Opinião
- 18 de julho de 2017
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A ética do amor em tempos de cólera política
Por Paul Freston e Raphael Freston
Vocês sabem muito bem de que país estamos falando. Um país marcado por um nível espantoso de corrupção (que vem de várias décadas e que envolve grandes empresas nacionais), pelo impeachment da presidente e por frequentes manifestações multitudinárias de rua. E que, além de tudo isso, tem uma porcentagem alta de evangélicos e algumas das maiores igrejas do mundo.
Claro, o país de que falamos é... a Coreia do Sul. País que guarda todas essas semelhanças com o Brasil, mas também que guarda diferenças significativas que nos ajudam a colocar o caso brasileiro em perspectiva. A presidente que sofreu o impeachment era de direita. E, apesar de a corrupção ser antiga e enraizada no país, a Coreia do Sul não deixou de progredir economicamente; mesmo tendo começado em grande desvantagem há sessenta anos, já deixou o Brasil muito para trás em termos de renda per capita.
O caso da Coreia nos mostra, em primeiro lugar, que a corrupção, por si só, não mantém um país no atraso, e que a sua superação (ou melhor, diminuição, pois a superação total é impossível) não garante o avanço. A corrupção brasileira é grave e deve ser combatida; mas sem a ilusão de que seja a maior responsável pelas mazelas nacionais.
Em segundo lugar, o caso coreano nos lembra que a corrupção não é atributo exclusivo ou mesmo preferencial de determinado ponto do espectro político; é um atributo humano, que tende a florescer sempre que houver condições propícias, mas que pode ser controlado por sábios arranjos institucionais, fortalecidos por um longo e persistente trabalho cultural de formação de mentalidades. Para quem duvidava (ou seja, para quem não havia assimilado bem a visão cristã do ser humano, possivelmente porque foi influenciado pela canalização midiática dos sentimentos de revolta), os acontecimentos de 2017 no Brasil estão demonstrando claramente que o problema é sistêmico, e não partidarizado ou ideologizado.
O que está acontecendo no Brasil anuncia uma profunda mudança no país? Ou é apenas um episódio a mais numa história cíclica de movimentos periódicos de limpeza catártica do corpo político, os quais precisam ser sempre repetidos após algum tempo porque, na linguagem de Jesus, a casa varrida, mas vazia já passou a ser reocupada?
A resposta vai depender em boa parte das lições que tiramos, ou deixamos de tirar, dos acontecimentos de 2016–2017. Por exemplo, a lição de como o processo de limpeza se tornou possível (ou seja, quais as medidas, e práticas administrativas, que aumentaram a capacidade de fiscalização e a independência dos órgãos ora responsáveis pela abrangência das investigações). A lição de como estamos colhendo em 2017 a tempestade que semeamos em 2016 (o que vale também para os Estados Unidos, e que deve valer para nos alertar contra os Trumps tupiniquins que certamente aparecerão em 2018!). A lição de como os processos devem ser observados corretamente, punindo o que deve ser punido, mas não desvalorizando a moeda da medida constitucional séria do impeachment (que não é para transgressões menores, nem para remover mandatários impopulares). A lição de como a corrupção é claramente favorecida por determinadas características do sistema político, com poucas chances de o próprio sistema aprovar, sem grande pressão externa, as mudanças necessárias.
Enquanto isso, é importante que os cristãos não se deixem consumir pelo ódio político, mas que deem exemplo de uma comunidade, não unida politicamente (o que, além de impossível, seria indesejável porque decorreria somente de uma unidade manipulada), mas unida no tratamento cristão das diferenças políticas.
Aqui, precisamos da sabedoria bíblica na relação entre o universal e o particular. À primeira vista, pode parecer que as exortações bíblicas de amar a todos, mas especialmente os irmãos na fé transgridam o espírito humanitário universal. Os cristãos não deveriam amar a todos indistintamente? A parábola do bom samaritano, que responde à indagação “quem é o meu próximo”, não aponta justamente para a universalização do amor, sem discriminações? Diante disso, as exortações mais aparentemente particularistas de amar e fazer o bem principalmente aos outros cristãos (como João 13.34-35, em que a capacidade dos cristãos de se amarem mutuamente é o fator mais importante na sua reputação diante do mundo; e Gálatas 6.10, em que “fazer o bem” é recomendado sobretudo aos que compartem da mesma fé) não seriam retrocessos, uma volta a um “tribalismo” às custas do amor generoso à espécie humana em geral?
Cada vez mais, os acontecimentos recentes nos convencem da sabedoria neotestamentária nesse ponto. As exortações mais particularistas, longe de contradizerem as universalistas, existem para proteger estas. Pois é especialmente tentador nutrir uma antipatia para com aqueles que nos são mais próximos, mas que discordam de nós! E, portanto, é especialmente necessário nos lembrar da necessidade de amá-los. E, consequentemente, não difamá-los, ou menosprezá-los, ou distorcer as suas palavras e motivações.
Esse amor particular dentro do universal é imprescindível. Se os cristãos não forem capazes de viver essa ética do amor, dentro da comunidade cristã e justamente no meio da tormenta política que nos divide, como ao país inteiro, não teremos nada a contribuir à sociedade, pois ninguém nos reconhecerá como discípulos de Cristo. E, individualmente, perderemos de vista o sentido cristão da existência. Recordemos as palavras de um personagem cristão num livro de Dostoiévski: uma vez, no infinito do espaço e no tempo, nos é dada a possibilidade de dizer “eu sou e eu amo”. Uma vez somente nos é concedido um momento de amor ativo e vivo, para isso nos foi dada a vida terrestre, limitada no tempo. Não repilamos esse dom inestimável. O inferno é o sofrimento por não poder mais amar, porque a vida que se podia sacrificar ao amor já decorreu.
Nota: Texto publicado originalmente na seção Ética da revista Ultimato, edição 366 (julho/agosto).
• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.
• Raphael Freston é mestrando em sociologia na Universidade de São Paulo.
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Foto ilustrativa: Agência Brasil.
Vocês sabem muito bem de que país estamos falando. Um país marcado por um nível espantoso de corrupção (que vem de várias décadas e que envolve grandes empresas nacionais), pelo impeachment da presidente e por frequentes manifestações multitudinárias de rua. E que, além de tudo isso, tem uma porcentagem alta de evangélicos e algumas das maiores igrejas do mundo.
Claro, o país de que falamos é... a Coreia do Sul. País que guarda todas essas semelhanças com o Brasil, mas também que guarda diferenças significativas que nos ajudam a colocar o caso brasileiro em perspectiva. A presidente que sofreu o impeachment era de direita. E, apesar de a corrupção ser antiga e enraizada no país, a Coreia do Sul não deixou de progredir economicamente; mesmo tendo começado em grande desvantagem há sessenta anos, já deixou o Brasil muito para trás em termos de renda per capita.
O caso da Coreia nos mostra, em primeiro lugar, que a corrupção, por si só, não mantém um país no atraso, e que a sua superação (ou melhor, diminuição, pois a superação total é impossível) não garante o avanço. A corrupção brasileira é grave e deve ser combatida; mas sem a ilusão de que seja a maior responsável pelas mazelas nacionais.
Em segundo lugar, o caso coreano nos lembra que a corrupção não é atributo exclusivo ou mesmo preferencial de determinado ponto do espectro político; é um atributo humano, que tende a florescer sempre que houver condições propícias, mas que pode ser controlado por sábios arranjos institucionais, fortalecidos por um longo e persistente trabalho cultural de formação de mentalidades. Para quem duvidava (ou seja, para quem não havia assimilado bem a visão cristã do ser humano, possivelmente porque foi influenciado pela canalização midiática dos sentimentos de revolta), os acontecimentos de 2017 no Brasil estão demonstrando claramente que o problema é sistêmico, e não partidarizado ou ideologizado.
O que está acontecendo no Brasil anuncia uma profunda mudança no país? Ou é apenas um episódio a mais numa história cíclica de movimentos periódicos de limpeza catártica do corpo político, os quais precisam ser sempre repetidos após algum tempo porque, na linguagem de Jesus, a casa varrida, mas vazia já passou a ser reocupada?
A resposta vai depender em boa parte das lições que tiramos, ou deixamos de tirar, dos acontecimentos de 2016–2017. Por exemplo, a lição de como o processo de limpeza se tornou possível (ou seja, quais as medidas, e práticas administrativas, que aumentaram a capacidade de fiscalização e a independência dos órgãos ora responsáveis pela abrangência das investigações). A lição de como estamos colhendo em 2017 a tempestade que semeamos em 2016 (o que vale também para os Estados Unidos, e que deve valer para nos alertar contra os Trumps tupiniquins que certamente aparecerão em 2018!). A lição de como os processos devem ser observados corretamente, punindo o que deve ser punido, mas não desvalorizando a moeda da medida constitucional séria do impeachment (que não é para transgressões menores, nem para remover mandatários impopulares). A lição de como a corrupção é claramente favorecida por determinadas características do sistema político, com poucas chances de o próprio sistema aprovar, sem grande pressão externa, as mudanças necessárias.
Enquanto isso, é importante que os cristãos não se deixem consumir pelo ódio político, mas que deem exemplo de uma comunidade, não unida politicamente (o que, além de impossível, seria indesejável porque decorreria somente de uma unidade manipulada), mas unida no tratamento cristão das diferenças políticas.
Aqui, precisamos da sabedoria bíblica na relação entre o universal e o particular. À primeira vista, pode parecer que as exortações bíblicas de amar a todos, mas especialmente os irmãos na fé transgridam o espírito humanitário universal. Os cristãos não deveriam amar a todos indistintamente? A parábola do bom samaritano, que responde à indagação “quem é o meu próximo”, não aponta justamente para a universalização do amor, sem discriminações? Diante disso, as exortações mais aparentemente particularistas de amar e fazer o bem principalmente aos outros cristãos (como João 13.34-35, em que a capacidade dos cristãos de se amarem mutuamente é o fator mais importante na sua reputação diante do mundo; e Gálatas 6.10, em que “fazer o bem” é recomendado sobretudo aos que compartem da mesma fé) não seriam retrocessos, uma volta a um “tribalismo” às custas do amor generoso à espécie humana em geral?
Cada vez mais, os acontecimentos recentes nos convencem da sabedoria neotestamentária nesse ponto. As exortações mais particularistas, longe de contradizerem as universalistas, existem para proteger estas. Pois é especialmente tentador nutrir uma antipatia para com aqueles que nos são mais próximos, mas que discordam de nós! E, portanto, é especialmente necessário nos lembrar da necessidade de amá-los. E, consequentemente, não difamá-los, ou menosprezá-los, ou distorcer as suas palavras e motivações.
Esse amor particular dentro do universal é imprescindível. Se os cristãos não forem capazes de viver essa ética do amor, dentro da comunidade cristã e justamente no meio da tormenta política que nos divide, como ao país inteiro, não teremos nada a contribuir à sociedade, pois ninguém nos reconhecerá como discípulos de Cristo. E, individualmente, perderemos de vista o sentido cristão da existência. Recordemos as palavras de um personagem cristão num livro de Dostoiévski: uma vez, no infinito do espaço e no tempo, nos é dada a possibilidade de dizer “eu sou e eu amo”. Uma vez somente nos é concedido um momento de amor ativo e vivo, para isso nos foi dada a vida terrestre, limitada no tempo. Não repilamos esse dom inestimável. O inferno é o sofrimento por não poder mais amar, porque a vida que se podia sacrificar ao amor já decorreu.
Nota: Texto publicado originalmente na seção Ética da revista Ultimato, edição 366 (julho/agosto).
• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.
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