Opinião
- 24 de março de 2010
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A estranha teoria do homicídio sem morte
Marcia Suzuki
Alguns antropólogos e missionários brasileiros estão defendendo o indefensável. Por meio de trabalhos acadêmicos revestidos em roupagem de tolerância cultural, eles estão tentando disseminar uma teoria no mínimo racista. A teoria de que para certas sociedades humanas certas crianças não precisariam ser enxergadas como seres humanos. Nestas sociedades, matar essas crianças não envolveria morte, apenas “interdição” de um processo de construção de um ser humano. Mesmo que essa criança já tenha 2, 5 ou 10 anos de idade.
Deixe-me explicar melhor. Em qualquer sociedade, a criança precisa passar por certos rituais de socialização. Em muitos lugares do Brasil, a criança é considerada pagã se não passar pelo batismo católico. Ela precisa passar por esse ritual religioso para ser promovida a “gente” e ter acesso à vida eterna. Mais tarde, a criança terá que passar por outro ritual, que comemora o fato dela ter sobrevivido ao período mais vulnerável, que é o primeiro ano de vida. A festa de um aninho é um ritual muito importante na socialização da criança. Alguns anos mais tarde ela vai frequentar a escola e passará pelo difícil processo de alfabetização. A primeira festinha de formatura, a da classe de alfabetização, é uma celebração da construção dessa pessoinha na sociedade. Nestas sociedades, só a pessoa alfabetizada pode ter esperança de vir a ser funcional. E assim vai. Ela vai passar por um longo processo de “pessoalização”, até se tornar uma pessoa plena em sua sociedade.
Esse processo de socialização é normal e acontece em qualquer sociedade humana. As sociedades diferem apenas na definição dos estágios e na forma como a passagem de um estágio para outro é ritualizada.
Pois é. Esses antropólogos e missionários estão defendendo a teoria de que, para algumas sociedades, o “ser ainda em construção” poderá ser morto e o fato não deve ser percebido como morte. Repetindo: caso a “coisa” venha a ser assassinada nesse período, o processo não envolverá morte. Não é possível se matar uma coisa que não é gente. Para esses estudiosos, enterrar viva uma criança que ainda não esteja completamente socializada não envolveria morte.
Esse relativismo é racista por não se aplicar universalmente. Tais estudiosos não aplicam esta equação às crianças deles. Ou seja, aquelas nascidas nas grandes cidades, mas que não foram plenamente socializadas (como crianças de rua, bastardas ou deficientes mentais). Essa equação racista só se aplicaria àquelas crianças nascidas na floresta, filhas de pais e mães indígenas. Racismo revestido com um verniz de correção política e tolerância cultural.
Tristemente, o maior defensor desta hipótese é um líder católico, um missionário. Segundo ele "o infanticídio, para nós, é crime se houver morte. O aborto, talvez, seja mais próximo dessa prática dos índios, já que esta não mata um ser humano, e sim interdita a constituição do ser humano".1
Uma antropóloga da UNB concorda: "Uma criança indígena quando nasce não é uma pessoa. Ela passará por um longo processo de pessoalização para que adquira um nome e, assim, o status de 'pessoa'. Portanto, os raríssimos casos de neonatos que não são inseridos na vida social da comunidade não podem ser descritos e tratados como uma morte, pois não é. Infanticídio, então, nunca".2
Mais triste ainda é que esta antropóloga alega ser consultora da UNICEF, tendo sido escolhida para elaborar um relatório sobre a questão do infanticídio nas comunidades indígenas brasileiras.3 Como é que a UNICEF, que tem a tarefa defender os direitos universais das crianças, e que reconhece a vulnerabilidade das crianças indígenas4, escolheria uma antropóloga com esse perfil para fazer o relatório? Acredito que eles não saibam que sua consultora defende o direito de algumas sociedades humanas de “interditar” crianças ainda não plenamente socializadas.5
O papel da UNICEF deveria ser o de ouvir o grito de socorro dos inúmeros pais e mães indígenas dissidentes, grito este já fartamente documentado pelas próprias organizações indígenas e ONG’s indigenistas.6
A UNICEF deveria ouvir a voz de homens como Tabata Kuikuro, o cacique indígena xinguano que preferiu abandonar a vida na tribo do que permitir a morte de seus filhos. Segurando seus gêmeos sobreviventes no colo, em um lugar seguro longe da aldeia, ele comenta emocionado: “Olha prá eles, eles são gente, não são bicho, são meus filhos. Como é que eu poderia deixar matar?”.7
Para esses indígenas, criança é criança e morte é morte. Simples assim.
Notas
1. www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=347765
2. idem
3. Marianna Holanda fez essa declaração em palestra que ministrou em novembro de 2009 no auditório da UNIDESC, em Brasília.
4. Segundo relatório da UNICEF, as crianças indígenas são hoje as crianças mais vulneráveis do planeta. “Indigenous children are among the most vulnerable and marginalized groups in the world and global action is urgently needed to protect their survival and their rights, says a new report from UNICEF Innocenti Research Centre in Florence.”
5. Em algumas sociedades, crianças não socializadas seriam gêmeos, filhos de mãe solteira, de viúvas ou de relações incestuosas, crianças com deficiência física ou mental grave ou moderada, etc. A dita “interdição” do processo pode ocorrer em várias idades, tendo sido registrada com crianças de até 10 anos de idade, entre os Mayoruna, no Amazonas. Marianna defende essa “interdição” em dissertação intitulada “Quem são os humanos dos direitos?” Estudo contesta criminalização do infanticídio indígena
6. www.quebrandoosilencio.blog.br / www.movimentoindigenaafavordavida.blogspot.com / vimeo.com/1406660 carta aberta contra o infanticídio indígena
7. Trecho de depoimento do documentário “Quebrando o Silêncio”, dirigido pela jornalista indígena Sandra Terena. O documentário está disponível no link www.quebrandoosilencio.blog.br
• Márcia Suzuki é conselheira de ATINI – voz pela vida. www.atini.org
Leia o que Ultimato publicou sobre o assunto
• Os excluídos do caminho de Jericó e o infanticídio indígena, ed. 309
• Uma visão antropológica sobre a prática do infanticídio indígena no Brasil, ed. 309
Em breve leia também o livro “E uma criança os guiará”, lançamento do mês de maio!
Alguns antropólogos e missionários brasileiros estão defendendo o indefensável. Por meio de trabalhos acadêmicos revestidos em roupagem de tolerância cultural, eles estão tentando disseminar uma teoria no mínimo racista. A teoria de que para certas sociedades humanas certas crianças não precisariam ser enxergadas como seres humanos. Nestas sociedades, matar essas crianças não envolveria morte, apenas “interdição” de um processo de construção de um ser humano. Mesmo que essa criança já tenha 2, 5 ou 10 anos de idade.
Deixe-me explicar melhor. Em qualquer sociedade, a criança precisa passar por certos rituais de socialização. Em muitos lugares do Brasil, a criança é considerada pagã se não passar pelo batismo católico. Ela precisa passar por esse ritual religioso para ser promovida a “gente” e ter acesso à vida eterna. Mais tarde, a criança terá que passar por outro ritual, que comemora o fato dela ter sobrevivido ao período mais vulnerável, que é o primeiro ano de vida. A festa de um aninho é um ritual muito importante na socialização da criança. Alguns anos mais tarde ela vai frequentar a escola e passará pelo difícil processo de alfabetização. A primeira festinha de formatura, a da classe de alfabetização, é uma celebração da construção dessa pessoinha na sociedade. Nestas sociedades, só a pessoa alfabetizada pode ter esperança de vir a ser funcional. E assim vai. Ela vai passar por um longo processo de “pessoalização”, até se tornar uma pessoa plena em sua sociedade.
Esse processo de socialização é normal e acontece em qualquer sociedade humana. As sociedades diferem apenas na definição dos estágios e na forma como a passagem de um estágio para outro é ritualizada.
Pois é. Esses antropólogos e missionários estão defendendo a teoria de que, para algumas sociedades, o “ser ainda em construção” poderá ser morto e o fato não deve ser percebido como morte. Repetindo: caso a “coisa” venha a ser assassinada nesse período, o processo não envolverá morte. Não é possível se matar uma coisa que não é gente. Para esses estudiosos, enterrar viva uma criança que ainda não esteja completamente socializada não envolveria morte.
Esse relativismo é racista por não se aplicar universalmente. Tais estudiosos não aplicam esta equação às crianças deles. Ou seja, aquelas nascidas nas grandes cidades, mas que não foram plenamente socializadas (como crianças de rua, bastardas ou deficientes mentais). Essa equação racista só se aplicaria àquelas crianças nascidas na floresta, filhas de pais e mães indígenas. Racismo revestido com um verniz de correção política e tolerância cultural.
Tristemente, o maior defensor desta hipótese é um líder católico, um missionário. Segundo ele "o infanticídio, para nós, é crime se houver morte. O aborto, talvez, seja mais próximo dessa prática dos índios, já que esta não mata um ser humano, e sim interdita a constituição do ser humano".1
Uma antropóloga da UNB concorda: "Uma criança indígena quando nasce não é uma pessoa. Ela passará por um longo processo de pessoalização para que adquira um nome e, assim, o status de 'pessoa'. Portanto, os raríssimos casos de neonatos que não são inseridos na vida social da comunidade não podem ser descritos e tratados como uma morte, pois não é. Infanticídio, então, nunca".2
Mais triste ainda é que esta antropóloga alega ser consultora da UNICEF, tendo sido escolhida para elaborar um relatório sobre a questão do infanticídio nas comunidades indígenas brasileiras.3 Como é que a UNICEF, que tem a tarefa defender os direitos universais das crianças, e que reconhece a vulnerabilidade das crianças indígenas4, escolheria uma antropóloga com esse perfil para fazer o relatório? Acredito que eles não saibam que sua consultora defende o direito de algumas sociedades humanas de “interditar” crianças ainda não plenamente socializadas.5
O papel da UNICEF deveria ser o de ouvir o grito de socorro dos inúmeros pais e mães indígenas dissidentes, grito este já fartamente documentado pelas próprias organizações indígenas e ONG’s indigenistas.6
A UNICEF deveria ouvir a voz de homens como Tabata Kuikuro, o cacique indígena xinguano que preferiu abandonar a vida na tribo do que permitir a morte de seus filhos. Segurando seus gêmeos sobreviventes no colo, em um lugar seguro longe da aldeia, ele comenta emocionado: “Olha prá eles, eles são gente, não são bicho, são meus filhos. Como é que eu poderia deixar matar?”.7
Para esses indígenas, criança é criança e morte é morte. Simples assim.
Notas
1. www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=347765
2. idem
3. Marianna Holanda fez essa declaração em palestra que ministrou em novembro de 2009 no auditório da UNIDESC, em Brasília.
4. Segundo relatório da UNICEF, as crianças indígenas são hoje as crianças mais vulneráveis do planeta. “Indigenous children are among the most vulnerable and marginalized groups in the world and global action is urgently needed to protect their survival and their rights, says a new report from UNICEF Innocenti Research Centre in Florence.”
5. Em algumas sociedades, crianças não socializadas seriam gêmeos, filhos de mãe solteira, de viúvas ou de relações incestuosas, crianças com deficiência física ou mental grave ou moderada, etc. A dita “interdição” do processo pode ocorrer em várias idades, tendo sido registrada com crianças de até 10 anos de idade, entre os Mayoruna, no Amazonas. Marianna defende essa “interdição” em dissertação intitulada “Quem são os humanos dos direitos?” Estudo contesta criminalização do infanticídio indígena
6. www.quebrandoosilencio.blog.br / www.movimentoindigenaafavordavida.blogspot.com / vimeo.com/1406660 carta aberta contra o infanticídio indígena
7. Trecho de depoimento do documentário “Quebrando o Silêncio”, dirigido pela jornalista indígena Sandra Terena. O documentário está disponível no link www.quebrandoosilencio.blog.br
• Márcia Suzuki é conselheira de ATINI – voz pela vida. www.atini.org
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• Os excluídos do caminho de Jericó e o infanticídio indígena, ed. 309
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