Opinião
- 28 de outubro de 2016
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Caravaggio e o papel das artes visuais na Contrarreforma
A Reforma Protestante não deixou um legado particularmente extenso nas artes visuais. A rejeição à veneração dos santos e a ênfase no estudo racional da palavra escrita fizeram que a tradição protestante se afastasse do uso das imagens. É interessante notar, no entanto, que a reação da Igreja Católica ao movimento iniciado por Lutero - a chamada Contrarreforma - teve nas artes visuais uma dimensão relevante.
A arte foi usada pela igreja durante séculos como poderoso recurso didático. Mosaicos, vitrais, ícones e pinturas desempenharam ao longo da história o papel fundamental de facilitar a compreensão da revelação de Deus para grande parte da população. Com a Reforma, a Igreja Católica, que há muito patrocinava as artes, redobrou sua aposta nas artes como forma de alcançar os que ameaçavam deixar o catolicismo.
O fervor religioso e místico promovido pela Contrarreforma a partir do final do século XVI foi acompanhado por um grande desenvolvimento da arte sacra. A igreja buscava maravilhar e reconquistar seus fiéis. O uso exagerado de elementos decorativos nos templos deu origem ao estilo artístico denominado Barroco. Na pintura, o maior expoente desse período foi Michelangelo Merisi da Caravaggio, nascido em 1571 na Lombardia, no norte da Itália, mais de 50 anos depois da publicação das teses de Lutero e oito anos após o encerramento do Concílio de Trento, por meio do qual a Igreja Católica buscou reafirmar sua autoridade frente ao desafio protestante.
Anteriormente, os artistas que trabalhavam para a igreja eram valorizados por representarem histórias e personagens bíblicos de acordo com o modelo de perfeição herdado do classicismo grego, com proporções perfeitas, angelicais, divinas - e irreais. Caravaggio inova com um realismo fascinante. Suas figuras humanas são volumosas, como se fossem saltar da tela e se mover ao redor do espectador. Suas telas são recheadas de detalhes cotidianos que dão veracidade à cena. Seus personagens vestem roupas comuns, não vestimentas aristocráticas. Pés descalços e sujos, cenários com poucos móveis rústicos, olhares expressivos e simplicidade que esconde refinada sofisticação técnica.
Inicialmente, ver personagens importantes da Bíblia representados forma tão humilde choca o clero romano, e Caravaggio chega a ser perseguido. Mas num momento em que a Igreja Católica procura formas de se aproximar dos fiéis, a pintura realista de Caravaggio ganha espaço, pois fica clara a identificação dos fiéis com os santos pintados pelo artista. O pintor passa a receber encomendas para representar cenas bíblicas em telas e painéis destinados às paredes de capelas cristãs e produz suas obras mais expressivas ao redor de 1600. Caravaggio se aprofunda na técnica da pintura barroca e desenvolve um jogo de claro e escuro que dá à tela uma dramaticidade teatral. O espectador é assaltado por uma obra que o envolve. Com habilidade incomum, o artista representa vívidos estados emocionais em personagens com grande expressividade facial e corporal.
Caravaggio não era um cristão devoto. Tinha um temperamento difícil e levava uma vida mundana. Faz-se assim ainda mais surpreendente sua capacidade de entender os acontecimentos das Escrituras e de representá-los de forma não só real e expressiva, mas também simples e conectada com o público. O renomado historiador e crítico de arte Ernst Gombrich, em seu clássico livro "A História da Arte", afirma que Caravaggio certamente aparenta ter lido e se aprofundado nas narrativas bíblicas.
Caravaggio desempenhou um papel significativo na Contrarreforma, trabalhando incansavelmente para produzir obras com o potencial de atrair o povo de volta aos templos esvaziados da Igreja Católica. No momento em que estamos prestes a celebrar 500 anos de Reforma Protestante, a trajetória de Caravaggio nos inspira a refletir sobre o papel que novas e velhas formas de representação artística podem desempenhar, sob a condução do Espírito Santo, nos desafios enfrentados pela igreja cristã em nossos dias.
Foto de abertura: Caravaggio, “A incredulidade de São Tomé”, 1600-1601, Accademia, Veneza.
- A expressão de surpresa dos discípulos e o exagerado toque na ferida de Jesus reforçam a veracidade da cena.
Foto 2: Caravaggio, “O Sepultamento de Cristo”, 1602-1604, Pinacoteca Vaticana, Vaticano.
- O olhar de Nicodemos direcionado ao espectador é como um convite para participarmos do acontecimento.
Foto 3: Caravaggio, “O sacrifício de Isaque”, 1603, Galeria Uffizi, Florença.
- Vários elementos na tela reforçam a fidelidade ao texto bíblico, como a faca, o altar, o cordeiro e a lenha para o sacrifício.
Rosana Basile é artista plástica, com habilitação escultura e pós-graduação em sociologia da moda pela Universidade Roma Tre, na Itália e Davi Pinto é diplomata. Juntos criaram o Teologarte, site que busca conectar as artes e a fé cristã.
Leia Mais
- A Reforma Protestante em estudos bíblicos
- Sola Gratia, Solus Christus, Sola Fide, Sola Scriptura: a soteriologia dos reformadores
A arte foi usada pela igreja durante séculos como poderoso recurso didático. Mosaicos, vitrais, ícones e pinturas desempenharam ao longo da história o papel fundamental de facilitar a compreensão da revelação de Deus para grande parte da população. Com a Reforma, a Igreja Católica, que há muito patrocinava as artes, redobrou sua aposta nas artes como forma de alcançar os que ameaçavam deixar o catolicismo.
O fervor religioso e místico promovido pela Contrarreforma a partir do final do século XVI foi acompanhado por um grande desenvolvimento da arte sacra. A igreja buscava maravilhar e reconquistar seus fiéis. O uso exagerado de elementos decorativos nos templos deu origem ao estilo artístico denominado Barroco. Na pintura, o maior expoente desse período foi Michelangelo Merisi da Caravaggio, nascido em 1571 na Lombardia, no norte da Itália, mais de 50 anos depois da publicação das teses de Lutero e oito anos após o encerramento do Concílio de Trento, por meio do qual a Igreja Católica buscou reafirmar sua autoridade frente ao desafio protestante.
Anteriormente, os artistas que trabalhavam para a igreja eram valorizados por representarem histórias e personagens bíblicos de acordo com o modelo de perfeição herdado do classicismo grego, com proporções perfeitas, angelicais, divinas - e irreais. Caravaggio inova com um realismo fascinante. Suas figuras humanas são volumosas, como se fossem saltar da tela e se mover ao redor do espectador. Suas telas são recheadas de detalhes cotidianos que dão veracidade à cena. Seus personagens vestem roupas comuns, não vestimentas aristocráticas. Pés descalços e sujos, cenários com poucos móveis rústicos, olhares expressivos e simplicidade que esconde refinada sofisticação técnica.
Inicialmente, ver personagens importantes da Bíblia representados forma tão humilde choca o clero romano, e Caravaggio chega a ser perseguido. Mas num momento em que a Igreja Católica procura formas de se aproximar dos fiéis, a pintura realista de Caravaggio ganha espaço, pois fica clara a identificação dos fiéis com os santos pintados pelo artista. O pintor passa a receber encomendas para representar cenas bíblicas em telas e painéis destinados às paredes de capelas cristãs e produz suas obras mais expressivas ao redor de 1600. Caravaggio se aprofunda na técnica da pintura barroca e desenvolve um jogo de claro e escuro que dá à tela uma dramaticidade teatral. O espectador é assaltado por uma obra que o envolve. Com habilidade incomum, o artista representa vívidos estados emocionais em personagens com grande expressividade facial e corporal.
Caravaggio não era um cristão devoto. Tinha um temperamento difícil e levava uma vida mundana. Faz-se assim ainda mais surpreendente sua capacidade de entender os acontecimentos das Escrituras e de representá-los de forma não só real e expressiva, mas também simples e conectada com o público. O renomado historiador e crítico de arte Ernst Gombrich, em seu clássico livro "A História da Arte", afirma que Caravaggio certamente aparenta ter lido e se aprofundado nas narrativas bíblicas.
Caravaggio desempenhou um papel significativo na Contrarreforma, trabalhando incansavelmente para produzir obras com o potencial de atrair o povo de volta aos templos esvaziados da Igreja Católica. No momento em que estamos prestes a celebrar 500 anos de Reforma Protestante, a trajetória de Caravaggio nos inspira a refletir sobre o papel que novas e velhas formas de representação artística podem desempenhar, sob a condução do Espírito Santo, nos desafios enfrentados pela igreja cristã em nossos dias.
Foto de abertura: Caravaggio, “A incredulidade de São Tomé”, 1600-1601, Accademia, Veneza.
- A expressão de surpresa dos discípulos e o exagerado toque na ferida de Jesus reforçam a veracidade da cena.
Foto 2: Caravaggio, “O Sepultamento de Cristo”, 1602-1604, Pinacoteca Vaticana, Vaticano.
- O olhar de Nicodemos direcionado ao espectador é como um convite para participarmos do acontecimento.
Foto 3: Caravaggio, “O sacrifício de Isaque”, 1603, Galeria Uffizi, Florença.
- Vários elementos na tela reforçam a fidelidade ao texto bíblico, como a faca, o altar, o cordeiro e a lenha para o sacrifício.
Rosana Basile é artista plástica, com habilitação escultura e pós-graduação em sociologia da moda pela Universidade Roma Tre, na Itália e Davi Pinto é diplomata. Juntos criaram o Teologarte, site que busca conectar as artes e a fé cristã.
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