outro. Eles não precisam mais de máscaras, e podem ser o que são.

A partir da teoria do psicanalista inglês Winnicott (1896-1971), podemos traçar algumas hipóteses sobre o desenvolvimento psíquico de Lacie para entender um pouco pelo o que ela passou. Provavelmente, seus criadores (aqueles que exerceram as funções materna e paterna) provocaram falhas no ambiente e nas etapas precoces de seu desenvolvimento, ou seja, quando bebê – o que a impediu de vivenciar seu verdadeiro self, prevalecendo seu falso self. Todos temos verdadeiro self e falso self, pois um nível de falso self é necessário e saudável. Afinal, não conseguiríamos viver em sociedade dizendo tudo o que pensamos. O que diferencia o comum do patológico é a intensidade de cada um deles.

O problema está na intensidade do falso e verdadeiro self de cada um. Dependendo da gravidade das falhas, isso pode ser a principal causa para certos quadros psicopatológicos. Isto porque, em um caso mais grave, o falso self substitui o real. O bebê, e o adulto futuro, aceita as exigências que o meio lhe impõe e constrói um conjunto de relacionados falsos, que tem por base a imitação e a identificação. É o que vemos em cena: Lacie vive sem espontaneidade e criatividade, sempre preocupada em responder a expectativa do que ela acha que o outro quer. Na cena final, quando presa, é o único momento em que podemos ver seu verdadeiro self. Ela mostra o que verdadeiramente pensa e o que é.

>>> Selfies, idolatria e o segundo mandamento <<<

Na busca desesperada por aprovação alheia, as pessoas se tornam falsas e não se mostram como verdadeiramente são. Todos querem agradar a todos. A sociedade se transforma em uma imensa fogueira de vaidades e ninguém tem coragem de se mostrar como é.

A partir da perspectiva cristã, temos que nos lembrar de pelo menos dois pontos: o primeiro, é que somos seres em construção. Nenhum de nós está pronto. Nenhum de nós é perfeito. Os primeiros seguidores de Jesus foram chamados de “os do Caminho” (At 9.2, 19,23; 18.26; 22.4; 24;22), o que sugere que estamos a caminho, e isto inclui a totalidade da nossa vida. Ainda não estamos prontos. Logo, não temos que tentar mostrar para ninguém uma santidade e uma perfeição que não temos. O segundo ponto a ser lembrado é a mensagem da graça: o anúncio do favor não merecido de Deus, que nos aceita como somos, e não como gostaríamos de ser, é um corretivo poderoso contra qualquer tentativa de nos mostrarmos como imaginamos que o outro gostaria que fôssemos.

Queda livre é um episódio profético, no sentido que tudo indica que caminhamos cada vez mais para uma sociedade em que todos avaliam todos o tempo todo em tudo, e todos querem agradar a todos o tempo todo em tudo. A mensagem cristã nos diz que não precisamos querer desagradar a todos o tempo todo em tudo. Mas também não precisamos ser escravos de aparências nem da opinião alheia.

• Carlos e Clara Caldas são pai e filha. Carlos é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas em Belo Horizonte, e Clara é graduanda em Psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo.

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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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