Opinião
- 01 de novembro de 2017
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Ensino religioso em escolas públicas: confessionalidade e laicidade
Por Igor Miguel
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, no dia 27 de setembro, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439 apresentada pela Procuradoria-Geral da República que alegava que, em respeito ao princípio constitucional de laicidade do estado, o ensino religioso em escolas públicas não deveria ser confessional e tampouco interconfessional. No primeiro caso, por privilegiar uma confessionalidade sobre outras e por ferir o princípio de não-proselitismo previsto na lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). E, o segundo caso, por intencionar encontrar pontos de convergência entre várias confissões religiosas, mas não apreciar o ateísmo e o agnosticismo como, igualmente, formas de encarar a religiosidade.
A alegação de inconstitucionalidade foi considerada improcedente pelo STF por seis votos a cinco. De acordo com a ministra Carmem Lúcia, a confessionalidade não fere o princípio de laicidade visto que o ensino religioso é ofertado facultativamente, ou seja, não obrigatório.
Houve uma ampla discussão nas redes sociais a respeito, e de fato, entre evangélicos o tema é tratado de forma bem diversificada. Evangélicos em geral, parecem não ter uma opinião clara sobre o tema, talvez, pelo simples fato de que a igreja já se presta a um óbvio papel de educação religiosa. Entretanto, o que fica evidente é que católicos insistem na confessionalidade do ensino religioso em escolas públicas, particularmente a confissão católica romana. Por outro lado, muitos laicistas insistem em associar laicidade com não-confessionalidade do ensino religioso. De qualquer forma, a questão que está em pauta dentro da legislação vigente é: a educação religiosa em escolas públicas deve ser confessional, interconfessional, não-confessional ou multi-confessional? E, claro, a discussão levanta indiretamente uma outra questão: o ensino religioso é relevante para a educação pública?
Confessionalidade ampla
Antes de avançar em qualquer reflexão séria sobre a questão, a própria noção de confessionalidade deve ser claramente definida. A meu ver, confessionalidade deve ser entendida em sentido amplo. Neste caso, ela deveria ser concebida como um sistema de crenças fundado em alguma certeza (com status absoluto¹) que orienta e oferece sentido último para a vida, e por isso, afeta o senso de justiça, ética, dignidade humana e sociedade. Sendo assim, teístas, deístas, panteístas, ateístas, e mesmo agnósticos são todos, inevitavelmente, portadores de um sistema de crenças (cosmovisão), ou seja, uma confessionalidade formal ou informal.
A diferença é que umbandistas acreditam em orixás como forças vitais, cristãos e judeus na existência de um único Deus pessoal que governa o universo, enquanto ateus sustentam a crença na não-existência de Deus, e em geral, adotam algum “absoluto” (ao invés de alguma divindade evidente) que oriente suas posições sobre ética, direitos, justiça e dignidade humana. Alguns absolutos não-teístas podem ser: a razão, a ciência, o capital, a utopia, a matéria, a cultura, o afeto, a história ou a natureza. Mesmo laicistas, que se esforçam para sustentar uma neutralidade religiosa do estado, em última instância, não são confessionalmente neutros, no sentido aqui tratado. Eles possuem uma crença de que a escola pública não deve ser lugar de proselitismo religioso, mas não questionam o proselitismo materialista, racionalista, naturalista, historicista ou partidário, que são, em última instância, sistemas de crenças.
Não existe neutralidade confessional
Alguém deveria questionar ou alegar que se deve manter uma fronteira clara entre religião e não-religião. Mas, o que seria o não-religioso? O ateu? O agnóstico? Religião é uma tentativa de encontrar sentido existencial a partir de um lugar seguro ou de uma referência confiável para que o conhecimento e o sentido sejam possíveis. Uma existência sem o mínimo de possibilidade de conhecimento e sentido reais é perturbadora. Basta olhar para o atual ufanismo científico e tecnológico para constatar seus intentos soteriológicos.
A ciência moderna, por exemplo, seria inviável sem esta pulsão supra-teórica, esta inquietação que dirige o homem inevitavelmente para algum tipo de senso de ordem, causa ou propósito. O filósofo reformacional Herman Dooyeweerd traz uma interessante contribuição sobre esta pulsão religiosa universal e inevitável:
Uma reflexão filosófica que não se direciona para a relação religiosa central será obrigada a buscar o ego no horizonte temporal de nossa experiência a fim de evitar um resultado niilista. Consequentemente, tal reflexão abandonará a atitude crítica e fará do ego central um ídolo, absolutizando um dos aspectos modais de nossa consciência temporal. E aqui está a origem de ídolos tais como o ego psicológico, o lógico-transcendental, o histórico e o moral (Dooyeweerd, 2010, 81). ²
O que o filósofo holandês observa é que toda busca por sentido (reflexão filosófica) que não se direciona para o transcendente, irá inevitavelmente buscar na imanência (no que é temporal) algum lugar seguro para se evitar o vazio ou a negação de qualquer sentido (niilismo). O niilismo seria insuportável e traria consequências morais e existenciais destrutivas. Uma vez que o ser humano precisa de um “lugar seguro” (absoluto), ele depositará sua confiança (fé) em algum aspecto imanente e temporal (sociedade, matéria, natureza, razão, moral, história etc) para a partir deste “lugar” tentar interpretar a totalidade da realidade. Dooyeweerd retoma o termo bíblico “idolatria” para descrever esta tendência humana de conceder atributos divinos (absolutização) ao que é “criado”.
Agora é mais fácil perceber as fronteiras entre uma autêntica busca por laicidade estatal e um laicismo de natureza secularista. Este último, ignora o “impulso religioso inato do ego” (Dooyeweerd, 2010, 82). Alguns ministros do STF argumentaram corretamente: a religiosidade é inevitável, bem como, a influência cristã sobre a sociedade brasileira. É natural, inclusive, que as diversas confissões religiosas estejam presentes nos diversos espaços públicos, pois dizer que o estado é laico não é sinônimo de suspensão de crenças religiosas, institucionalização do ateísmo ou neutralidade confessional de seus cidadãos, mesmo em questões públicas. Ao contrário, laicidade exige diversidade confessional e a não abstração da integridade humana, inclusive, de sua dimensão religiosa. A bem da verdade, este é um cuidado presente na ADI em questão.
Escola pública: lugar de pluralismo de verdade
Por estado laico entende-se aquela dimensão pública de governança (o estado) onde nenhuma religião pode receber privilégios ou favorecimentos estatais, ao mesmo tempo, que se reconhece e garante proteção às diferentes “comunidades confessionais”. Este termo utilizado por Jonathan Chaplin³ se refere aos diferentes agrupamentos em torno de sistemas de crenças particulares em uma sociedade plural. Sem um claro reconhecimento das diversas confissões dentro da sociedade civil pelo estado, o conceito de laicidade será absorvido ou confundido com secularismo. Partindo dessa definição, pode-se avançar sobre a relação entre escola pública, estado laico e sociedade plural.
A escola pública é um instituição estatal e comum. Por esta razão, ela tende a ter representado entre seus partícipes os diversos membros da sociedade. Sendo a sociedade plural, a escola também deve apreciar a pluralidade da sociedade que ela representa. Se é inerente à pluralidade social uma diversidade de confissões, logo, a escola deve ser igualmente um espaço multi-confessional.
Por multi-confessionalidade entende-se a apreciação dos diversos sistemas de crenças, mesmo os que se negam a alguma crença em um deus no sentido clássico (ateísmo ou agnosticismo, por exemplo). Por apreciação entende-se o estudo do fenômeno religioso no sentido já aqui apresentado. Como já vimos, religio é um fenômeno inevitável, mesmo entre ateus e agnóstico, é um pulsão radical e um fato antropológico. Mesmo que tais visões de mundo se posicionem como a-religiosas, elas podem e devem ser estudadas como um tipo de interação ou relação cultural com o fenômeno religioso em sentido estrito.
O ensino religioso e a multi-confessionalidade
O lugar para se privilegiar um sistema de crenças em particular é a escola privada ou comunitária de natureza confessional ou ideológica. Um direito previsto por lei:
“[Escolas] confessionais, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia específicas e ao disposto no inciso anterior.” (Lei 9394/96, Art. 20, Inciso III).
O lugar para se promover uma confissão em particular é na escola confessional ou ideológica. Também, nos espaços de formação religiosa como família, igreja, escolas teológicas, sinagogas, yeshivas ou madrassas. Já a escola pública não deve privilegiar nenhum sistema de crenças religiosas ou morais em particular, o que, de fato, feriria o princípio de que a escola é multi-confessional fazendo jus a sua natureza laica.
Pode-se discutir se há necessidade de uma disciplina de ensino religioso na escola pública. Pessoalmente, não teria objeções no caso de uma possível remoção, desde que a religiosidade fosse apreciada enquanto fenômeno cultural e humano amplos, e por isso, digno do estudo acadêmico em alguma disciplina afim como: história, geografia, filosofia ou sociologia. Porém, se há uma disciplina de ensino religioso, ela de fato, não pode privilegiar nenhuma religião e tampouco ser uma plataforma de proselitismo, afinal, isso comprometeria a natureza plural, multi-confessional e laica da escola pública.
Não concordo com o uso que a ADI 4439 faz do termo “não-confessional” para descrever a postura pedagógica correta de que “o conteúdo programático da disciplina [de ensino religioso] consiste na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões - bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo - sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores.” Entendo que o termo diz respeito a postura do professor em não privilegiar uma “confissão específica”, mas, por outro lado, pode alimentar certa noção de “neutralidade confessional” em espaços públicos. A multi-confessionalidade trata da natureza e da metodologia utilizada em relação ao objeto de estudo. Neste caso, o objeto é o fenômeno religioso tratado sob uma abordagem que aprecia a diversidade de “comunidades confessionais” presentes na sociedade e cultura brasileiras. A meu ver, uma metodologia multi-confessional faz mais jus à distinção entre laicidade e laicismo presentes na ADI do que simplesmente enfatizar uma “não-confessionalidade”:
“O laicismo, que envolve uma certa animosidade contra a expressão pública da religiosidade por indivíduos e grupos… para diminuir a importância da religião na esfera social…. diferentemente da laicidade, não envolve neutralidade, mas hostilidade diante da religião, e tende a resvalar para posições autoritárias, de restrição a liberdades religiosas individuais.” (Ítem 28).
Sobre o conteúdo do ensino religioso em escolas públicas
Um pergunta importante diz respeito ao conteúdo de tal disciplina. Pois, uma vez que o ensino religioso não pode ser proselitista e multi-confessional, a disciplina deveria se dedicar ao estudo de diferentes correntes religiosas. Mas, se existem centenas ou milhares de religiões e sistemas de crenças, seria impossível desenvolver um estudo que abrangesse toda esta complexidade. Ante o desafio, o conteúdo em questão não acabaria sendo forçado a se basear em uma seleção baseada em critérios como: importância, relevância, antiguidade etc? Neste caso, não se cairia novamente no erro de certa “particularização” ou “seletividade confessional”? Penso que este impasse pode ser administrado recorrendo-se à legislação educacional.
De acordo com a Lei 9394/96 (LDB) está a cargo dos sistemas de ensino (as diferentes instituições educacionais sob responsabilidade de estados, municípios e distrito federal) a regulamentação e a definição dos conteúdos do ensino religioso (Art. 33, § 1º). E, mais, eles também devem ouvir os representantes das diferentes denominações religiosas para tal empreendimento (§ 2º). Isto deveria ser realizado em nível local, apreciando os diferentes agrupamentos religiosos que possuem relevância cultural para o contexto sociocultural que estão inseridos. Outra metodologia, seria agrupar o fenômeno religioso entre tradições: monoteísmo, politeísmo, panteísmo, ateísmo, misticismo etc. De qualquer forma, o desafio está posto, e a ADI não prevê este desafio pedagógico que será inevitável à medida que a escola pública se torne mais plural e laica.
A decisão do STF fere sim o princípio da laicidade
Bem, deixando clara as fronteiras conceituais mencionadas, conclui-se que a decisão do STF favorece o catolicismo romano enquanto confessionalidade, sim. Lembrando que o que pesou sobre a decisão foi o Decreto 7107/10, da era Lula, que firmava um acordo entre o Brasil e a Santa Sé. Particularmente, seu artigo 11 cria um precedente interpretativo que pode privilegiar o catolicismo e sua relação com o ensino religioso em escolas públicas:
“A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.” (grifo nosso).
Pessoas de qualquer religião podem comunicar a respeito de sua cosmovisão e convicções religiosas ou filosóficas livremente em relações humanas normais. Um pluralismo que se preze deve permitir a livre defesa e propagação de qualquer sistema de crenças e a crítica mútua dentro dos limites do respeito à diversidade religiosa e à dignidade humana. Porém, ao exercer um papel contratual de professor em um ambiente público, particularmente, no papel institucional de professor de ensino religioso, ele tem o compromisso ético de não fazer proselitismo no exercício de sua função, antes, deve ensinar sobre o fenômeno religioso em sua diversidade multi-confessional conforme já discutido aqui.
Enfim, deve-se tomar muito cuidado para não se confundir um projeto secularista de sociedade ateia com laicidade estatal. O que significa que esforços pela laicidade do que é público devem apreciar a natureza religiosa dos seres humanos e não trocar a confissão teísta pela ateísta, por exemplo. Um estado laico representa uma sociedade, no caso da brasileira, esmagadoramente religiosa. E, ignorar este fato, é simplesmente ser indiferente ao que a sociedade brasileira é: religiosa. Por outro lado, cristãos, ao invés de lutar para que a escola pública privilegie sua confissão, deveriam investir recursos para abrir e investir em escolas confessionais de relevância pública e criar condições para que a sociedade reconheça a plausibilidade e a relevância do modo como cristãos educam e compreendem a vida. E, finalmente, evangélicos devem se posicionar a respeito de questões públicas a partir de sua cosmovisão, enquanto aprendem a lidar com a factualidade do pluralismo credal em sociedades laicas. Um bom começo seria aprender, com o princípio protestante de universal sacerdócio dos santos, como evitar tanto o triunfalismo cesaropapista como o isolacionismo monástico.
Notas:
1. Muitos podem alegar que pessoas podem acreditar em certas coisas de maneira provisória, logo o termo “absoluto” não aprecia a complexidade das crenças e certezas humanas. Entretanto, partimos do pressuposto que todo ser humano, mesmo que provisoriamente, acredita e concede absolutividade a algumas crenças pessoais. A eventual e tardia dispensabilidade de tal crença, não afeta o status de crença em algo absoluto no presente momento.
2. Dooyweerd, Herman. No Crepúsculo do Pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010.
3. Chaplin, Jonathan. Talking God: the legitimacy of religious public reasoning. Londo: Theos, 2008.
• Igor Miguel é teólogo, pedagogo, especialista em educação cognitiva, consultor educacional, mestre em hebraico pela USP. Gestor de projetos sociais e educacionais na SERVED e é pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, MG.
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Ideologia de gênero nas escolas
A compreensão científica não anula a visão religiosa
Universidades protestantes: benefícios e riscos
Imagem: Photo by NeONBRAND on Unsplash.
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, no dia 27 de setembro, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439 apresentada pela Procuradoria-Geral da República que alegava que, em respeito ao princípio constitucional de laicidade do estado, o ensino religioso em escolas públicas não deveria ser confessional e tampouco interconfessional. No primeiro caso, por privilegiar uma confessionalidade sobre outras e por ferir o princípio de não-proselitismo previsto na lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). E, o segundo caso, por intencionar encontrar pontos de convergência entre várias confissões religiosas, mas não apreciar o ateísmo e o agnosticismo como, igualmente, formas de encarar a religiosidade.
A alegação de inconstitucionalidade foi considerada improcedente pelo STF por seis votos a cinco. De acordo com a ministra Carmem Lúcia, a confessionalidade não fere o princípio de laicidade visto que o ensino religioso é ofertado facultativamente, ou seja, não obrigatório.
Houve uma ampla discussão nas redes sociais a respeito, e de fato, entre evangélicos o tema é tratado de forma bem diversificada. Evangélicos em geral, parecem não ter uma opinião clara sobre o tema, talvez, pelo simples fato de que a igreja já se presta a um óbvio papel de educação religiosa. Entretanto, o que fica evidente é que católicos insistem na confessionalidade do ensino religioso em escolas públicas, particularmente a confissão católica romana. Por outro lado, muitos laicistas insistem em associar laicidade com não-confessionalidade do ensino religioso. De qualquer forma, a questão que está em pauta dentro da legislação vigente é: a educação religiosa em escolas públicas deve ser confessional, interconfessional, não-confessional ou multi-confessional? E, claro, a discussão levanta indiretamente uma outra questão: o ensino religioso é relevante para a educação pública?
Confessionalidade ampla
Antes de avançar em qualquer reflexão séria sobre a questão, a própria noção de confessionalidade deve ser claramente definida. A meu ver, confessionalidade deve ser entendida em sentido amplo. Neste caso, ela deveria ser concebida como um sistema de crenças fundado em alguma certeza (com status absoluto¹) que orienta e oferece sentido último para a vida, e por isso, afeta o senso de justiça, ética, dignidade humana e sociedade. Sendo assim, teístas, deístas, panteístas, ateístas, e mesmo agnósticos são todos, inevitavelmente, portadores de um sistema de crenças (cosmovisão), ou seja, uma confessionalidade formal ou informal.
A diferença é que umbandistas acreditam em orixás como forças vitais, cristãos e judeus na existência de um único Deus pessoal que governa o universo, enquanto ateus sustentam a crença na não-existência de Deus, e em geral, adotam algum “absoluto” (ao invés de alguma divindade evidente) que oriente suas posições sobre ética, direitos, justiça e dignidade humana. Alguns absolutos não-teístas podem ser: a razão, a ciência, o capital, a utopia, a matéria, a cultura, o afeto, a história ou a natureza. Mesmo laicistas, que se esforçam para sustentar uma neutralidade religiosa do estado, em última instância, não são confessionalmente neutros, no sentido aqui tratado. Eles possuem uma crença de que a escola pública não deve ser lugar de proselitismo religioso, mas não questionam o proselitismo materialista, racionalista, naturalista, historicista ou partidário, que são, em última instância, sistemas de crenças.
Não existe neutralidade confessional
Alguém deveria questionar ou alegar que se deve manter uma fronteira clara entre religião e não-religião. Mas, o que seria o não-religioso? O ateu? O agnóstico? Religião é uma tentativa de encontrar sentido existencial a partir de um lugar seguro ou de uma referência confiável para que o conhecimento e o sentido sejam possíveis. Uma existência sem o mínimo de possibilidade de conhecimento e sentido reais é perturbadora. Basta olhar para o atual ufanismo científico e tecnológico para constatar seus intentos soteriológicos.
A ciência moderna, por exemplo, seria inviável sem esta pulsão supra-teórica, esta inquietação que dirige o homem inevitavelmente para algum tipo de senso de ordem, causa ou propósito. O filósofo reformacional Herman Dooyeweerd traz uma interessante contribuição sobre esta pulsão religiosa universal e inevitável:
Uma reflexão filosófica que não se direciona para a relação religiosa central será obrigada a buscar o ego no horizonte temporal de nossa experiência a fim de evitar um resultado niilista. Consequentemente, tal reflexão abandonará a atitude crítica e fará do ego central um ídolo, absolutizando um dos aspectos modais de nossa consciência temporal. E aqui está a origem de ídolos tais como o ego psicológico, o lógico-transcendental, o histórico e o moral (Dooyeweerd, 2010, 81). ²
O que o filósofo holandês observa é que toda busca por sentido (reflexão filosófica) que não se direciona para o transcendente, irá inevitavelmente buscar na imanência (no que é temporal) algum lugar seguro para se evitar o vazio ou a negação de qualquer sentido (niilismo). O niilismo seria insuportável e traria consequências morais e existenciais destrutivas. Uma vez que o ser humano precisa de um “lugar seguro” (absoluto), ele depositará sua confiança (fé) em algum aspecto imanente e temporal (sociedade, matéria, natureza, razão, moral, história etc) para a partir deste “lugar” tentar interpretar a totalidade da realidade. Dooyeweerd retoma o termo bíblico “idolatria” para descrever esta tendência humana de conceder atributos divinos (absolutização) ao que é “criado”.
Agora é mais fácil perceber as fronteiras entre uma autêntica busca por laicidade estatal e um laicismo de natureza secularista. Este último, ignora o “impulso religioso inato do ego” (Dooyeweerd, 2010, 82). Alguns ministros do STF argumentaram corretamente: a religiosidade é inevitável, bem como, a influência cristã sobre a sociedade brasileira. É natural, inclusive, que as diversas confissões religiosas estejam presentes nos diversos espaços públicos, pois dizer que o estado é laico não é sinônimo de suspensão de crenças religiosas, institucionalização do ateísmo ou neutralidade confessional de seus cidadãos, mesmo em questões públicas. Ao contrário, laicidade exige diversidade confessional e a não abstração da integridade humana, inclusive, de sua dimensão religiosa. A bem da verdade, este é um cuidado presente na ADI em questão.
Escola pública: lugar de pluralismo de verdade
Por estado laico entende-se aquela dimensão pública de governança (o estado) onde nenhuma religião pode receber privilégios ou favorecimentos estatais, ao mesmo tempo, que se reconhece e garante proteção às diferentes “comunidades confessionais”. Este termo utilizado por Jonathan Chaplin³ se refere aos diferentes agrupamentos em torno de sistemas de crenças particulares em uma sociedade plural. Sem um claro reconhecimento das diversas confissões dentro da sociedade civil pelo estado, o conceito de laicidade será absorvido ou confundido com secularismo. Partindo dessa definição, pode-se avançar sobre a relação entre escola pública, estado laico e sociedade plural.
A escola pública é um instituição estatal e comum. Por esta razão, ela tende a ter representado entre seus partícipes os diversos membros da sociedade. Sendo a sociedade plural, a escola também deve apreciar a pluralidade da sociedade que ela representa. Se é inerente à pluralidade social uma diversidade de confissões, logo, a escola deve ser igualmente um espaço multi-confessional.
Por multi-confessionalidade entende-se a apreciação dos diversos sistemas de crenças, mesmo os que se negam a alguma crença em um deus no sentido clássico (ateísmo ou agnosticismo, por exemplo). Por apreciação entende-se o estudo do fenômeno religioso no sentido já aqui apresentado. Como já vimos, religio é um fenômeno inevitável, mesmo entre ateus e agnóstico, é um pulsão radical e um fato antropológico. Mesmo que tais visões de mundo se posicionem como a-religiosas, elas podem e devem ser estudadas como um tipo de interação ou relação cultural com o fenômeno religioso em sentido estrito.
O ensino religioso e a multi-confessionalidade
O lugar para se privilegiar um sistema de crenças em particular é a escola privada ou comunitária de natureza confessional ou ideológica. Um direito previsto por lei:
“[Escolas] confessionais, assim entendidas as que são instituídas por grupos de pessoas físicas ou por uma ou mais pessoas jurídicas que atendem a orientação confessional e ideologia específicas e ao disposto no inciso anterior.” (Lei 9394/96, Art. 20, Inciso III).
O lugar para se promover uma confissão em particular é na escola confessional ou ideológica. Também, nos espaços de formação religiosa como família, igreja, escolas teológicas, sinagogas, yeshivas ou madrassas. Já a escola pública não deve privilegiar nenhum sistema de crenças religiosas ou morais em particular, o que, de fato, feriria o princípio de que a escola é multi-confessional fazendo jus a sua natureza laica.
Pode-se discutir se há necessidade de uma disciplina de ensino religioso na escola pública. Pessoalmente, não teria objeções no caso de uma possível remoção, desde que a religiosidade fosse apreciada enquanto fenômeno cultural e humano amplos, e por isso, digno do estudo acadêmico em alguma disciplina afim como: história, geografia, filosofia ou sociologia. Porém, se há uma disciplina de ensino religioso, ela de fato, não pode privilegiar nenhuma religião e tampouco ser uma plataforma de proselitismo, afinal, isso comprometeria a natureza plural, multi-confessional e laica da escola pública.
Não concordo com o uso que a ADI 4439 faz do termo “não-confessional” para descrever a postura pedagógica correta de que “o conteúdo programático da disciplina [de ensino religioso] consiste na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões - bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo - sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores.” Entendo que o termo diz respeito a postura do professor em não privilegiar uma “confissão específica”, mas, por outro lado, pode alimentar certa noção de “neutralidade confessional” em espaços públicos. A multi-confessionalidade trata da natureza e da metodologia utilizada em relação ao objeto de estudo. Neste caso, o objeto é o fenômeno religioso tratado sob uma abordagem que aprecia a diversidade de “comunidades confessionais” presentes na sociedade e cultura brasileiras. A meu ver, uma metodologia multi-confessional faz mais jus à distinção entre laicidade e laicismo presentes na ADI do que simplesmente enfatizar uma “não-confessionalidade”:
“O laicismo, que envolve uma certa animosidade contra a expressão pública da religiosidade por indivíduos e grupos… para diminuir a importância da religião na esfera social…. diferentemente da laicidade, não envolve neutralidade, mas hostilidade diante da religião, e tende a resvalar para posições autoritárias, de restrição a liberdades religiosas individuais.” (Ítem 28).
Sobre o conteúdo do ensino religioso em escolas públicas
Um pergunta importante diz respeito ao conteúdo de tal disciplina. Pois, uma vez que o ensino religioso não pode ser proselitista e multi-confessional, a disciplina deveria se dedicar ao estudo de diferentes correntes religiosas. Mas, se existem centenas ou milhares de religiões e sistemas de crenças, seria impossível desenvolver um estudo que abrangesse toda esta complexidade. Ante o desafio, o conteúdo em questão não acabaria sendo forçado a se basear em uma seleção baseada em critérios como: importância, relevância, antiguidade etc? Neste caso, não se cairia novamente no erro de certa “particularização” ou “seletividade confessional”? Penso que este impasse pode ser administrado recorrendo-se à legislação educacional.
De acordo com a Lei 9394/96 (LDB) está a cargo dos sistemas de ensino (as diferentes instituições educacionais sob responsabilidade de estados, municípios e distrito federal) a regulamentação e a definição dos conteúdos do ensino religioso (Art. 33, § 1º). E, mais, eles também devem ouvir os representantes das diferentes denominações religiosas para tal empreendimento (§ 2º). Isto deveria ser realizado em nível local, apreciando os diferentes agrupamentos religiosos que possuem relevância cultural para o contexto sociocultural que estão inseridos. Outra metodologia, seria agrupar o fenômeno religioso entre tradições: monoteísmo, politeísmo, panteísmo, ateísmo, misticismo etc. De qualquer forma, o desafio está posto, e a ADI não prevê este desafio pedagógico que será inevitável à medida que a escola pública se torne mais plural e laica.
A decisão do STF fere sim o princípio da laicidade
Bem, deixando clara as fronteiras conceituais mencionadas, conclui-se que a decisão do STF favorece o catolicismo romano enquanto confessionalidade, sim. Lembrando que o que pesou sobre a decisão foi o Decreto 7107/10, da era Lula, que firmava um acordo entre o Brasil e a Santa Sé. Particularmente, seu artigo 11 cria um precedente interpretativo que pode privilegiar o catolicismo e sua relação com o ensino religioso em escolas públicas:
“A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.” (grifo nosso).
Pessoas de qualquer religião podem comunicar a respeito de sua cosmovisão e convicções religiosas ou filosóficas livremente em relações humanas normais. Um pluralismo que se preze deve permitir a livre defesa e propagação de qualquer sistema de crenças e a crítica mútua dentro dos limites do respeito à diversidade religiosa e à dignidade humana. Porém, ao exercer um papel contratual de professor em um ambiente público, particularmente, no papel institucional de professor de ensino religioso, ele tem o compromisso ético de não fazer proselitismo no exercício de sua função, antes, deve ensinar sobre o fenômeno religioso em sua diversidade multi-confessional conforme já discutido aqui.
Enfim, deve-se tomar muito cuidado para não se confundir um projeto secularista de sociedade ateia com laicidade estatal. O que significa que esforços pela laicidade do que é público devem apreciar a natureza religiosa dos seres humanos e não trocar a confissão teísta pela ateísta, por exemplo. Um estado laico representa uma sociedade, no caso da brasileira, esmagadoramente religiosa. E, ignorar este fato, é simplesmente ser indiferente ao que a sociedade brasileira é: religiosa. Por outro lado, cristãos, ao invés de lutar para que a escola pública privilegie sua confissão, deveriam investir recursos para abrir e investir em escolas confessionais de relevância pública e criar condições para que a sociedade reconheça a plausibilidade e a relevância do modo como cristãos educam e compreendem a vida. E, finalmente, evangélicos devem se posicionar a respeito de questões públicas a partir de sua cosmovisão, enquanto aprendem a lidar com a factualidade do pluralismo credal em sociedades laicas. Um bom começo seria aprender, com o princípio protestante de universal sacerdócio dos santos, como evitar tanto o triunfalismo cesaropapista como o isolacionismo monástico.
Notas:
1. Muitos podem alegar que pessoas podem acreditar em certas coisas de maneira provisória, logo o termo “absoluto” não aprecia a complexidade das crenças e certezas humanas. Entretanto, partimos do pressuposto que todo ser humano, mesmo que provisoriamente, acredita e concede absolutividade a algumas crenças pessoais. A eventual e tardia dispensabilidade de tal crença, não afeta o status de crença em algo absoluto no presente momento.
2. Dooyweerd, Herman. No Crepúsculo do Pensamento: estudos sobre a pretensa autonomia do pensamento filosófico. São Paulo: Hagnos, 2010.
3. Chaplin, Jonathan. Talking God: the legitimacy of religious public reasoning. Londo: Theos, 2008.
• Igor Miguel é teólogo, pedagogo, especialista em educação cognitiva, consultor educacional, mestre em hebraico pela USP. Gestor de projetos sociais e educacionais na SERVED e é pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, MG.
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