Opinião
- 20 de junho de 2017
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Heresias, hereges e radicais
Por Lyndon de Araújo Santos
Nenhum movimento promotor de grandes e profundas transformações históricas aconteceu sem antecedentes de longa duração. Assim foi com as reformas do século 16. As suas tão conturbadas décadas iniciais resultaram de processos que se remontam ao século 12, na Europa ocidental. Diversos movimentos sociais e religiosos tomaram corpo naquele intervalo de 400 anos. Eles tiveram natureza popular, carismática, apocalíptica, missionária, teológica – e, claro, de protesto político-social. Houve uma série de questionamentos à hierarquia eclesiástica e à própria estrutura da sociedade feudal, por meio de construções teológicas consideradas heresias, do ponto de vista do poder religioso que assim as definiu.
Por um lado, eles surgiram desde os estratos baixos e médios da população excluída e marginalizada economicamente, condicionada pelo imaginário medieval e pelas necessidades de sobrevivência material. As populações mais simples praticavam uma religiosidade sincrética – algo entre a fé cristã e as antigas crenças, com rituais herdados de suas tradições pagãs que manipulavam ervas, raízes, chás, remédios, alucinógenos e poções, aplicados aos enfermos e crianças, por exemplo, junto a rezas, orações e fórmulas mágicas. Por outro lado, eclodiram dentro da própria estrutura da Igreja – erigida ao patamar de instituição religiosa dominante –, em aliança com a nobreza ou a aristocracia. A Inquisição e as cruzadas, as perseguições às mulheres, aos judeus, aos pagãos, aos muçulmanos e aos grupos étnicos minoritários (caso dos ciganos), foram ações legitimadas pelo discurso teológico oficial, representado pela teologia escolástica. No entanto, organizações e forças internas eram desejosas de renovação espiritual.
Houve uma radicalização da prática cristã a partir, sobretudo, da leitura dos Evangelhos, na busca de imitar o estilo de vida de Jesus e dos apóstolos
Podemos, aqui, citar a maior parte destas chamadas heresias, nos séculos 12 e 13, bem como seus protagonistas. Gente como Pedro de Bruys e monge Henrique de Lausanne; Hugo Speroni; Eudo de Stella; Arnaldo de Bréscia; Joaquim de Fiore; os cátaros ou albigenses; Pedro Valdo e os valdenses; os beguinos e Gerardo Segarelli, com os pseudoapóstolos ou apóstolos de Cristo. Este conjunto pode ser considerado precursor da Reforma seiscentista, devido às suas ênfases teológicas e eclesiásticas, bem como ao teor do protesto social que carregava. Tais movimentos foram reprimidos, perseguidos ou cooptados pela Igreja Católica, utilizando o braço secular do Estado e a própria população por meio de ações de violência. Por criticarem o poder, a corrupção e a riqueza da Igreja – buscando um retorno à simplicidade e à pobreza da vida de Jesus como exemplo a ser demonstrado ao povo –, esses grupos também passaram a ser chamados de ordens mendicantes.
Ação e reação
Houve uma radicalização da prática cristã a partir, sobretudo, da leitura dos Evangelhos, na busca de imitar o estilo de vida de Jesus e dos apóstolos, dentro de um ideal de penitência alimentado pela expectativa de um supostamente iminente fim do mundo. Este foi o exemplo do rico comerciante Pedro Valdo ou Valdez de Lyons (1140-1220), que “ficou profundamente abalado com a leitura das Escrituras Sagradas por volta de 1173”, como menciona Nachman Falbel em seu livro Heresias medievais, lançado pela Editora Perspectiva. Ele traduziu o Evangelho para o provençal, renunciou aos seus bens e os distribuiu aos pobres. Homens e mulheres passaram a segui-lo, andando de dois a dois em pobreza apostólica e pregando a penitência. O movimento de espalhou, recebendo a adesão em grande parte dos chamados Humilhados da Lombardia, grupo que se associou aos valdenses.
O papa Lúcio III, no Sínodo de Verona de 1184, os excomungou, depois de tentativas frustradas de os proibirem de pregar e limitarem seu raio de ação. Os valdenses e seus agregados tornaram-se andarilhos, pregando na clandestinidade e auxiliando os adeptos em suas necessidades pastorais. Cumpriam um tríplice voto de pobreza, castidade e obediência aos superiores, e traduziram as Escrituras para línguas vulgares. Quanto às doutrinas da Igreja da época – como a do purgatório, a oração pelos mortos e as missas de sufrágio, bem como o culto aos santos e as indulgências –, eles as negavam solenemente. Apenas o batismo, a eucaristia a e penitência eram observados como sacramentos. Seus ramos francês e italiano se espalharam pela Europa, não sem perseguições pela Inquisição. Como resultado, muitos de seus expoentes acabaram nas fogueiras.
Nos séculos 13 a 15, a Igreja Católica promoveu, de dentro dos seus quadros, renovações no pensamento teológico e na espiritualidade. Foi a época em que floresceram o escolasticismo e surgiram as catedrais e os mosteiros, bem como as universidades. Ao mesmo tempo, novas ordens religiosas, como os dominicanos e os franciscanos, ganharam espaço. No entanto, ela mesma desenvolveu mecanismos de controle social e de acumulação de riquezas que se tornaram, no transcorrer do tempo, opressores aos mais pobres e simples. Ademais, o clero alimentava práticas como o nepotismo, a simonia e o tráfico de influência na escolha e nomeação de papas e de cardeais. Durante determinado período, a Igreja chegou a conviver com três papados nos conflitos políticos urdidos entre os concílios, o poder pontifical e os interesses dos reinos com tendências nacionalistas e de formação dos estados.
Aquele foi um tempo de mudanças profundas. O ideal de uma cristandade era construído ao custo das alianças com a nobreza e com a nova classe emergente: a burguesia mercantil. Catástrofes de grandes proporções, como a peste negra que assolou a Europa no século 14, matando um terço de sua população, abalaram a crença popular na eficácia da mediação da Igreja. Já o Renascimento, que promoveu um espetacular florescimento cultural e científico, trouxe outros paradigmas da racionalidade política, filosófica e intelectual, deslocando a fonte da verdade da instituição religiosa e da sua tradição para a razão e a ciência. Era o chamado empirismo. Assim, as condições para o aprofundamento da crise religiosa e social estavam dadas no alvorecer do século 15, quando surgiram movimentos mais radicais de renovação e de questionamento da vida corrupta, dos costumes, das doutrinas e da hierarquia da Igreja. Uma destas vozes foi a de John Wycliff, que viveu na Inglaterra durante a época do cativeiro babilônico do papado, como o define Justo Gonzalez em sua obra La era de los sueños frustrados. Acadêmico, erudito, polemista e ligado à universidade de Oxford, Wycliff (1328-1384) defendia o senhorio de Cristo, relativizando os poderes civil e eclesiástico. Dessa forma, questionava os limites das ações do estado e da Igreja.
Sua crítica atingia os privilégios, a cobrança de impostos e a autoridade do papa, a quem chegou a comparar ao anticristo. A argumentação lógica partia das Escrituras, as quais deveriam ser traduzidas aos idiomas vernáculos e serem colocadas como autoridade sobre o papa e a tradição. A verdadeira Igreja era o conjunto dos predestinados e constituía-se em um corpo invisível. Declarado herege por defender outra teologia referente à eucaristia, próxima à de Lutero, Wycliff teve suas ideias continuadas pelo movimento lolardo, também surgiu dentro de Oxford. Tão ou mais radicais que o estudioso inglês, seus adeptos pregavam contra a distinção entre clero e laicato, os cargos públicos dos ministros, o celibato, o culto às imagens, as peregrinações, as orações pelos mortos e a transubstanciação.
O "Apocalipse" de Savonarola
Outro pregador que merece destaque no período conhecido como a pré-Reforma foi o dominicano Jerônimo Savonarola, que ganhou visibilidade na Florença dos Médicis. Inflamado nas pregações e de grande erudição bíblica, ele conquistou reconhecimento e fama quando fez conferências e sermões sobre o livro de Apocalipse no convento dominicano de São Marcos. Savonarola uniu às suas profecias os ataques contra a corrupção da Igreja e a denúncia à opressão que a elite florentina exercia sobre a população, sobretudo através da cobrança de impostos.
O movimento que mudou os rumos da Igreja foi precedido pela opção que gerações de cristãos e cristãs fizeram pela prática de vida simples, radical e questionadora do poder das hierarquias eclesiásticas
Eleito prior de São Marcos, Savonarola tomou uma atitude ousada: vendeu todas as propriedades do convento, doando o dinheiro aos pobres e levando a vida dos frades a uma simplicidade exemplar. Suas profecias se cumpriram com os acontecimentos que envolveram a cidade de Florença e a invasão da França, pelo rei Carlos VIII. Savonarola foi ainda um hábil negociador. Com a crise dos Médicis e a ocupação francesa, ele intermediou acordos que o colocaram como um líder político na cidade. Ao propor reformas que ajudariam aos menos favorecidos, o dominicano atingiu os interesses de boa parte da aristocracia e chocou-se com o luxo e a ostentação renascentistas. Suas pregações inflamadas exaltavam os ouvintes e a cidade que o tinha como um profeta operador de milagres. Jerônimo Savonarola sofreu forte oposição do papa Alexandro VI, que não aceitava suas críticas à cúpula da Igreja. Além disso, havia fortes interesses políticos que tentavam afastá-lo da liderança na cidade italiana. A ruína econômica, as pressões externas e a perda do apoio da aristocracia e da burguesia fizeram com que seu prestígio decaísse. Capturado em São Marcos, foi condenado pelo papa como herege e promovedor de cismas. Barbaramente torturado, Savonarola foi enforcado e queimado pelo novo Conselho de Florença.
Falar na Reforma Protestante agora, quando se celebram os 500 anos do movimento, é prestar tributo a pessoas, acontecimentos e movimentos de longa duração, sem os quais, provavelmente, ela não aconteceria da maneira como a conhecemos hoje. Lembremo-nos ainda de outros precursores, como Guilherme de Ockham (1285-1349) e Erasmo de Roterdã (1466-1536), bem como místicos medievais como Mestre Eckhart (1260-1328), Juan de Ruysbroeck (1293-1381), Gerardo de Groot (1340-1384), Thomas à Kempis (1380-1471) e os Irmãos da Vida Comum. Com estas testemunhas e mártires, aprendemos que o movimento que mudou os rumos da Igreja foi precedido pela opção que gerações de cristãos e cristãs fizeram pela prática de vida simples, radical e questionadora das alianças entre as hierarquias eclesiásticas e os poderes opressores da história.
Nenhum movimento promotor de grandes e profundas transformações históricas aconteceu sem antecedentes de longa duração. Assim foi com as reformas do século 16. As suas tão conturbadas décadas iniciais resultaram de processos que se remontam ao século 12, na Europa ocidental. Diversos movimentos sociais e religiosos tomaram corpo naquele intervalo de 400 anos. Eles tiveram natureza popular, carismática, apocalíptica, missionária, teológica – e, claro, de protesto político-social. Houve uma série de questionamentos à hierarquia eclesiástica e à própria estrutura da sociedade feudal, por meio de construções teológicas consideradas heresias, do ponto de vista do poder religioso que assim as definiu.
Por um lado, eles surgiram desde os estratos baixos e médios da população excluída e marginalizada economicamente, condicionada pelo imaginário medieval e pelas necessidades de sobrevivência material. As populações mais simples praticavam uma religiosidade sincrética – algo entre a fé cristã e as antigas crenças, com rituais herdados de suas tradições pagãs que manipulavam ervas, raízes, chás, remédios, alucinógenos e poções, aplicados aos enfermos e crianças, por exemplo, junto a rezas, orações e fórmulas mágicas. Por outro lado, eclodiram dentro da própria estrutura da Igreja – erigida ao patamar de instituição religiosa dominante –, em aliança com a nobreza ou a aristocracia. A Inquisição e as cruzadas, as perseguições às mulheres, aos judeus, aos pagãos, aos muçulmanos e aos grupos étnicos minoritários (caso dos ciganos), foram ações legitimadas pelo discurso teológico oficial, representado pela teologia escolástica. No entanto, organizações e forças internas eram desejosas de renovação espiritual.
Houve uma radicalização da prática cristã a partir, sobretudo, da leitura dos Evangelhos, na busca de imitar o estilo de vida de Jesus e dos apóstolos
Podemos, aqui, citar a maior parte destas chamadas heresias, nos séculos 12 e 13, bem como seus protagonistas. Gente como Pedro de Bruys e monge Henrique de Lausanne; Hugo Speroni; Eudo de Stella; Arnaldo de Bréscia; Joaquim de Fiore; os cátaros ou albigenses; Pedro Valdo e os valdenses; os beguinos e Gerardo Segarelli, com os pseudoapóstolos ou apóstolos de Cristo. Este conjunto pode ser considerado precursor da Reforma seiscentista, devido às suas ênfases teológicas e eclesiásticas, bem como ao teor do protesto social que carregava. Tais movimentos foram reprimidos, perseguidos ou cooptados pela Igreja Católica, utilizando o braço secular do Estado e a própria população por meio de ações de violência. Por criticarem o poder, a corrupção e a riqueza da Igreja – buscando um retorno à simplicidade e à pobreza da vida de Jesus como exemplo a ser demonstrado ao povo –, esses grupos também passaram a ser chamados de ordens mendicantes.
Ação e reação
Houve uma radicalização da prática cristã a partir, sobretudo, da leitura dos Evangelhos, na busca de imitar o estilo de vida de Jesus e dos apóstolos, dentro de um ideal de penitência alimentado pela expectativa de um supostamente iminente fim do mundo. Este foi o exemplo do rico comerciante Pedro Valdo ou Valdez de Lyons (1140-1220), que “ficou profundamente abalado com a leitura das Escrituras Sagradas por volta de 1173”, como menciona Nachman Falbel em seu livro Heresias medievais, lançado pela Editora Perspectiva. Ele traduziu o Evangelho para o provençal, renunciou aos seus bens e os distribuiu aos pobres. Homens e mulheres passaram a segui-lo, andando de dois a dois em pobreza apostólica e pregando a penitência. O movimento de espalhou, recebendo a adesão em grande parte dos chamados Humilhados da Lombardia, grupo que se associou aos valdenses.
O papa Lúcio III, no Sínodo de Verona de 1184, os excomungou, depois de tentativas frustradas de os proibirem de pregar e limitarem seu raio de ação. Os valdenses e seus agregados tornaram-se andarilhos, pregando na clandestinidade e auxiliando os adeptos em suas necessidades pastorais. Cumpriam um tríplice voto de pobreza, castidade e obediência aos superiores, e traduziram as Escrituras para línguas vulgares. Quanto às doutrinas da Igreja da época – como a do purgatório, a oração pelos mortos e as missas de sufrágio, bem como o culto aos santos e as indulgências –, eles as negavam solenemente. Apenas o batismo, a eucaristia a e penitência eram observados como sacramentos. Seus ramos francês e italiano se espalharam pela Europa, não sem perseguições pela Inquisição. Como resultado, muitos de seus expoentes acabaram nas fogueiras.
Nos séculos 13 a 15, a Igreja Católica promoveu, de dentro dos seus quadros, renovações no pensamento teológico e na espiritualidade. Foi a época em que floresceram o escolasticismo e surgiram as catedrais e os mosteiros, bem como as universidades. Ao mesmo tempo, novas ordens religiosas, como os dominicanos e os franciscanos, ganharam espaço. No entanto, ela mesma desenvolveu mecanismos de controle social e de acumulação de riquezas que se tornaram, no transcorrer do tempo, opressores aos mais pobres e simples. Ademais, o clero alimentava práticas como o nepotismo, a simonia e o tráfico de influência na escolha e nomeação de papas e de cardeais. Durante determinado período, a Igreja chegou a conviver com três papados nos conflitos políticos urdidos entre os concílios, o poder pontifical e os interesses dos reinos com tendências nacionalistas e de formação dos estados.
Aquele foi um tempo de mudanças profundas. O ideal de uma cristandade era construído ao custo das alianças com a nobreza e com a nova classe emergente: a burguesia mercantil. Catástrofes de grandes proporções, como a peste negra que assolou a Europa no século 14, matando um terço de sua população, abalaram a crença popular na eficácia da mediação da Igreja. Já o Renascimento, que promoveu um espetacular florescimento cultural e científico, trouxe outros paradigmas da racionalidade política, filosófica e intelectual, deslocando a fonte da verdade da instituição religiosa e da sua tradição para a razão e a ciência. Era o chamado empirismo. Assim, as condições para o aprofundamento da crise religiosa e social estavam dadas no alvorecer do século 15, quando surgiram movimentos mais radicais de renovação e de questionamento da vida corrupta, dos costumes, das doutrinas e da hierarquia da Igreja. Uma destas vozes foi a de John Wycliff, que viveu na Inglaterra durante a época do cativeiro babilônico do papado, como o define Justo Gonzalez em sua obra La era de los sueños frustrados. Acadêmico, erudito, polemista e ligado à universidade de Oxford, Wycliff (1328-1384) defendia o senhorio de Cristo, relativizando os poderes civil e eclesiástico. Dessa forma, questionava os limites das ações do estado e da Igreja.
Sua crítica atingia os privilégios, a cobrança de impostos e a autoridade do papa, a quem chegou a comparar ao anticristo. A argumentação lógica partia das Escrituras, as quais deveriam ser traduzidas aos idiomas vernáculos e serem colocadas como autoridade sobre o papa e a tradição. A verdadeira Igreja era o conjunto dos predestinados e constituía-se em um corpo invisível. Declarado herege por defender outra teologia referente à eucaristia, próxima à de Lutero, Wycliff teve suas ideias continuadas pelo movimento lolardo, também surgiu dentro de Oxford. Tão ou mais radicais que o estudioso inglês, seus adeptos pregavam contra a distinção entre clero e laicato, os cargos públicos dos ministros, o celibato, o culto às imagens, as peregrinações, as orações pelos mortos e a transubstanciação.
O "Apocalipse" de Savonarola
Outro pregador que merece destaque no período conhecido como a pré-Reforma foi o dominicano Jerônimo Savonarola, que ganhou visibilidade na Florença dos Médicis. Inflamado nas pregações e de grande erudição bíblica, ele conquistou reconhecimento e fama quando fez conferências e sermões sobre o livro de Apocalipse no convento dominicano de São Marcos. Savonarola uniu às suas profecias os ataques contra a corrupção da Igreja e a denúncia à opressão que a elite florentina exercia sobre a população, sobretudo através da cobrança de impostos.
O movimento que mudou os rumos da Igreja foi precedido pela opção que gerações de cristãos e cristãs fizeram pela prática de vida simples, radical e questionadora do poder das hierarquias eclesiásticas
Eleito prior de São Marcos, Savonarola tomou uma atitude ousada: vendeu todas as propriedades do convento, doando o dinheiro aos pobres e levando a vida dos frades a uma simplicidade exemplar. Suas profecias se cumpriram com os acontecimentos que envolveram a cidade de Florença e a invasão da França, pelo rei Carlos VIII. Savonarola foi ainda um hábil negociador. Com a crise dos Médicis e a ocupação francesa, ele intermediou acordos que o colocaram como um líder político na cidade. Ao propor reformas que ajudariam aos menos favorecidos, o dominicano atingiu os interesses de boa parte da aristocracia e chocou-se com o luxo e a ostentação renascentistas. Suas pregações inflamadas exaltavam os ouvintes e a cidade que o tinha como um profeta operador de milagres. Jerônimo Savonarola sofreu forte oposição do papa Alexandro VI, que não aceitava suas críticas à cúpula da Igreja. Além disso, havia fortes interesses políticos que tentavam afastá-lo da liderança na cidade italiana. A ruína econômica, as pressões externas e a perda do apoio da aristocracia e da burguesia fizeram com que seu prestígio decaísse. Capturado em São Marcos, foi condenado pelo papa como herege e promovedor de cismas. Barbaramente torturado, Savonarola foi enforcado e queimado pelo novo Conselho de Florença.
Falar na Reforma Protestante agora, quando se celebram os 500 anos do movimento, é prestar tributo a pessoas, acontecimentos e movimentos de longa duração, sem os quais, provavelmente, ela não aconteceria da maneira como a conhecemos hoje. Lembremo-nos ainda de outros precursores, como Guilherme de Ockham (1285-1349) e Erasmo de Roterdã (1466-1536), bem como místicos medievais como Mestre Eckhart (1260-1328), Juan de Ruysbroeck (1293-1381), Gerardo de Groot (1340-1384), Thomas à Kempis (1380-1471) e os Irmãos da Vida Comum. Com estas testemunhas e mártires, aprendemos que o movimento que mudou os rumos da Igreja foi precedido pela opção que gerações de cristãos e cristãs fizeram pela prática de vida simples, radical e questionadora das alianças entre as hierarquias eclesiásticas e os poderes opressores da história.
Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
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