Opinião
- 11 de abril de 2017
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Fé fraca também é fé
Por Martin Weingaertner
Quem se ocupa com Martinho Lutero faz bem em lembrar sua breve fala diante do “parlamento” do Império na qual declarou que sua consciência estava presa à Palavra de Deus. Esta consiste na “mensagem de paz do filho de Deus que se tornou homem, sofreu e foi ressuscitado pelo Espírito Santo para o nosso bem”. A graça divina concedida por meio de Jesus Cristo cativou-o. O evangelho molda também o retrato de Lutero como conselheiro espiritual. Ele expressa a importância que conferia ao aconselhamento num sermão sobre 1 Pedro 2.11-20:
"Os que exercem o ministério eclesiástico, isto é, os pregadores e curas d’alma, queiram aprender como devem portar-se em relação aos fracos e frágeis. Devem aprender a reconhecê-los como Cristo nos conhece. Isto é, não devem abordá-los áspera e grosseiramente com insistência e imposição, nem com condenações… mas agir delicada e cuidadosamente com eles, carregando a sua fraqueza até que se fortaleçam."
O reformador, no entanto, não restringe a ‘cura d’alma’ ao clero. A descoberta da graça resultou na afirmação do sacerdócio geral dos crentes que, por sua vez, rompeu com o domínio clerical. Num sermão sobre Mateus 18.19-20 ele interpreta a amplitude desta incumbência do Senhor:
"Aqui o Senhor Cristo estende esta consolação ainda mais sem, no entanto, abandonar o âmbito da comunidade cristã. Porque anteriormente (Cristo) disse que se deve punir e banir o pecado na igreja, bem como pregar o perdão dos pecados para que se saiba o que é pecado. Agora, ele afirma que não quer que isto (seja feito) apenas na igreja, mas que este direito e esta liberdade também devem existir, onde dois ou três estiverem reunidos no seu nome. Eles devem poder consolar, anunciar e atribuir perdão dos pecados um ao outro. Portanto, (Cristo) inunda seus cristãos totalmente por todos os lados muito mais abundantemente e os satura com o perdão dos pecados, para que não encontrem perdão dos pecados apenas na sua comunidade, mas também em casa, no campo, no jardim. Onde quer que alguém procure ao outro, deve (poder) receber consolação e salvação."
Nesta conclusão Lutero concretiza o sacerdócio geral dos crentes na ministração do perdão. Nela fica evidente o contraste com a tradição católica que até os dias atuais restringe esta missão ao clero.
Além da fundamentação no evangelho é preciso lembrar como Lutero entendia as causas das nossas aflições. Ao explicar a prece “Não nos deixes cair em tentação” ele identifica três fontes da tentação:
“... na carne habitamos e arrastamos conosco o velho homem. […] Além disso, é o mundo que nos ofende com palavras e obras e nos impele à cólera e impaciência. […] A isso ainda junta-se o diabo, (que) também instiga e provoca por toda parte, mas dedica-se especialmente ao que diz respeito à consciência e às coisas espirituais… Seu propósito é arrancar-nos da fé, da esperança e do amor e levar-nos à superstição, falsa arrogância e obstinação ou ao... desespero…”
Expostos às tentações que brotam (1) da nossa própria natureza, (2) do mundo que nos agride de fora e (3) do diabo que nos ataca pelas costas, necessitamos da pregação e do aconselhamento fraterno para nos lembrar de recorrer a Deus.
Não temos mais acesso às conversas que Lutero manteve, nem às confissões que ouviu. Mas ele nos legou uma vasta correspondência da qual podemos inferir um retrato dele como conselheiro espiritual. A seguir analiso como amostra a carta que escreveu em 1525 a uma mulher que desconhecemos. Escrita em latim indica que esta mulher teve acesso à formação, algo raro na época:
"Prezada senhora, contaram-me como o seu coração sofre grande provação na fé. Sinto muito e peço a Deus que ele lhe seja misericordioso e queira fortalecê-la, já que não duvido de que, com o tempo, ele o fará. Entregue-se unicamente à vontade dele, que você conhece, caso ele o queria e deixe você assim por um tempo. Considere que fé fraca também é fé, e que Cristo está tão perto dos fracos como dos fortes, como Paulo diz em Rm 14,4 que se peca contra o próprio Cristo, quando não se poupa os fracos. E Paulo ordena aceitar os fracos em todos os lugares para, do que se pode concluir que também os fracos estão assentados no colo de Cristo.
Agradeça a Deus, que você chegou a perceber sua fraqueza, porque isto é um bom sinal da certeza da fé em você. Ai daqueles que estão totalmente transformados e não sentem nada! Por isso esteja confiante, como diz Joel 4.10, "Diga o fraco: Eu sou forte", e Paulo 2 Co 12,10: "Quando sou fraco, então é que sou forte". Tem que ser assim.
Muitas vezes também tenho sofrido doença a ponto de achar que, nem Deus nem Cristo existissem, o que me surpreendeu, como isso acontecia comigo, já que que eu tinha mais certeza disso do que da minha própria vida. Deus nos prova assim, mas ele não nos abandona. Isso é melhor do que algo pior, porque ainda é necessário sofrer.
Com isso recomendo você a Cristo, que a enfraquece na sua própria força, para poder fortalecê-la na sua. Amém."
Lutero inicia com empatia, expressando seus sentimentos pela irmã atribulada. Mas, sem demora, encaminha a atenção dela ao único que lhe poderá ajudar: Cristo! Encoraja-a a aguardar com confiança pelo amparo dele, lembrando-a de que “fé fraca também é fé” e que os fracos não estão esquecidos, mas que eles “também estão assentados no colo de Cristo”, aludindo à Lázaro no colo de Abraão (Lc 16.22).
Então Lutero propõe uma inversão ousada: em vez de ficar a lamentar-se recomenda à destinatária que agradeça a Deus por ter chegado “a perceber sua fraqueza, porque isto é um bom sinal da certeza da fé em você”. Sinal da fé autêntica não é o heroísmo ou a valentia de fé, mas a percepção da fragilidade. Lutero fundamenta sua recomendação com palavras da Escritura.
Por fim, ele relata sua própria experiência com aflições pela qual ele aprendeu que “Deus nos prova assim, mas ele não nos abandona”. O reformador consola a irmã com o consolo que ele mesmo experimentou e lembra-a de que Cristo manifesta sua força na nossa fraqueza.
Nota: Trecho da palestra proferida na semana acadêmica da FATEV, Curitiba, em 15 de março de 2017.
• Martin Weingaertner, nascido em Santa Catarina (1949), é professor na Faculdade de Teologia Evangélica em Curitiba (FATEV). Seu casamento com Ursula foi abençoado com 5 filhos e 9 netos.
Imagem: Freeimages.com.
Quem se ocupa com Martinho Lutero faz bem em lembrar sua breve fala diante do “parlamento” do Império na qual declarou que sua consciência estava presa à Palavra de Deus. Esta consiste na “mensagem de paz do filho de Deus que se tornou homem, sofreu e foi ressuscitado pelo Espírito Santo para o nosso bem”. A graça divina concedida por meio de Jesus Cristo cativou-o. O evangelho molda também o retrato de Lutero como conselheiro espiritual. Ele expressa a importância que conferia ao aconselhamento num sermão sobre 1 Pedro 2.11-20:
"Os que exercem o ministério eclesiástico, isto é, os pregadores e curas d’alma, queiram aprender como devem portar-se em relação aos fracos e frágeis. Devem aprender a reconhecê-los como Cristo nos conhece. Isto é, não devem abordá-los áspera e grosseiramente com insistência e imposição, nem com condenações… mas agir delicada e cuidadosamente com eles, carregando a sua fraqueza até que se fortaleçam."
O reformador, no entanto, não restringe a ‘cura d’alma’ ao clero. A descoberta da graça resultou na afirmação do sacerdócio geral dos crentes que, por sua vez, rompeu com o domínio clerical. Num sermão sobre Mateus 18.19-20 ele interpreta a amplitude desta incumbência do Senhor:
"Aqui o Senhor Cristo estende esta consolação ainda mais sem, no entanto, abandonar o âmbito da comunidade cristã. Porque anteriormente (Cristo) disse que se deve punir e banir o pecado na igreja, bem como pregar o perdão dos pecados para que se saiba o que é pecado. Agora, ele afirma que não quer que isto (seja feito) apenas na igreja, mas que este direito e esta liberdade também devem existir, onde dois ou três estiverem reunidos no seu nome. Eles devem poder consolar, anunciar e atribuir perdão dos pecados um ao outro. Portanto, (Cristo) inunda seus cristãos totalmente por todos os lados muito mais abundantemente e os satura com o perdão dos pecados, para que não encontrem perdão dos pecados apenas na sua comunidade, mas também em casa, no campo, no jardim. Onde quer que alguém procure ao outro, deve (poder) receber consolação e salvação."
Nesta conclusão Lutero concretiza o sacerdócio geral dos crentes na ministração do perdão. Nela fica evidente o contraste com a tradição católica que até os dias atuais restringe esta missão ao clero.
Além da fundamentação no evangelho é preciso lembrar como Lutero entendia as causas das nossas aflições. Ao explicar a prece “Não nos deixes cair em tentação” ele identifica três fontes da tentação:
“... na carne habitamos e arrastamos conosco o velho homem. […] Além disso, é o mundo que nos ofende com palavras e obras e nos impele à cólera e impaciência. […] A isso ainda junta-se o diabo, (que) também instiga e provoca por toda parte, mas dedica-se especialmente ao que diz respeito à consciência e às coisas espirituais… Seu propósito é arrancar-nos da fé, da esperança e do amor e levar-nos à superstição, falsa arrogância e obstinação ou ao... desespero…”
Expostos às tentações que brotam (1) da nossa própria natureza, (2) do mundo que nos agride de fora e (3) do diabo que nos ataca pelas costas, necessitamos da pregação e do aconselhamento fraterno para nos lembrar de recorrer a Deus.
Não temos mais acesso às conversas que Lutero manteve, nem às confissões que ouviu. Mas ele nos legou uma vasta correspondência da qual podemos inferir um retrato dele como conselheiro espiritual. A seguir analiso como amostra a carta que escreveu em 1525 a uma mulher que desconhecemos. Escrita em latim indica que esta mulher teve acesso à formação, algo raro na época:
"Prezada senhora, contaram-me como o seu coração sofre grande provação na fé. Sinto muito e peço a Deus que ele lhe seja misericordioso e queira fortalecê-la, já que não duvido de que, com o tempo, ele o fará. Entregue-se unicamente à vontade dele, que você conhece, caso ele o queria e deixe você assim por um tempo. Considere que fé fraca também é fé, e que Cristo está tão perto dos fracos como dos fortes, como Paulo diz em Rm 14,4 que se peca contra o próprio Cristo, quando não se poupa os fracos. E Paulo ordena aceitar os fracos em todos os lugares para, do que se pode concluir que também os fracos estão assentados no colo de Cristo.
Agradeça a Deus, que você chegou a perceber sua fraqueza, porque isto é um bom sinal da certeza da fé em você. Ai daqueles que estão totalmente transformados e não sentem nada! Por isso esteja confiante, como diz Joel 4.10, "Diga o fraco: Eu sou forte", e Paulo 2 Co 12,10: "Quando sou fraco, então é que sou forte". Tem que ser assim.
Muitas vezes também tenho sofrido doença a ponto de achar que, nem Deus nem Cristo existissem, o que me surpreendeu, como isso acontecia comigo, já que que eu tinha mais certeza disso do que da minha própria vida. Deus nos prova assim, mas ele não nos abandona. Isso é melhor do que algo pior, porque ainda é necessário sofrer.
Com isso recomendo você a Cristo, que a enfraquece na sua própria força, para poder fortalecê-la na sua. Amém."
Lutero inicia com empatia, expressando seus sentimentos pela irmã atribulada. Mas, sem demora, encaminha a atenção dela ao único que lhe poderá ajudar: Cristo! Encoraja-a a aguardar com confiança pelo amparo dele, lembrando-a de que “fé fraca também é fé” e que os fracos não estão esquecidos, mas que eles “também estão assentados no colo de Cristo”, aludindo à Lázaro no colo de Abraão (Lc 16.22).
Então Lutero propõe uma inversão ousada: em vez de ficar a lamentar-se recomenda à destinatária que agradeça a Deus por ter chegado “a perceber sua fraqueza, porque isto é um bom sinal da certeza da fé em você”. Sinal da fé autêntica não é o heroísmo ou a valentia de fé, mas a percepção da fragilidade. Lutero fundamenta sua recomendação com palavras da Escritura.
Por fim, ele relata sua própria experiência com aflições pela qual ele aprendeu que “Deus nos prova assim, mas ele não nos abandona”. O reformador consola a irmã com o consolo que ele mesmo experimentou e lembra-a de que Cristo manifesta sua força na nossa fraqueza.
Nota: Trecho da palestra proferida na semana acadêmica da FATEV, Curitiba, em 15 de março de 2017.
• Martin Weingaertner, nascido em Santa Catarina (1949), é professor na Faculdade de Teologia Evangélica em Curitiba (FATEV). Seu casamento com Ursula foi abençoado com 5 filhos e 9 netos.
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