Prateleira
- 10 de março de 2010
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Tempo para viver
Isabelle Ludovico da Silva
Traduzir este livro profundo com ressonâncias de meu mentor, Hans Burki, foi muito inspirador1. Ele trata das raízes espirituais da nossa relação com o tempo e de suas implicações existenciais. Para que a redenção penetre até em nossas agendas, precisamos nos reconciliar com o tempo que Deus nos dá.
Diante do estresse provocado por agendas superlotadas, tendemos a buscar técnicas para dominar o tempo. São ajudas externas. Mas estar em paz com o tempo é uma questão espiritual. A maneira como usamos nosso tempo revela o que está no centro da nossa vida; revela nossas crenças e valores mais secretos. Será que temos consciência que a agitação da nossa vida – sobrevida mal vivida - tem relação com a nossa onipotência? É a nossa maneira distorcida de lidar com o tempo que faz com que ele nos escape. Nossos esforços e boas resoluções são inúteis. O que salva é ouvir o Espírito no recôndito do nosso ser e não um melhor desempenho, uma agenda mais organizada. Passar do tempo-maldição ao tempo da graça! O pecado é querer ser sem limite. Ao experimentar seus limites, o homem reage com ira e busca superá-los e ultrapassá-los! A sabedoria do coração mostra-se na aceitação da nossa fragilidade e temporalidade. Pela redenção do tempo dada àqueles que se reconhecem verdadeiramente mortais, faz-se a experiência que, no lugar da ira de Deus, é a sua graça que está sobre nós.
O silêncio e a meditação permitem enxergar, atrás da aproximação técnica, uma realidade escondida: a realidade interior, nossa angustia existencial diante da morte. A prática meditativa nos convida a ligar o que separamos tão frequentemente: pensamento e ação, vida interior e exterior, espírito e corpo, realidade visível e invisível, tempo corporal e tempo espiritual. Ela nos faz descobrir regiões interiores inexploradas. Enquanto a meditação oriental enfatiza o desapego do mundo, buscando uma dissolução da identidade pessoal no todo cósmico, a meditação cristã almeja o silêncio e um tempo dedicado a uma “presença”. Ela visa não o desapego, mas o apego a Deus e aos seres humanos. Leva a uma integração pessoal que permite se doar mais plenamente a Deus. Seu movimento é descendente como o da encarnação: ele nos torna mais humanos, mais inseridos no mundo, que, mesmo não sendo a realidade final, é onde o Espírito opera.
A meditação estabelece relações: ela integra cada evento da nossa vida à nossa história e vocação. Revela a divergência entre o que afirmamos crer e nossas crenças mais escondidas, que, normalmente, só se manifestam na crise e na adversidade. Por meio da meditação, podemos ir ao encontro destes sentimentos negados, permitindo que o Espírito nos faça avançar no caminho da liberdade. A meditação é um despertar em profundidade que desperta profundezas. O silêncio é um tempo de preparação para que o desejo e a vontade da superfície entrem em harmonia com nosso ser íntimo. Ele visa nos tornar presentes para Deus, para vê-lo agir e para ver como ele vê.
Parafraseando a fala de Jesus (“o sabat foi feito para o homem e não o homem para o sabat”), podemos dizer que o tempo foi feito para o homem. E Jesus termina esta passagem com a afirmação: “O Filho do homem é senhor também do sabat”. O “sabat” é associado à criação, mas é também um dos dez mandamentos. Na Bíblia, é à respeito do tempo que a palavra “santo” aparece pela primeira vez. A santidade não está relacionada a um lugar (um monte, uma cidade) ou a uma coisa em particular (tentação de idolatria!), e sim ao tempo. O “sabat” nos livra da tirania das coisas. Ele nos chama à alegria de viver na celebração da criação. É uma festa em família, em torno da mesa. O que foi criado no sétimo dia? A tranquilidade, a serenidade, a paz e o descanso. É a qualidade de vida da eternidade. Dá-nos o gosto da eternidade. Graças a ele, a eternidade penetra no nosso tempo e o resgata. O “sabat” permite ao homem um distanciamento libertador do mundo. Ele lhe oferece a oportunidade de voltar a ser mestre e não escravo – até mesmo de seu tempo. O homem é convidado a livrar-se de suas amarras para entrar num espaço de descanso e paz, percebendo a primazia do ser sobre o fazer.
Queremos quase sempre fazer demais, realizar demais... Será que este desejo vem do centro de nós mesmos, onde Deus habita, ou da pressão de expectativas nossas ou dos outros? O “sabat” nos remete a um descanso que, conforme o relato bíblico, é anterior à queda. Somos convidados a descansar em Deus. É na paz da reconciliação que pode nascer uma atividade radicalmente diferente, oriunda do perdão, da gratuidade e da liberdade.
Paradoxalmente, é quando aceitamos nossa condição de pecadores, miseráveis e mortais, que Deus nos resgata e nos abre a porta de seu reino eterno.
Nota
1. Burki, Hans. Tempo para viver, São Paulo: Arte Editorial, 2009.
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Traduzir este livro profundo com ressonâncias de meu mentor, Hans Burki, foi muito inspirador1. Ele trata das raízes espirituais da nossa relação com o tempo e de suas implicações existenciais. Para que a redenção penetre até em nossas agendas, precisamos nos reconciliar com o tempo que Deus nos dá.
Diante do estresse provocado por agendas superlotadas, tendemos a buscar técnicas para dominar o tempo. São ajudas externas. Mas estar em paz com o tempo é uma questão espiritual. A maneira como usamos nosso tempo revela o que está no centro da nossa vida; revela nossas crenças e valores mais secretos. Será que temos consciência que a agitação da nossa vida – sobrevida mal vivida - tem relação com a nossa onipotência? É a nossa maneira distorcida de lidar com o tempo que faz com que ele nos escape. Nossos esforços e boas resoluções são inúteis. O que salva é ouvir o Espírito no recôndito do nosso ser e não um melhor desempenho, uma agenda mais organizada. Passar do tempo-maldição ao tempo da graça! O pecado é querer ser sem limite. Ao experimentar seus limites, o homem reage com ira e busca superá-los e ultrapassá-los! A sabedoria do coração mostra-se na aceitação da nossa fragilidade e temporalidade. Pela redenção do tempo dada àqueles que se reconhecem verdadeiramente mortais, faz-se a experiência que, no lugar da ira de Deus, é a sua graça que está sobre nós.
O silêncio e a meditação permitem enxergar, atrás da aproximação técnica, uma realidade escondida: a realidade interior, nossa angustia existencial diante da morte. A prática meditativa nos convida a ligar o que separamos tão frequentemente: pensamento e ação, vida interior e exterior, espírito e corpo, realidade visível e invisível, tempo corporal e tempo espiritual. Ela nos faz descobrir regiões interiores inexploradas. Enquanto a meditação oriental enfatiza o desapego do mundo, buscando uma dissolução da identidade pessoal no todo cósmico, a meditação cristã almeja o silêncio e um tempo dedicado a uma “presença”. Ela visa não o desapego, mas o apego a Deus e aos seres humanos. Leva a uma integração pessoal que permite se doar mais plenamente a Deus. Seu movimento é descendente como o da encarnação: ele nos torna mais humanos, mais inseridos no mundo, que, mesmo não sendo a realidade final, é onde o Espírito opera.
A meditação estabelece relações: ela integra cada evento da nossa vida à nossa história e vocação. Revela a divergência entre o que afirmamos crer e nossas crenças mais escondidas, que, normalmente, só se manifestam na crise e na adversidade. Por meio da meditação, podemos ir ao encontro destes sentimentos negados, permitindo que o Espírito nos faça avançar no caminho da liberdade. A meditação é um despertar em profundidade que desperta profundezas. O silêncio é um tempo de preparação para que o desejo e a vontade da superfície entrem em harmonia com nosso ser íntimo. Ele visa nos tornar presentes para Deus, para vê-lo agir e para ver como ele vê.
Parafraseando a fala de Jesus (“o sabat foi feito para o homem e não o homem para o sabat”), podemos dizer que o tempo foi feito para o homem. E Jesus termina esta passagem com a afirmação: “O Filho do homem é senhor também do sabat”. O “sabat” é associado à criação, mas é também um dos dez mandamentos. Na Bíblia, é à respeito do tempo que a palavra “santo” aparece pela primeira vez. A santidade não está relacionada a um lugar (um monte, uma cidade) ou a uma coisa em particular (tentação de idolatria!), e sim ao tempo. O “sabat” nos livra da tirania das coisas. Ele nos chama à alegria de viver na celebração da criação. É uma festa em família, em torno da mesa. O que foi criado no sétimo dia? A tranquilidade, a serenidade, a paz e o descanso. É a qualidade de vida da eternidade. Dá-nos o gosto da eternidade. Graças a ele, a eternidade penetra no nosso tempo e o resgata. O “sabat” permite ao homem um distanciamento libertador do mundo. Ele lhe oferece a oportunidade de voltar a ser mestre e não escravo – até mesmo de seu tempo. O homem é convidado a livrar-se de suas amarras para entrar num espaço de descanso e paz, percebendo a primazia do ser sobre o fazer.
Queremos quase sempre fazer demais, realizar demais... Será que este desejo vem do centro de nós mesmos, onde Deus habita, ou da pressão de expectativas nossas ou dos outros? O “sabat” nos remete a um descanso que, conforme o relato bíblico, é anterior à queda. Somos convidados a descansar em Deus. É na paz da reconciliação que pode nascer uma atividade radicalmente diferente, oriunda do perdão, da gratuidade e da liberdade.
Paradoxalmente, é quando aceitamos nossa condição de pecadores, miseráveis e mortais, que Deus nos resgata e nos abre a porta de seu reino eterno.
Nota
1. Burki, Hans. Tempo para viver, São Paulo: Arte Editorial, 2009.
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Francesa de nascimento e brasileira de coração, é psicóloga e terapeuta sistêmica. Aprendeu com a filha a separar o lixo e com o filho um estilo de vida mais simples.
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