Opinião
- 02 de janeiro de 2017
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CINEMA | A Chegada
Ficção científica é um gênero, literário e fílmico, que tem, e sempre teve, legiões de consumidores e admiradores. Trata-se de uma manifestação cultural e estética muito arborizada, variando desde a space opera – aquela aventura leve, de enredo simples, cujo principal representante nos últimos quarenta anos é a franquia Star Wars, e que tem como antepassados as peripécias de Flash Gordon no Planeta Mongo e de John Carpenter em Marte –, de Edgard Rice Burroughs (o mesmo criador de Tarzan), a ficção científica “hard”, representada por pesos pesados como Arthur C. Clarke (autor de obras de cunho metafísico, sendo provavelmente a mais famosa “2001: uma odisseia no espaço”) e Isaac Asimov.
A ficção científica sempre foi explorada no cinema. Na década de 1950 as produções “tipo B”, de Roger Corman, de orçamento baixíssimo e enredos óbvios (como “O emissário de outro mundo” e “A criatura que conquistou o mundo”), apesar de estarem muito, muito distantes de serem obras primas, fizeram sucesso estrondoso. Roger Corman, firme e forte com seus 90 anos, representou no cinema dos Estados Unidos um papel semelhante ao que Carlos Imperial representou na música do Brasil em meados do século passado, no sentido que ambos lançaram muita gente que ficou famosa e faz sucesso até hoje, lá e cá.
E eis que no final de 2016 os fãs de ficção científica – sci fi – são brindados com “A Chegada” (Arrival), um filme excelente, incomparavelmente melhor que Independence Day, melhor até que o celebrado Interestelar. Do diretor franco-canadense Denis Villeneuve, o filme é baseado no conto “História da sua vida”, que faz parte da coletânea do mesmo nome do livro de contos do jovem escritor estadunidense Ted Chiang (a propósito, neste mesmo livro há dois contos, “A torre da Babilônia” e “Entenda” que têm tudo para serem super filmes. “A torre da Babilônia” é inspirada na narrativa da construção da Torre de Babel, no Gênesis, e “Entenda” é sobre um homem que, após um acidente, recebe um tratamento experimental em um hospital, e volta de um estado de coma com a inteligência aumentada, transformando-se em uma espécie de Ozymandias, do Watchmen, de Alan Moore).
É só mais um filme de extraterrestres?
Pois bem, voltando a atenção ao filme: a “chegada” em questão é a de extraterrestres. Até aí, nada de novo. Este tema tem sido o mote de incontáveis livros e filmes de sci fi. Só que os aliens de Chiang e de Villeneuve são totalmente diferentes de quaisquer outros que já desembarcaram em nosso planeta azul: não são beligerantes, não enviam nenhuma mensagem (logo, nenhum deles diz a famosa frase “Leve-me ao seu líder”), não respondem a nada que os governos tentam lhes comunicar. Antes de se prosseguir: o filme de Villeneuve em muitos momentos é bastante diferente do conto de Chiang. Uma das diferenças mais notáveis está no fato que no filme há elementos de natureza geopolítica que, conquanto absoluta e totalmente verossímeis, são ausentes no conto.
Em uma tentativa de entrar em contato com os alienígenas, que os humanos chamam de “heptápodes” (seres imensos, que fazem lembrar elefantes, só que sem marfins, sem orelhas, sem olhos e sem boca, e com sete pés, logo, “heptápodes”), o governo dos Estados Unidos convoca da Dra. Louise Banks (vivida pela atriz Amy Adams, no que seguramente até o momento é o melhor papel de sua carreira), linguista de renome, para interpretar a linguagem dos heptápodes, que os humanos conseguiram captar em gravações. Para esta tarefa, ela é ajudada por um físico, o Prof. Ian Donnelly (no conto, ao invés de Ian, é Gary), vivido por Jeremy Renner, o Gavião Arqueiro dos Vingadores (em atuação muito apagada). A Dra. Banks descobre que os visitantes, que vieram sabe-se lá de onde, no espaço têm duas línguas, uma escrita, e uma falada. A falada soa aos ouvidos humanos como uma sequência de grunhidos, e a escrita, não passa de círculos com borrões. Como decifrar uma linguagem tão complexa, sem qualquer paralelo com as línguas humanas, e o que é pior, sem uma Pedra de Roseta?
É exatamente neste ponto que residem a originalidade e a genialidade do filme de Villeneuve: A Chegada é uma ficção científica totalmente diferente das outras, pois não é futurista, não é nem utopia nem distopia, não se baseia em ciências exatas, mas na linguística, que é uma das ciências humanas. Neste sentido, pode-se afirmar que o filme é uma reinvenção do gênero. Pois não tem nenhum clichê. O filme apenas arranha o conflito entre as ciências exatas e as humanas. Teria sido interessantíssimo se esta questão fosse aprofundada, mas infelizmente Villeneuve optou por simplesmente tocar neste ponto de modo muito superficial.
Nem ação, nem aventura
O outro ponto da genialidade da adaptação de Villeneuve do conto de Chiang está no fato que não se trata de um sci fi de ação ou aventura, e nem é uma obra com pretensões de natureza religiosa. A Chegada é um drama. Toda a narrativa é marcada pela história de vida da Dra. Banks, que, divorciada, recentemente passara pelo trauma de perder sua filha única. Todos estes elementos fazem de A Chegada um filme belo e sensível, diferente e original. Mas ao mesmo tempo, um filme difícil. Com certeza muitos acostumados com filmes blockbuster irão considerá-lo como “parado” demais e sem sentido. O que é uma pena, pois A Chegada é um dos filmes mais inteligentes dos últimos tempos. Não será surpresa nenhuma se receber indicações para o Oscar em categorias importantes, como Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção ou até mesmo Melhor Filme.
Todo o filme gira em torno da questão da linguagem. Chiang e Villeneuve trabalham a partir da teoria linguística de Sapir e Whorf, que defende que a estrutura de uma língua define como a pessoa que a fala entende e conhece o mundo ao seu redor. Sem entrar no mérito da teoria, o que ninguém poderá negar é que toda nossa aproximação com a realidade se dá pela mediação da linguagem. Rubem Alves gostava de dizer que somos feitos de palavras, as palavras nos formam.
Conforme então a teoria de Sapir e Whorf, o processo de conhecimento é determinado pela língua. Neste sentido, faz lembrar o conhecido aforismo de Ludwig Wittgenstein, que, não coincidentemente, era filósofo da linguagem: “os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”. É uma teoria de determinismo linguístico: somos determinados a partir da estrutura da língua que falamos. Uma variação ficcional desta teoria aparece no famoso romance “1984”, de George Orwell, em que um governo totalitário cria uma versão simplificada do inglês falado, na qual não há palavras para alguns conceitos e ações. Assim, seria mais fácil controlar as pessoas, pois, se não há na língua uma palavra para uma determinada situação, esta seria completamente desconhecida, e, portanto, não desejada.
Nem passado, nem futuro
Outra questão derivada desta tratada no filme é quanto à percepção do tempo. Nós ocidentais entendemos o tempo como linear: o passado antes, o futuro depois. A melhor representação gráfica desta maneira de “ver” o tempo é a do antigo deus romano Janus Bifronte, apresentado como um homem com dois rostos em uma só cabeça, um olhando para frente, o outro, evidentemente, para trás: o rosto que olhava para a frente via a o futuro, e o outro, claro, o passado. Os quéchuas da América do Sul têm uma compreensão totalmente diferente: eles entendem que somos pessoas que andam de marcha à ré, “de fasto”, como dizem os caipiras mineiros: o que vemos na verdade, é o passado, não o futuro. O que está adiante de nós, o que efetivamente vemos, é o ontem, o passado. Caminhamos de costas para o futuro.
Os hetpápodes imaginados por Chiang, e muitíssimo bem adaptados para o cinema por Villeneuve, não têm uma visão linear do tempo. Eles entendem o tempo de uma maneira que não é nem quéchua nem ocidental clássica. A visão dos heptápodes, tal como sua escrita, é circular. O círculo, em qualquer galáxia, não tem nem início nem fim. O conceito de tempo dos heptápodes não conhece conceitos como “antes” e “depois”. Para eles, tudo é um contínuo. E a Dra. Banks, depois de aprender a linguagem deles, meio que por osmose, adquire a capacidade de entender o tempo assim, o que passa a impressão que ela teria adquirido o “dom” de ver o futuro. Mas não foi isto que aconteceu. Villeneuve com uma graciosidade rara apresenta isto no filme de maneira singela e bela: as cenas do “passado” e do “futuro” são apresentadas com cores bem vivas, enquanto as do “presente” são apresentadas monocromaticamente acinzentadas. Por um lado, isto combina com o clima frio de Montana. Por outro lado, mostra graficamente o que seria para uma cultura não fazer distinção entre passado, presente e futuro.
A Chegada é um bom filme. Não é diversão fácil e despretensiosa. Mas vale cada centavo pago pelo ingresso, e cada segundo gasto para assisti-lo.
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A ficção científica sempre foi explorada no cinema. Na década de 1950 as produções “tipo B”, de Roger Corman, de orçamento baixíssimo e enredos óbvios (como “O emissário de outro mundo” e “A criatura que conquistou o mundo”), apesar de estarem muito, muito distantes de serem obras primas, fizeram sucesso estrondoso. Roger Corman, firme e forte com seus 90 anos, representou no cinema dos Estados Unidos um papel semelhante ao que Carlos Imperial representou na música do Brasil em meados do século passado, no sentido que ambos lançaram muita gente que ficou famosa e faz sucesso até hoje, lá e cá.
E eis que no final de 2016 os fãs de ficção científica – sci fi – são brindados com “A Chegada” (Arrival), um filme excelente, incomparavelmente melhor que Independence Day, melhor até que o celebrado Interestelar. Do diretor franco-canadense Denis Villeneuve, o filme é baseado no conto “História da sua vida”, que faz parte da coletânea do mesmo nome do livro de contos do jovem escritor estadunidense Ted Chiang (a propósito, neste mesmo livro há dois contos, “A torre da Babilônia” e “Entenda” que têm tudo para serem super filmes. “A torre da Babilônia” é inspirada na narrativa da construção da Torre de Babel, no Gênesis, e “Entenda” é sobre um homem que, após um acidente, recebe um tratamento experimental em um hospital, e volta de um estado de coma com a inteligência aumentada, transformando-se em uma espécie de Ozymandias, do Watchmen, de Alan Moore).
É só mais um filme de extraterrestres?
Pois bem, voltando a atenção ao filme: a “chegada” em questão é a de extraterrestres. Até aí, nada de novo. Este tema tem sido o mote de incontáveis livros e filmes de sci fi. Só que os aliens de Chiang e de Villeneuve são totalmente diferentes de quaisquer outros que já desembarcaram em nosso planeta azul: não são beligerantes, não enviam nenhuma mensagem (logo, nenhum deles diz a famosa frase “Leve-me ao seu líder”), não respondem a nada que os governos tentam lhes comunicar. Antes de se prosseguir: o filme de Villeneuve em muitos momentos é bastante diferente do conto de Chiang. Uma das diferenças mais notáveis está no fato que no filme há elementos de natureza geopolítica que, conquanto absoluta e totalmente verossímeis, são ausentes no conto.
Em uma tentativa de entrar em contato com os alienígenas, que os humanos chamam de “heptápodes” (seres imensos, que fazem lembrar elefantes, só que sem marfins, sem orelhas, sem olhos e sem boca, e com sete pés, logo, “heptápodes”), o governo dos Estados Unidos convoca da Dra. Louise Banks (vivida pela atriz Amy Adams, no que seguramente até o momento é o melhor papel de sua carreira), linguista de renome, para interpretar a linguagem dos heptápodes, que os humanos conseguiram captar em gravações. Para esta tarefa, ela é ajudada por um físico, o Prof. Ian Donnelly (no conto, ao invés de Ian, é Gary), vivido por Jeremy Renner, o Gavião Arqueiro dos Vingadores (em atuação muito apagada). A Dra. Banks descobre que os visitantes, que vieram sabe-se lá de onde, no espaço têm duas línguas, uma escrita, e uma falada. A falada soa aos ouvidos humanos como uma sequência de grunhidos, e a escrita, não passa de círculos com borrões. Como decifrar uma linguagem tão complexa, sem qualquer paralelo com as línguas humanas, e o que é pior, sem uma Pedra de Roseta?
É exatamente neste ponto que residem a originalidade e a genialidade do filme de Villeneuve: A Chegada é uma ficção científica totalmente diferente das outras, pois não é futurista, não é nem utopia nem distopia, não se baseia em ciências exatas, mas na linguística, que é uma das ciências humanas. Neste sentido, pode-se afirmar que o filme é uma reinvenção do gênero. Pois não tem nenhum clichê. O filme apenas arranha o conflito entre as ciências exatas e as humanas. Teria sido interessantíssimo se esta questão fosse aprofundada, mas infelizmente Villeneuve optou por simplesmente tocar neste ponto de modo muito superficial.
Nem ação, nem aventura
O outro ponto da genialidade da adaptação de Villeneuve do conto de Chiang está no fato que não se trata de um sci fi de ação ou aventura, e nem é uma obra com pretensões de natureza religiosa. A Chegada é um drama. Toda a narrativa é marcada pela história de vida da Dra. Banks, que, divorciada, recentemente passara pelo trauma de perder sua filha única. Todos estes elementos fazem de A Chegada um filme belo e sensível, diferente e original. Mas ao mesmo tempo, um filme difícil. Com certeza muitos acostumados com filmes blockbuster irão considerá-lo como “parado” demais e sem sentido. O que é uma pena, pois A Chegada é um dos filmes mais inteligentes dos últimos tempos. Não será surpresa nenhuma se receber indicações para o Oscar em categorias importantes, como Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção ou até mesmo Melhor Filme.
Todo o filme gira em torno da questão da linguagem. Chiang e Villeneuve trabalham a partir da teoria linguística de Sapir e Whorf, que defende que a estrutura de uma língua define como a pessoa que a fala entende e conhece o mundo ao seu redor. Sem entrar no mérito da teoria, o que ninguém poderá negar é que toda nossa aproximação com a realidade se dá pela mediação da linguagem. Rubem Alves gostava de dizer que somos feitos de palavras, as palavras nos formam.
Conforme então a teoria de Sapir e Whorf, o processo de conhecimento é determinado pela língua. Neste sentido, faz lembrar o conhecido aforismo de Ludwig Wittgenstein, que, não coincidentemente, era filósofo da linguagem: “os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”. É uma teoria de determinismo linguístico: somos determinados a partir da estrutura da língua que falamos. Uma variação ficcional desta teoria aparece no famoso romance “1984”, de George Orwell, em que um governo totalitário cria uma versão simplificada do inglês falado, na qual não há palavras para alguns conceitos e ações. Assim, seria mais fácil controlar as pessoas, pois, se não há na língua uma palavra para uma determinada situação, esta seria completamente desconhecida, e, portanto, não desejada.
Nem passado, nem futuro
Outra questão derivada desta tratada no filme é quanto à percepção do tempo. Nós ocidentais entendemos o tempo como linear: o passado antes, o futuro depois. A melhor representação gráfica desta maneira de “ver” o tempo é a do antigo deus romano Janus Bifronte, apresentado como um homem com dois rostos em uma só cabeça, um olhando para frente, o outro, evidentemente, para trás: o rosto que olhava para a frente via a o futuro, e o outro, claro, o passado. Os quéchuas da América do Sul têm uma compreensão totalmente diferente: eles entendem que somos pessoas que andam de marcha à ré, “de fasto”, como dizem os caipiras mineiros: o que vemos na verdade, é o passado, não o futuro. O que está adiante de nós, o que efetivamente vemos, é o ontem, o passado. Caminhamos de costas para o futuro.
Os hetpápodes imaginados por Chiang, e muitíssimo bem adaptados para o cinema por Villeneuve, não têm uma visão linear do tempo. Eles entendem o tempo de uma maneira que não é nem quéchua nem ocidental clássica. A visão dos heptápodes, tal como sua escrita, é circular. O círculo, em qualquer galáxia, não tem nem início nem fim. O conceito de tempo dos heptápodes não conhece conceitos como “antes” e “depois”. Para eles, tudo é um contínuo. E a Dra. Banks, depois de aprender a linguagem deles, meio que por osmose, adquire a capacidade de entender o tempo assim, o que passa a impressão que ela teria adquirido o “dom” de ver o futuro. Mas não foi isto que aconteceu. Villeneuve com uma graciosidade rara apresenta isto no filme de maneira singela e bela: as cenas do “passado” e do “futuro” são apresentadas com cores bem vivas, enquanto as do “presente” são apresentadas monocromaticamente acinzentadas. Por um lado, isto combina com o clima frio de Montana. Por outro lado, mostra graficamente o que seria para uma cultura não fazer distinção entre passado, presente e futuro.
A Chegada é um bom filme. Não é diversão fácil e despretensiosa. Mas vale cada centavo pago pelo ingresso, e cada segundo gasto para assisti-lo.
Leia também
5 filmes para assistir nas férias
A redenção das sete artes: cinema
Engolidos pela Cultura Pop – Arte, mídia, e consumo: uma abordagem cristã
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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- 02 de janeiro de 2017
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