Opinião
- 16 de outubro de 2015
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O regime dos refugiados
O tempo em que vivemos tem sido de singular perplexidade, por causa da intensidade dos acontecimentos que nos surpreendem por seus impactos. Junto às instabilidades políticas e econômicas vislumbra-se um futuro cada vez mais imprevisível. O presente está concentrado de processos passados numa escala universal e interligados na (des)ordem globalizada.
Os cenários se modificam com rapidez e as explicações ou respostas outrora relevantes enfrentam o desafio de serem pertinentes ainda. Inclusive a teologia. O que dizer, por exemplo, sobre os refugiados sírios, africanos, afegãos, curdos, hutus, tutsis e muitos outros mais, que têm se deslocado para outras regiões com o único objetivo de sobreviver?
Interesses internacionais e locais, envolvendo a exploração de riquezas como jazidas minerais e petróleo, os tráficos de drogas e de pessoas, as intolerâncias religiosas, a concorrência entre multinacionais e a corrupção dos governos têm vitimado centenas de milhares de inocentes. Reduzir a questão ao radicalismo islâmico significa tanto desconhecimento da complexidade da situação como o risco de discriminação religiosa.
De acordo com a ACNUR (2014)1, o refugiado é uma pessoa que está fora do seu país natal devido a:
“perseguições relacionadas à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. São pessoas comuns, que tiveram que deixar para trás seus bens, empregos, familiares e amigos para preservar sua liberdade, sua segurança e sua vida. Também são consideradas refugiadas pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos”.
Segundo o relatório da ACNUR, os migrantes internacionais também vivem fora de seus países. Mas, ao contrário dos refugiados, escolhem viver em outros países por motivos econômicos, e não para salvar suas vidas ou garantir sua liberdade e seus direitos. Só em 2015, 521 mil pessoas chegaram à Europa pelo mar mediterrâneo, e quase 3 mil morreram ou desapareceram tentando chegar2. 84% das pessoas vêm dos dez países que mais produzem refugiados, que são: Síria, Afeganistão, Eritreia, Nigéria, Iraque, Paquistão, Somália, Sudão, Gâmbia e Bangladesh. Apesar da visibilidade dada à Europa pela constante chegada de pessoas, a maior parte dos refugiados se encontra em países como a Turquia, o Líbano, a Jordânia, o Paquistão e a Etiópia.
A prática de garantir asilo a pessoas perseguidas em outros países remonta à antiguidade. Referências foram encontradas em textos escritos há mais de 3.500 anos, durante o florescimento de grandes impérios que existiram no Oriente Médio, como o Babilônico, o Assírio e o Egípcio, de acordo com o relatório da ACNUR. A ida dos filhos de Jacó para o Egito exemplifica isso.
Apesar do fenômeno de pessoas serem forçadas a deixar suas casas sempre ter existido, os primeiros refugiados reconhecidos como tais no sistema de estados modernos foram os Huguenotes, franceses protestantes deixando a França em 1685. Entretanto, desde o tratado de Westphalia (1648), o regime de refugiados tem se desenvolvido juntamente com o estado moderno, refletindo mudanças nas leis internacionais (BARNETT, 2002, p. 239).
O século XIX presenciou a erupção de revoluções políticas e nacionalistas por todo o continente europeu, com dissidentes políticos fugindo e buscando refúgio em outros países. A Revolução Russa de 1917 causou o primeiro êxodo em massa do século XX, com mais de 1 milhão de pessoas deixando a Rússia entre os anos de 1917-1921 (BARNETT, 2002, p. 241).
O “regime de refugiados” finalmente emergiu sob a Liga das Nações e depois das duas guerras mundiais, com a criação de um quadro permanente para lidar com o problema dos refugiados, através da ACNUR em 1950 e da convenção da ONU sobre os refugiados. A perseguição dos judeus pelos nazistas provocou importante fluxo durante o período entre guerras, em que 350 mil judeus escaparam da Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia até 1939, marcando um novo período de movimento e deslocamento. Quando a guerra acabou em 1945, 30 milhões de pessoas estavam sem ter para onde voltar (BARNETT, 2002, p. 241).
A guerra fria foi determinante sobre as normas e as regras desse regime e, no cenário após a guerra fria, o “regime dos refugiados” lutou para refletir e se adaptar às questões globais emergentes. A eclosão de conflitos políticos e étnicos pelo mundo aumentou a massa migratória em escala global (BARNETT, 2002, p. 247). Com o ataque de 11 de setembro, o terrorismo virou o grande assunto da agenda da segurança internacional e exportou o medo para o resto do mundo, não sem interesses da indústria bélica.
Para a igreja não basta orar! Passagens como Lv 19.33,34 e Mt 25.35 precisam ser aplicadas ao contexto de um mundo globalizado. Os refugiados são humanos que clamam por acolhimento humano, fazendo cair por terra os triunfalismos missiológicos pragmáticos da “implantação de igrejas”. Precisamos conhecer mais a sua realidade antes de emitirmos opiniões generalizadas que demonstram leituras apressadas, se não preconceituosas3.
Notas:
1. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ou UNHCR – Agência da ONU para Refugiados.
2. Veja um mapa atualizado dessas migrações recentes, disponível aqui. Acessado em 29 de setembro de 2015.
3. Este é o segundo da série sobre a história dos refugiados. Leia o primeiro artigo.
Fontes:
ACNUR. Protegendo refugiados no Brasil e no mundo. Relatório. Brasília, 2014. Disponível aqui.
BERNETT, Laura Bernett. “Global Governance and the Evolution of the International Refugee Regime, Intenational”. In: Journal of Refugee Law, vol. 14, issue 2 and 3, 2002.
MOULIN, Carolina. “Refugiados: entre a política do medo e da solidariedade”. Disponível aqui. Acessado em 29/9/2015.
• Mariana Fernandes Braga Santos, estudante de Relações Internacionais (PUC-RJ), colaborou com este artigo.
Leia também
A Igreja, o País e o Mundo
Sobre os refugiados e a responsabilidade da igreja
Eu era estrangeiro e vocês me receberam
Foto: Abdul Kade, de 73 anos, fugiu de sua casa em Raqaa, na Síria, quando os combatentes cercaram sua casa. Para conseguir fugir, se escondeu por 3 dias, com seu filho de 6 anos. ACNUR / E. Champagne.
Os cenários se modificam com rapidez e as explicações ou respostas outrora relevantes enfrentam o desafio de serem pertinentes ainda. Inclusive a teologia. O que dizer, por exemplo, sobre os refugiados sírios, africanos, afegãos, curdos, hutus, tutsis e muitos outros mais, que têm se deslocado para outras regiões com o único objetivo de sobreviver?
Interesses internacionais e locais, envolvendo a exploração de riquezas como jazidas minerais e petróleo, os tráficos de drogas e de pessoas, as intolerâncias religiosas, a concorrência entre multinacionais e a corrupção dos governos têm vitimado centenas de milhares de inocentes. Reduzir a questão ao radicalismo islâmico significa tanto desconhecimento da complexidade da situação como o risco de discriminação religiosa.
De acordo com a ACNUR (2014)1, o refugiado é uma pessoa que está fora do seu país natal devido a:
“perseguições relacionadas à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. São pessoas comuns, que tiveram que deixar para trás seus bens, empregos, familiares e amigos para preservar sua liberdade, sua segurança e sua vida. Também são consideradas refugiadas pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos”.
Segundo o relatório da ACNUR, os migrantes internacionais também vivem fora de seus países. Mas, ao contrário dos refugiados, escolhem viver em outros países por motivos econômicos, e não para salvar suas vidas ou garantir sua liberdade e seus direitos. Só em 2015, 521 mil pessoas chegaram à Europa pelo mar mediterrâneo, e quase 3 mil morreram ou desapareceram tentando chegar2. 84% das pessoas vêm dos dez países que mais produzem refugiados, que são: Síria, Afeganistão, Eritreia, Nigéria, Iraque, Paquistão, Somália, Sudão, Gâmbia e Bangladesh. Apesar da visibilidade dada à Europa pela constante chegada de pessoas, a maior parte dos refugiados se encontra em países como a Turquia, o Líbano, a Jordânia, o Paquistão e a Etiópia.
A prática de garantir asilo a pessoas perseguidas em outros países remonta à antiguidade. Referências foram encontradas em textos escritos há mais de 3.500 anos, durante o florescimento de grandes impérios que existiram no Oriente Médio, como o Babilônico, o Assírio e o Egípcio, de acordo com o relatório da ACNUR. A ida dos filhos de Jacó para o Egito exemplifica isso.
Apesar do fenômeno de pessoas serem forçadas a deixar suas casas sempre ter existido, os primeiros refugiados reconhecidos como tais no sistema de estados modernos foram os Huguenotes, franceses protestantes deixando a França em 1685. Entretanto, desde o tratado de Westphalia (1648), o regime de refugiados tem se desenvolvido juntamente com o estado moderno, refletindo mudanças nas leis internacionais (BARNETT, 2002, p. 239).
O século XIX presenciou a erupção de revoluções políticas e nacionalistas por todo o continente europeu, com dissidentes políticos fugindo e buscando refúgio em outros países. A Revolução Russa de 1917 causou o primeiro êxodo em massa do século XX, com mais de 1 milhão de pessoas deixando a Rússia entre os anos de 1917-1921 (BARNETT, 2002, p. 241).
O “regime de refugiados” finalmente emergiu sob a Liga das Nações e depois das duas guerras mundiais, com a criação de um quadro permanente para lidar com o problema dos refugiados, através da ACNUR em 1950 e da convenção da ONU sobre os refugiados. A perseguição dos judeus pelos nazistas provocou importante fluxo durante o período entre guerras, em que 350 mil judeus escaparam da Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia até 1939, marcando um novo período de movimento e deslocamento. Quando a guerra acabou em 1945, 30 milhões de pessoas estavam sem ter para onde voltar (BARNETT, 2002, p. 241).
A guerra fria foi determinante sobre as normas e as regras desse regime e, no cenário após a guerra fria, o “regime dos refugiados” lutou para refletir e se adaptar às questões globais emergentes. A eclosão de conflitos políticos e étnicos pelo mundo aumentou a massa migratória em escala global (BARNETT, 2002, p. 247). Com o ataque de 11 de setembro, o terrorismo virou o grande assunto da agenda da segurança internacional e exportou o medo para o resto do mundo, não sem interesses da indústria bélica.
Para a igreja não basta orar! Passagens como Lv 19.33,34 e Mt 25.35 precisam ser aplicadas ao contexto de um mundo globalizado. Os refugiados são humanos que clamam por acolhimento humano, fazendo cair por terra os triunfalismos missiológicos pragmáticos da “implantação de igrejas”. Precisamos conhecer mais a sua realidade antes de emitirmos opiniões generalizadas que demonstram leituras apressadas, se não preconceituosas3.
Notas:
1. Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ou UNHCR – Agência da ONU para Refugiados.
2. Veja um mapa atualizado dessas migrações recentes, disponível aqui. Acessado em 29 de setembro de 2015.
3. Este é o segundo da série sobre a história dos refugiados. Leia o primeiro artigo.
Fontes:
ACNUR. Protegendo refugiados no Brasil e no mundo. Relatório. Brasília, 2014. Disponível aqui.
BERNETT, Laura Bernett. “Global Governance and the Evolution of the International Refugee Regime, Intenational”. In: Journal of Refugee Law, vol. 14, issue 2 and 3, 2002.
MOULIN, Carolina. “Refugiados: entre a política do medo e da solidariedade”. Disponível aqui. Acessado em 29/9/2015.
• Mariana Fernandes Braga Santos, estudante de Relações Internacionais (PUC-RJ), colaborou com este artigo.
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Sobre os refugiados e a responsabilidade da igreja
Eu era estrangeiro e vocês me receberam
Foto: Abdul Kade, de 73 anos, fugiu de sua casa em Raqaa, na Síria, quando os combatentes cercaram sua casa. Para conseguir fugir, se escondeu por 3 dias, com seu filho de 6 anos. ACNUR / E. Champagne.
Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
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