Opinião
- 21 de agosto de 2014
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As cracolândias, os pobres e a humanidade de Deus
Deu na revista Ultimato. Uma reportagem sobre a Cracolândia — ou seria “cracolândias” –, na cidade que mais nos fascina no Brasil, São Paulo. Elben César, pastor presbiteriano septuagenário, entra na pele do “mineiro com cara de matuto”, pseudônimo que adotou para divulgar assuntos variados de interesse para a população evangélica tradicional. Entre as “cracolândias”, teve que escolher uma área mais adequada à observação, nas imediações do centro histórico. Mas poderia ter optado pela Barra Funda, Higienópolis, Campos Elíseos, Elevado Costa e Silva, no cardápio perverso das piores concentrações de pobreza em São Paulo, muito mais merecedor de atenção que as gigantescas favelas da Capital.
O tripé pentecostal cura, exorcismo, prosperidade, ruiria se houvesse qualquer cuidado quanto a aspectos da doença e da morte que ronda a todos. Drogadismo, alcoolismo, jogo patológico; câncer, AIDS, pneumonias, alergias, viroses, hipertensão, compõem o imenso repertório das doenças a que estamos sujeitos, antes da morte biológica, que, inadequadamente, recebem julgamento moral, na sociedade e nas igrejas. Mesmo não sendo pobre, miserável, excluída, a pessoa enferma dos dias atuais, tem que enfrentar uma fila imensa na porta dos laboratórios e clínicas especializadas. Deve estar pronta para consumir remédios caros, submeter-se a aparelhos de raios-x, endoscopia, colonoscopia, transplantes, quimioterapias, cirurgias, antes do fim fisiológico irreversível. Os modelos básicos de vida moral não são suficientes para fazer-nos esquecer dos desfavorecidos, desprotegidos quanto a políticas públicas para a saúde.
Pobres, gente comum na maioria, que habita as periferias das metrópoles, sem os caríssimos planos de saúde, sem previdência, não compõem os grupos privilegiados pela saúde melhor assistida, nem daqueles que dispõem das tecnologias de ponta no tratamento da saúde. A maioria desprotegida, sem vez e sem voz, não se insurge contra os privilegiados, propriamente. No saneamento básico, habitação, vacinação frequente e persistente para o combate às endemias, higiene pública, acesso a diagnósticos de doenças tratáveis, alcoolismo, diabetes, entre as muitas enfermidades elencadas nas urbes do nosso tempo, reclama-se igualdade nos tratamentos. Bem-postos sempre merecem a preferência nas políticas públicas. Nosso tempo, refletindo a falta de cuidado com o pobre, com a criança, o jovem, o idoso desprotegidos política e juridicamente, também demonstra falta de indignação e reivindicação do cuidado obrigatório para a sociedade por inteiro. Em igualdade. Sem exclusão. A pobreza extrema, contudo, é o carnegão social em qualquer das cidades de nosso país.
Temos uma análise a fazer entre as pretensões de pessoas e grupos obsessivos, sedentos de poder — dentro ou fora da igreja —, e o contraste entre as propostas para o seguimento do caminho de Jesus, como ele ensinou a respeito dos direitos às bem-aventuranças, sem exclusão. Isto fica patente neste episódio do evangelho de Mateus (Mateus 16.13-20). Por volta da metade do caminho, coincidindo exatamente com a “metade” do trabalho de formação dos discípulos que estão sendo preparados para o anúncio do Reino de Deus, na metade geográfica do caminho de Jerusalém. Jesus interroga seus seguidores sobre o que assimilaram até ali. Momento de perplexidade e desatenção.
As respostas não surpreendem: uma parte identifica-o com os profetas; outra o reconhece como Messias e Filho de Deus, nas palavras de Pedro. Mas um problema de fundo subsiste: tanto a multidão quanto os discípulos querem subjugar a Jesus “impondo-lhe definições” do que ele “deve” ser, ou sugerindo a maneira que deverá ser a do Messias de Deus. Modelos que contrariam a vontade de Deus, enquanto demonstram inconsequência sobre o que lhes foi ensinado. A comunidade não entendeu nada sobre a proposta de Jesus.
Ele, na verdade, está a serviço das mais importantes e profundas causas humanas, que colocam em primeiro lugar a causa do pobre e seus direitos, como disse Karl Barth. A “humanidade de Deus”, encarnando-se entre os mais pobres da sociedade do seu tempo, escandaliza o aspirante de um representante de Deus que percorre os caminhos da miséria humana. A “religião” de Jesus é justiça para com o pobre e oprimido (“...pois, misericórdia quero!”). Jesus tornou claro que a paz social resulta da observância do direito do pobre, do oprimido e do excluído. Suas atitudes éticas apontam o homem e a mulher sem dignidade, desgraçados e desgarrados da fé e da esperança. Povo bíblico, conceitualmente ou não, completamente mergulhado na desigualdade, nas omissões dos poderes políticos, no abandono das multidões submersas na miséria. Diferentemente do que a “igreja” inicial sugere, Jesus aponta o cuidado com o pobre, o “anawin”; o esmagado, oprimido, excluído, em toda parte neste mundo.
No meu caminho, quando me dirigia ao barbeiro que cuida dos meus ralos cabelos brancos, já assumidos nos meus 74 anos recentes, vi a catadora de lixo, alcoólica, talvez uma "nóia", morta, “atrapalhando o trânsito”, como dizia Chico Buarque (“Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego”). Mas, caminhar é preciso, diz o poeta. Thiago de Mello, amigo de Pablo Neruda, escrevia no exílio: “caminante al caminar se hace el camino”. Paulinho da Viola, magistral, também canta: “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”. Sejam quais forem os caminhos e as rotas de navegação, o destino será a justiça.
As dificuldades, como obstáculos, podem induzir à insegurança, ao desalento e ao medo do fracasso, na denúncia e insurgência contra as potestades deste mundo em seu nojo contra a pobreza e o pobre. Podem também induzir-nos a acreditar no silêncio de Deus, e numa divindade pagã satisfeita com a adoração interesseira, na religiosidade apática, omissa, dominante nos nossos dias. Deus, contudo, sabe das responsabilidades não assumidas por nós, principalmente na igreja plural, quanto à vida daquela mulher morta na calçada ao lado de sacos de lixo e restos da droga. Sem falar dos milhões de miseráveis que são encontrados nas ruas mais sujas, entre as imundícies de nossas cidades.
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Pobres, gente comum na maioria, que habita as periferias das metrópoles, sem os caríssimos planos de saúde, sem previdência, não compõem os grupos privilegiados pela saúde melhor assistida, nem daqueles que dispõem das tecnologias de ponta no tratamento da saúde. A maioria desprotegida, sem vez e sem voz, não se insurge contra os privilegiados, propriamente. No saneamento básico, habitação, vacinação frequente e persistente para o combate às endemias, higiene pública, acesso a diagnósticos de doenças tratáveis, alcoolismo, diabetes, entre as muitas enfermidades elencadas nas urbes do nosso tempo, reclama-se igualdade nos tratamentos. Bem-postos sempre merecem a preferência nas políticas públicas. Nosso tempo, refletindo a falta de cuidado com o pobre, com a criança, o jovem, o idoso desprotegidos política e juridicamente, também demonstra falta de indignação e reivindicação do cuidado obrigatório para a sociedade por inteiro. Em igualdade. Sem exclusão. A pobreza extrema, contudo, é o carnegão social em qualquer das cidades de nosso país.
Temos uma análise a fazer entre as pretensões de pessoas e grupos obsessivos, sedentos de poder — dentro ou fora da igreja —, e o contraste entre as propostas para o seguimento do caminho de Jesus, como ele ensinou a respeito dos direitos às bem-aventuranças, sem exclusão. Isto fica patente neste episódio do evangelho de Mateus (Mateus 16.13-20). Por volta da metade do caminho, coincidindo exatamente com a “metade” do trabalho de formação dos discípulos que estão sendo preparados para o anúncio do Reino de Deus, na metade geográfica do caminho de Jerusalém. Jesus interroga seus seguidores sobre o que assimilaram até ali. Momento de perplexidade e desatenção.
As respostas não surpreendem: uma parte identifica-o com os profetas; outra o reconhece como Messias e Filho de Deus, nas palavras de Pedro. Mas um problema de fundo subsiste: tanto a multidão quanto os discípulos querem subjugar a Jesus “impondo-lhe definições” do que ele “deve” ser, ou sugerindo a maneira que deverá ser a do Messias de Deus. Modelos que contrariam a vontade de Deus, enquanto demonstram inconsequência sobre o que lhes foi ensinado. A comunidade não entendeu nada sobre a proposta de Jesus.
Ele, na verdade, está a serviço das mais importantes e profundas causas humanas, que colocam em primeiro lugar a causa do pobre e seus direitos, como disse Karl Barth. A “humanidade de Deus”, encarnando-se entre os mais pobres da sociedade do seu tempo, escandaliza o aspirante de um representante de Deus que percorre os caminhos da miséria humana. A “religião” de Jesus é justiça para com o pobre e oprimido (“...pois, misericórdia quero!”). Jesus tornou claro que a paz social resulta da observância do direito do pobre, do oprimido e do excluído. Suas atitudes éticas apontam o homem e a mulher sem dignidade, desgraçados e desgarrados da fé e da esperança. Povo bíblico, conceitualmente ou não, completamente mergulhado na desigualdade, nas omissões dos poderes políticos, no abandono das multidões submersas na miséria. Diferentemente do que a “igreja” inicial sugere, Jesus aponta o cuidado com o pobre, o “anawin”; o esmagado, oprimido, excluído, em toda parte neste mundo.
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As dificuldades, como obstáculos, podem induzir à insegurança, ao desalento e ao medo do fracasso, na denúncia e insurgência contra as potestades deste mundo em seu nojo contra a pobreza e o pobre. Podem também induzir-nos a acreditar no silêncio de Deus, e numa divindade pagã satisfeita com a adoração interesseira, na religiosidade apática, omissa, dominante nos nossos dias. Deus, contudo, sabe das responsabilidades não assumidas por nós, principalmente na igreja plural, quanto à vida daquela mulher morta na calçada ao lado de sacos de lixo e restos da droga. Sem falar dos milhões de miseráveis que são encontrados nas ruas mais sujas, entre as imundícies de nossas cidades.
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É pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e autor de livros como “Pedagogia da Ganância" (2013) e "O Dragão que Habita em Nós” (2010).
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