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Prateleira

Como fazer justiça com as próprias mãos?

Ser de direita ou de esquerda não me torna um cristão melhor. No entanto, se o assunto é justiça social, a Bíblia não deixa por menos. Ela incomoda, tira do sério os ouvidos mais sensíveis. Não é confortável ouvir coisas do tipo: “Parem com o barulho das suas canções religiosas; não quero mais ouvir a música de harpas. Em vez disso, quero que haja tanta justiça como as águas de uma enchente...” (Am 5.24-25).

Hoje, 20 de fevereiro, por decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas, é o Dia Mundial da Justiça Social. A resolução, adotada por unanimidade, coloca os Estados-membros da ONU, comprometidos com “a erradicação da pobreza, com a promoção do pleno emprego e do trabalho digno, a igualdade de gênero e o acesso ao bem-estar social e à justiça para todos”.

Até parece que a ONU leva a Bíblia a sério. Ironia? Bem, a justiça social é um compromisso inerente aos cristãos. O chamado à justiça social está no Decálogo, nas leis secundárias, nos Provérbios, nos profetas, no exemplo de Jesus, no segundo grande mandamento, na instituição do diaconato primitivo e na Epístola de Tiago.

Não é por outra razão a matéria de capa da edição 289 da revista Ultimato, que lembramos hoje:



QUEM LEVA A BÍBLIA A SÉRIO OBRIGA-SE A LEVAR TAMBÉM A SÉRIO A JUSTIÇA SOCIAL


“Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras. Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene!” (Amós, 5.24, NVI)

As Escrituras Sagradas não nos deixam à vontade no que diz respeito à justiça social. Ao contrário, elas criam incômodos problemas de consciência, elas nos azucrinam, elas nos envergonham, elas nos condenam. De todos os nossos pecados e crimes, a falta de consciência social é o mais coletivo, o menos reconhecido e o causador das maiores tragédias, que vão desde a fome até as guerras. Em nenhum momento, o evangelho nos dispensa da obrigação de elaborar as leis da justiça social no papel e no modo de viver. O chamado à justiça social está no Decálogo, nas leis secundárias, nos Provérbios, nos profetas, no exemplo de Jesus, no segundo grande mandamento, na instituição do diaconato primitivo e na Epístola de Tiago, o servo do Senhor que não tinha papas na língua.

No Decálogo
Enquanto os quatro primeiros mandamentos tratam do nosso relacionamento com Deus, os seis restantes dizem respeito ao nosso relacionamento com os outros. O quinto mandamento diz que não devemos cometer injustiça alguma contra aqueles que nos trouxeram à vida. O sexto mandamento nos proíbe de tirar a vida de quem quer que seja. O sétimo mandamento nos proíbe de adulterar. O oitavo mandamento nos proíbe de diminuir o patrimônio alheio para aumentar o patrimônio próprio. O nono mandamento nos proíbe de prejudicar alguém por meio da mentira, do falso testemunho, da intriga, da calúnia. E o décimo mandamento nos proíbe de dar asas ao desejo incontido e imoral de possuir aquilo que pertence ao próximo. Para tornar esse mandamento mais preciso, poderíamos lê-lo assim: Não cobiçarás a propriedade alheia, o emprego alheio, o trono alheio, os mananciais alheios, as florestas alheias, o petróleo alheio, o mercado alheio, a glória alheia, a mão-de-obra alheia, o poder alheio, o sucesso alheio, a mulher alheia, o marido alheio, a vaga alheia e assim por diante (Êx 20.1-17; Dt 5. 1-21).

Nas leis secundárias
Se qualquer condomínio, qualquer sociedade, qualquer etnia se colocar debaixo da lei de Deus, todo o grupo viverá num paraíso, mesmo terrestre. As leis de Deus protegem a todos. São leis cuidadosas, minuciosas e simpáticas. Entre elas é possível mencionar:

“Se um homem tiver se casado recentemente, não será enviado à guerra, nem assumirá nenhum compromisso público. Durante um ano estará livre para ficar em casa e fazer feliz a mulher com quem se casou” (Dt 24. 5, NVI).

“Não se aproveitem do pobre e necessitado, seja ele um irmão israelita ou um estrangeiro que viva numa das suas cidades. Paguem-lhe o seu salário diariamente, antes do pôr-do-sol, pois ele é necessitado e depende disso” (Dt 24.14,15, NVI).

“Não amaldiçoem o surdo nem ponham pedra de tropeço à frente do cego” (Lv 19.14, NVI).

“Levantem-se na presença dos idosos, honrem os anciãos” (Lv 19.32, NVI).

“Quando um estrangeiro viver na terra de vocês, não o maltratem. O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito” (Lv 19.33,34, NVI).

“Não usem medidas desonestas quando medirem comprimento, peso ou quantidade. Usem balança e pesos honestos, tanto para cereais quanto para líquidos” (Lv 19.35,36).

De todas as leis secundárias (em relação ao Decálogo), a mais bonita de todas é a lei da rebusca, que tem muito a ver com o eterno conflito entre os proprietários de terra e os sem-terra. Em benefício dos deserdados da sorte, o proprietário rural era proibido de praticar a sovinice na época da colheita. Ele não deveria colher “até as extremidades da sua lavoura nem ajuntar as espigas caídas da sua colheita”, não deveria depenar por completo as videiras e as oliveiras, não deveria percorrer outra vez a propriedade toda à cata de algum fruto que porventura não tivesse sido colhido nem apanhar algum produto que tivesse caído ao chão. Embora a propriedade fosse própria, os sem-emprego, os sem-terra, os sem-arrimo, isto é, os estrangeiros, as viúvas e os órfãos, tinham todo o direito de entrar em seus terrenos e fazer a segunda colheita (Lv 19.9,10; Dt 24.19-22)!

Nos Provérbios
Embora o rei Salomão tenha feito uso do trabalho forçado na época da construção do templo e dos palácios de Jerusalém (1 Rs 5.13-18; 9.10-22; 12.4), o livro de Provérbios, a ele atribuído, prega insistentemente a justiça social, como se pode ver nos seguintes exemplos:

“Não diga ao seu próximo: ‘Volte amanhã, e eu lhe darei algo’, se pode ajudá-lo hoje” (3.28, NVI).

“Os tesouros de origem desonesta não servem para nada” (10.2, NVI).

“O Senhor repudia balanças desonestas, mas os pesos exatos lhe dão prazer” (11.1, NVI).

“Os pobres são evitados até por seus vizinhos, mas os amigos dos ricos são muitos. Quem despreza o próximo comete pecado, mas como é feliz quem trata com bondade os necessitados!” (14.20,21, NVI.)

“Quem zomba dos pobres mostra desprezo pelo Criador deles” (17.5, NVI).

“O pobre é desprezado por todos os seus parentes, quanto mais por seus amigos! Embora os procure, para pedir-lhes ajuda, não os encontra em lugar nenhum” (19.7, NVI).

“Quem fecha os ouvidos ao clamor dos pobres também clamará e não terá resposta” (21.13, NVI).

“Não esgote suas forças tentando ficar rico; tenha bom senso! As riquezas desaparecem assim que você as contempla; elas criam asas e voam como águias pelo céu” (23.4,5, NVI).

“O pobre que se torna poderoso e oprime os pobres é como a tempestade súbita que destrói toda a plantação” (28.3, NVI).

Nos profetas
A pregação contrária à injustiça social não tem tido a mesma importância nem a mesma freqüência que a pregação contrária ao mundanismo, ao adultério, ao aborto, à heterodoxia, às celeumas internas. Até bem pouco tempo atrás, taxava-se de comunista quem levantava a voz a favor dos miseráveis. Essa grave omissão não faz parte do currículo dos profetas do Antigo Testamento. Basta trazer à memória certas denúncias válidas até hoje, embora tenham sido pronunciadas mais de 600 anos antes de Cristo.

Do profeta Isaías: “Ai de vocês que adquirem casas e mais casas, propriedades e mais propriedades, até não haver mais lugar para ninguém e vocês se tornarem os senhores absolutos da terra!” (Is 5.8, NVI.)

Do profeta Jeremias: “Ai daquele que constrói o seu palácio por meios corruptos, seus aposentos, pela injustiça, fazendo os seus compatriotas trabalharem por nada, sem pagar-lhes o devido salário” (Jr 22.13, NVI).

Do profeta Ezequiel: “Você empresta a juros, visando lucro, e obtém ganhos injustos, extorquindo o próximo... Mas você me verá batendo as minhas mãos uma na outra contra os ganhos injustos que você obteve e contra o sangue que você derramou” (Ez 22.12,13, NVI).

Do profeta Amós: “Vocês estão transformando o direito em amargura e atirando a justiça ao chão... impedem que se faça justiça aos pobres nos tribunais” (Am 5.7, 12).

Do profeta Miquéias: “Ai daqueles que... cobiçam terrenos e se apoderam deles; cobiçam casas e as tomam... Vocês deveriam conhecer a justiça! Mas... arrancam a pele do meu povo e a carne dos seus ossos... Os ricos que vivem entre vocês são violentos” (Mq 2.1,2; 3.1,2; 6.12, NVI).

Do profeta Naum: “Ai da cidade sanguinária, repleta de fraudes e cheia de roubos, sempre fazendo as suas vítimas!” (Na 3.1, NVI).

Do profeta Habacuque: “A destruição e a violência estão diante de mim; há luta e conflito por todo lado. Por isso a lei se enfraquece e a justiça nunca prevalece. Os ímpios prejudicam os justos, e assim a justiça é pervertida... Ai daquele que obtém lucros injustos para a sua casa, para pôr seu ninho no alto e escapar das garras do mal!” (Hc 1.3,4; 2.9, NVI.)

No exemplo de Jesus
O exemplo mais perfeito e mais impressionante de solidariedade com o pobre e miserável é o exemplo de Jesus Cristo. Ninguém é tão alto, majestoso e glorioso quanto Ele, e ninguém desceu de seu pedestal tanto quanto o Senhor. A pessoa mais empolgada com o exemplo de Jesus certamente é o apóstolo Paulo. Aos coríntios, o ex-fariseu escreve: “Vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos” (2 Co 8.9, NVI). E aos filipenses, o apóstolo propõe a imitação do exemplo de Jesus: “Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fp 2.5-8, NVI.)

A espantosa solidariedade de Jesus com os socialmente marginalizados, com os humildes e com os famintos, e não com os soberbos, com os poderosos e com os ricos (ver o Cântico de Maria, em Lucas 1.46-55), começou com a eleição de Maria para ser a mãe do Salvador e com nascimento de Jesus numa humilde estrebaria — porque não havia lugar para uma mulher grávida de 9 meses na hospedaria — e em Belém-Efrata, “uma das menores cidades de Judá” (Mq 5.2, NTLH).

À semelhança de João Batista, que não se vestia de roupas finas nem transitava pelos palácios (Lc 7.25), Jesus vivia entre pecadores e pescadores, entre famintos de pães e peixes e famintos do Pão da vida, entre pessoas tomadas de alguma enfermidade ou deficiência física e pessoas tomadas ferozmente de espíritos imundos, entre publicanos e meretrizes. Ele não tinha “onde repousar a cabeça” (Mt 8.20, NVI) e recebia apoio material de algumas mulheres da Galiléia, como Maria Madalena, Joana (cujo marido era do alto escalão do governo de Herodes) e Susana (Lc 8.1-3).

De tal modo Jesus desceu ao nível do ser humano que Ele permitiu que uma “mulher pecadora”, conhecida de todos, entrasse na casa de um “homem rigoroso” (Simão, o fariseu), e lhe mostrasse publicamente toda a sua gratidão pelo perdão anteriormente obtido. Dominada por forte emoção, a mulher derramou suas lágrimas sobre os pés de Jesus, cujas pernas estavam estendidas para trás no assoalho, enquanto Ele comia da mesa de Simão, para depois enxugá-los com os próprios cabelos soltos (Lc 7.36-50).

O exemplo de Jesus não deve ser esquecido, jogado fora, desperdiçado. Ele é o nosso padrão de comportamento: “Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz” (Jo 13.15, NVI).

No segundo grande mandamento
Um dos mestres da lei de Moisés perguntou a Jesus qual de todos os mandamentos era o mais importante. De pronto, o Senhor respondeu mais do que havia sido solicitado. Ele mencionou o mais importante (amar a Deus com força total) e o segundo mais importante: “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Mc 12.28-34, NVI).

Ora, esse “segundo mais importante mandamento” fecha definitivamente o cerco contra qualquer omissão e qualquer transgressão na área da justiça social. Ele nos obriga a amar o próximo como amamos a nós mesmos. Como o amor com que nos amamos é enorme, ambicioso e constante, então, não vamos tirar vantagem pessoal de ninguém, mas construir nossa sobrevivência e nosso patrimônio juntos!

Na instituição do diaconato primitivo
No tempo dos apóstolos, a igreja era constituída de judeus e gentios ou, melhor, de judeus de fala hebraica, que viviam na Palestina, e de judeus de fala grega, que viviam em países fora da Palestina. No princípio, as necessidades de ambos os grupos eram plenamente supridas pela igreja: “Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham” (At 4.32-35, NVI).

Com o grande crescimento numérico da igreja, o velho problema da discriminação arrebentou: as viúvas dos judeus de fala grega “estavam sendo esquecidas na distribuição diária de alimento” (At 6.1, NVI). Em vez de serem caladas e repreendidas por levantarem suas vozes contra essa desesperadora e injusta situação, as viúvas lesadas obtiveram imediata atenção dos apóstolos. Para não haver acúmulo de trabalho, para não prejudicar nem a pregação da Palavra nem os necessitados, para preservar a unidade até então existente e levada a sério, os apóstolos promoveram a eleição de “sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria” para cuidar do aspecto diaconal da igreja. E todos, os queixosos e os não-queixosos, as viúvas de língua hebraica e as viúvas de língua grega, ficaram satisfeitos (At 6.1-7). Graças à rapidez e ao acerto dessa providência, a primeira tentação de divisão da igreja foi vencida.

Na Epístola de Tiago
Dirigida “às doze tribos dispersas entre as nações” (Tg 1.1, NVI), a Epístola que leva o nome de Tiago muito provavelmente foi escrita pelo irmão do Senhor, a quem Jesus apareceu depois de ressuscitado. Deve ser o mesmo que é chamado de uma das colunas da igreja e o mesmo que presidiu o primeiro concílio cristão em Jerusalém (At 15.13; 1 Co 15.7; Gl 1.19; 2.9). Mais do qualquer outro escritor do Novo Testamento, Tiago é extremamente severo quando trata da discriminação social e opressão econômica, como se pode ver nos textos a seguir:

“Meus irmãos, como crentes em nosso glorioso Senhor Jesus Cristo, não façam diferença entre as pessoas, tratando-as com parcialidade. Suponham que na reunião de vocês entre um homem com anel de ouro e roupas finas, e também entre um pobre com roupas velhas e sujas. Se vocês derem atenção especial ao homem que está vestido com roupas finas e disserem: ‘Aqui está um lugar apropriado para o senhor’, mas disserem ao pobre: ‘Você, fique em pé ali’, ou ‘Sente-se no chão, junto ao estrado onde ponho os meus pés’, não estarão fazendo discriminação, fazendo julgamentos com critérios errados?” (Tg 2.1-4, NVI.)

“Vocês têm desprezado o pobre. Não são os ricos que oprimem vocês? Não são eles os que os arrastam para os tribunais?” (Tg 2.6, NVI.)

“Se um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer’, sem porém lhes dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada de obras, está morta” (Tg 2.15-17, NVI).

“Ouçam agora vocês, ricos! Chorem e lamentem-se, tendo em vista a desgraça que lhes sobrevirá... Vejam, o salário dos trabalhadores que ceifaram os seus campos, e que vocês retiveram com fraude, está clamando contra vocês. O lamento dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos... Vocês têm condenado e matado o justo, sem que ele ofereça resistência (Tg 5.1-6).

Segundo historiadores da época (Hegésipo, Josefo e Eusébio), Tiago foi martirizado no ano 62 da era cristã, tendo sido atirado do pináculo do templo.

Precisamos nos convencer de que a justiça social é um compromisso inerente ao cristão. Tanto Isaías quanto Amós mostram que a retidão e a justiça são mais importantes que as cerimônias religiosas. Em vez de ofertas de holocaustos, e muitos outros atos litúrgicos, o Senhor ordena: “Busquem a justiça, acabem com a opressão” (Is 1.17) ou “corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene!” (Am 5.24.)


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