Opinião
- 29 de outubro de 2014
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Sola Fide
O termo “fé” pode aparecer associado a um tipo de adesão a um conjunto de afirmações sobre a verdade cristã como se encontra nas antigas fórmulas batismais e no Credo Apostólico. O recém-convertido tinha que declarar sua “fé” em um Deus que é Pai e Criador; no Filho de Deus em sua morte, ressurreição, ascensão e advento; e finalmente, no Espírito Santo, na Igreja e na redenção eterna. Segundo Irineu de Lion (II séc. d.C.), esta é a tradição que foi legada pelos apóstolos, transmitida pelas Escrituras “para que fosse para nós fundamento e coluna da nossa fé.”1 Por esta razão, o famoso Credo de Atanásio começa com a seguinte afirmação: “Quem quiser salvar-se deve antes de tudo professar a fé católica.”2
A “fé” associada a certa profissão e confissão teve amplo uso por toda cristandade. Agostinho fez uso da “fé” neste sentido em suas “Confissões”. Porém, ainda assim, a compreendia de forma particular. Segundo Agostinho, Jesus Cristo “foi revelado aos santos dos antigos tempos, para que eles se salvassem pela fé em sua paixão futura, como nós nos salvamos pela fé em sua paixão passada”.3 Ou seja, para ele, todos os santos, do passado, do presente e do futuro, são salvos mediante a fé em Cristo, o Salvador eterno. Já, em Tomás de Aquino, a fé seria um tipo de adesão ou confiança intelectual e racional a respeito dos dogmas cristãos em geral.4
Porém, durante o século XVI, Martinho Lutero vai para além do “conhecimento” que se obtém pela fé. Sua preocupação é com o “status” do homem perante Deus, com a salvação propriamente dita. São conhecidas suas tensões internas diante da justiça de Deus e como sua alma encontrou descanso quando depositara sua fé na obra expiatória de Cristo. Em suas palavras:
“Embora, como monge, vivesse uma vida irrepreensível, sentia-me um pecador com a consciência culpada diante de Deus. Eu também não podia acreditar que havia agradado a Deus com minhas obras... comecei a entender a 'justiça de Deus' como aquela justiça por meio da qual o justo vive pelo dom de Deus (a fé); em que essa frase: 'é revelada a justiça de Deus', faz referência a uma justiça passiva, por meio da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, conforme está escrito, 'o justo viverá pela fé'. Imediatamente, tive a sensação de haver nascido de novo, como se estivesse entrando pelos portões abertos do paraíso.”5
Algo milagroso aconteceu em Lutero quando “confiou” de forma irrestrita nos méritos de Cristo. Para ele, a “fé não somente faz que a alma se torne livre, cheia de graça e bem-aventurada […] mas também une a alma com Cristo, como uma noiva com seu noivo.”6 Misteriosamente, esta união pela fé faz com que os deméritos, pecado e condenação do cristão sejam transferidos para Cristo. Em contrapartida, a retidão, justiça e santidade de Cristo são agora atribuídas (imputadas) ao crente. Somente assim, o homem pode ser introduzido como justo perante Deus. Desta forma, a doutrina de Paulo sobre a justificação pela fé é retomada e defendida amplamente pelo reformador. Nenhum aparato eclesiástico, ritos, indulgências, dogmas, obras legalistas ou projetos religiosos poderiam obstruir o acesso do cristão ao Salvador que se dá apenas pela fé.
Foi assim que se desenvolveu um dos princípios da reforma protestante: o “sola fide” (fé somente). Somente pela fé em Cristo pode um cristão ser justificado. Todas as maravilhas da vida cristã só podem ser desfrutadas a partir da fé em Cristo. Jesus é o fundamento onde se encontra sentido existencial e senso de propósito. O pecado tem sua raiz na incredulidade. Pecar exige ateísmo deliberado, negar a existência e a presença de Deus no mundo. Como o ser humano é obstinado por sentido, depositará algum tipo de “fé” em algum projeto de felicidade, ídolo ou falso deus. Porém, quando há fé autêntica, dada como um dom, ela é depositada em Cristo; daí, o homem pode desfrutar de plena liberdade. O eterno foi introduzido no tempo pela encarnação de Cristo. Qualquer tentativa de encontrar realização no tempo sem o eterno, estará fadada ao fracasso e a radicalidade da morte.
Enfim, a salvação encontra-se em depositar confiança fiel e graciosa naquele que se fez carne e venceu a morte. Assim, torrentes de amor procederão do coração deste cristão ou nas palavras de Lutero: “da fé fluem o amor e o prazer em Deus, e do amor flui uma vida livre, animada e feliz, para servir desinteressadamente ao próximo.”7
• Igor Miguel é teólogo, pedagogo, mestre em língua hebraica pela USP, coordenador pedagógico da ONG OMCV e membro da Igreja Esperança em Belo Horizonte (MG).
Notas:
1. Contra as Heresias, Livro III, 1,1.
2. No texto original: “Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est, ut teneat catholicam fidem.” Lembrando que o termo “fé católica” é usado pelo antigos pais da Igreja com o sentido de uma “fé universal” ou uma fé comum a todos os cristãos.
3. Confissões, XLIII.
4. Claro que existe um sentido em que a fé que salva é racional. Mas, ela não é meramente a confiança racional em certas proposições credais.
5. Lecture on Romans
6. Lutero, Martinho. Da Liberdade do Cristão (1520). Tradução Bilíngue. São Paulo: UNESP, 1998. p.37.
7. Ibidem, p. 63.
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Porém, durante o século XVI, Martinho Lutero vai para além do “conhecimento” que se obtém pela fé. Sua preocupação é com o “status” do homem perante Deus, com a salvação propriamente dita. São conhecidas suas tensões internas diante da justiça de Deus e como sua alma encontrou descanso quando depositara sua fé na obra expiatória de Cristo. Em suas palavras:
“Embora, como monge, vivesse uma vida irrepreensível, sentia-me um pecador com a consciência culpada diante de Deus. Eu também não podia acreditar que havia agradado a Deus com minhas obras... comecei a entender a 'justiça de Deus' como aquela justiça por meio da qual o justo vive pelo dom de Deus (a fé); em que essa frase: 'é revelada a justiça de Deus', faz referência a uma justiça passiva, por meio da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, conforme está escrito, 'o justo viverá pela fé'. Imediatamente, tive a sensação de haver nascido de novo, como se estivesse entrando pelos portões abertos do paraíso.”5
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Foi assim que se desenvolveu um dos princípios da reforma protestante: o “sola fide” (fé somente). Somente pela fé em Cristo pode um cristão ser justificado. Todas as maravilhas da vida cristã só podem ser desfrutadas a partir da fé em Cristo. Jesus é o fundamento onde se encontra sentido existencial e senso de propósito. O pecado tem sua raiz na incredulidade. Pecar exige ateísmo deliberado, negar a existência e a presença de Deus no mundo. Como o ser humano é obstinado por sentido, depositará algum tipo de “fé” em algum projeto de felicidade, ídolo ou falso deus. Porém, quando há fé autêntica, dada como um dom, ela é depositada em Cristo; daí, o homem pode desfrutar de plena liberdade. O eterno foi introduzido no tempo pela encarnação de Cristo. Qualquer tentativa de encontrar realização no tempo sem o eterno, estará fadada ao fracasso e a radicalidade da morte.
Enfim, a salvação encontra-se em depositar confiança fiel e graciosa naquele que se fez carne e venceu a morte. Assim, torrentes de amor procederão do coração deste cristão ou nas palavras de Lutero: “da fé fluem o amor e o prazer em Deus, e do amor flui uma vida livre, animada e feliz, para servir desinteressadamente ao próximo.”7
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Notas:
1. Contra as Heresias, Livro III, 1,1.
2. No texto original: “Quicumque vult salvus esse, ante omnia opus est, ut teneat catholicam fidem.” Lembrando que o termo “fé católica” é usado pelo antigos pais da Igreja com o sentido de uma “fé universal” ou uma fé comum a todos os cristãos.
3. Confissões, XLIII.
4. Claro que existe um sentido em que a fé que salva é racional. Mas, ela não é meramente a confiança racional em certas proposições credais.
5. Lecture on Romans
6. Lutero, Martinho. Da Liberdade do Cristão (1520). Tradução Bilíngue. São Paulo: UNESP, 1998. p.37.
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