Opinião
25 de janeiro de 2012
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Os vagabundos de Pinheirinho?

Não quero entrar no mérito sobre a ilegalidade das ações da polícia paulista em Pinheirinho. Não que elas não mereçam análise de mérito, mas a deixo a cargo daqueles que, com o cinismo característico, perdem-se num interminável complexo de Adão, que comeu a maçã por culpa de Eva, que a comeu por culpa da serpente. E a serpente... bem, a serpente são os outros. O soldado matou porque o coronel mandou. O coronel mandou porque o governador assim o requereu. E para o governador, que descumpriu uma ordem federal para que suspendesse a reintegração de posse, a culpa é da justiça.
Minha pequena nota dirige-se, então, especificamente a algumas observações que li nas redes sociais nos últimos dias sobre esse caso. Muitos comentaram que todos os moradores do Pinheirinho são “vagabundos e preguiçosos” por morarem em terreno “dos outros”, e, portanto, mereceram ser expulsos de lá, mesmo à bala. Fiquei pensando no seguinte: segundo dados recentes da ONU (The Chronic Poverty Report 2008-09), 1,2 bilhões de pessoas no mundo vivem abaixo da linha da pobreza, isto é, com menos de US$ 1,00 (um dólar) por dia para satisfazer todas as necessidades pessoais. Desse total, cerca de 1 bi (um bilhão) vive em favelas (UN-Habitat 2010), sendo que mais da metade está em áreas privadas sem regularização por parte do Estado, como é o caso do Pinheirinho. Ou seja, estamos falando em 500 milhões de “vagabundos e preguiçosos” ao redor do mundo que precisam ser expulsos de suas casas com urgência.
Outros comentários alegavam que os “vagabundos” desobedeceram à lei ao ocuparem um terreno privado. Não lhes culpo por acharem assim, mas talvez desconheçam que estamos aqui diante de uma colisão de normas do sistema jurídico. A propriedade privada merece, sim, a proteção constitucional e efetiva do Estado. Mas esta mesma Constituição estabelece como máxima que a propriedade urbana somente deve ser passível de proteção pelo Estado se atender à sua função social, o que não é o caso do Pinheirinho, cujo terreno é mantido unicamente como fruto de especulação financeira imobiliária. A ordem judicial paulista de reintegração de posse, além de desconsiderar esse princípio constitucional, descumpriu acordos internacionais firmados pelo Brasil em matéria de moradia. Alguns deles são: Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 25); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 11); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 4, artigo 17); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (artigo 5, e, iii); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (artigo 14.2); Convenção dos Direitos das Crianças (artigo 27.3).
Deduzo que há nas entrelinhas de tais comentários, e, principalmente no senso comum dos brasileiros, uma falsa ideia de que o crescimento econômico faz/fará automaticamente, e por si só, com que desapareçam as favelas. Entretanto, se, como propaga o governo, dez milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema no Brasil, outros vinte milhões ainda continuam à margem. Tudo num contexto em que é extremamente rarefeita a ligação de pessoas sem moradia com o acesso à saúde, à educação, ao trabalho digno. Defender a fundamentalidade transcendente do direito à moradia a essas pessoas é reconhecer, portanto, que a moradia traça uma linha divisória entre a pobreza e a miséria extrema, entre a vulnerabilidade e absoluta vulnerabilidade, de modo que um melhor acesso à segurança social requer de igual modo um melhor acesso à moradia.
Ver a questão do Pinheirinho e de outras comunidades, tais como “Dandara” em Belo Horizonte (MG), fora das lentes da justiça social é caminhar por um viés que privilegia um discurso monocromático, unilateral, indiferente a outras condicionantes, e que flerta com a assimetria do poder de polícia numa síntese da visão do mundo nietzchiana, que glorifica o poder e a força. Atitudes semelhantes às do Governo Paulista tornam o Brasil, tão avesso e carente de respostas globais a problemas coletivos, mais impermeável ainda às condicionantes históricas de pobreza, miséria, escravidão, pseudo-empregos, precário sistema de saúde, analfabetismo total e funcional e déficit de maturidade democrática de sua população. Quando se atenua a justiça, a democracia torna-se delgada. Onde seres humanos são mortos por defenderem seu abrigo, a liberdade perde a sua casa e a justiça é destinada a ser morta também.
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Áquila Mazzinghy é professor de Direito Internacional e Direitos Humanos.
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