Posts tagged oração

Tempo de quê?

4

Quando se abre a Bíblia encontra-se um Deus comprometido com a história humana. Um Deus que ouve o clamor de um povo em sofrimento, um Deus que enxerga ovelhas sem pastor e se comove. Enfim, um Deus que ama. Há diversas intervenções divinas, misericordiosas, a fim de que haja alívio, libertação e salvação. Até que com o nascimento de Jesus, a encarnação do próprio Deus, a mensagem fica mais evidente – o verbo se faz carne (Jo 1.14), e tudo o que se via era graça e verdade.

Em tempos de crise ética, política, econômica, o que esperar? Como agir? Que leitura fazer? Há lição de casa para todo aquele que se diz cristão, afinal, o que não falta é manipulação. Entretanto, ao ver esse Deus da Bíblia, somos inspirados a orar, cheios de esperança.

Nenhuma dor é ignorada, nenhum sofrimento é desconhecido de Deus. As soluções não são mágicas, uma longa trajetória parece ainda nos aguardar, e, fazemos parte daquilo que construímos. Mas, qual o lugar da oração nesses dias?

Mais do que orar por vingança dentro de nossa leitura limitada, de suposta justiça aos nossos olhos turvos, é colocar-se diante de Deus com um coração disposto a ouvir e reconhecer Deus mesmo em tempos difíceis.

Preocupados com o futuro, entregues à ansiedade, engasgamos com o presente, não digerimos o cotidiano, e o mal estar se instala. Abre-se as portas para o desespero, a língua para uma crítica que pouco propõe, sem sabedoria e sem respeito.

Davi, em tempos difíceis, ora e diz: “Contaste os meus passos quando sofri perseguições; recolheste as minhas lágrimas no teu odre; não estão elas inscritas no teu livro? Em Deus, cuja palavra eu louvo, no Senhor, cuja palavra eu louvo, neste Deus ponho minha confiança e nada temerei. Que me pode fazer o homem?” (Sl 56.8,10-11).

A oração tem o potencial de nos reorientar, nos trazer paz, nos tratar, nos ajudar a reconhecer e bendizer a Deus.

Salomão, filho de Davi, também ora e numa noite ouve o Senhor, que lhe diz: “se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, orar e me buscar, e se converter dos seus maus caminhos…” (II Cr 7.14). O que nos indica a necessidade de orarmos, e que enquanto o fazemos, podemos reconhecer quem somos, a quem verdadeiramente buscamos e entrarmos, ou prosseguirmos, num profundo processo de conversão.

O teólogo Karl Barth dizia que “entrelaçar as mãos em oração é o começo de uma revolução contra a desordem do mundo”. O pastor e professor Eugene Peterson faz a seguinte colocação: “uma vida de oração nos obriga a lidar com a realidade do mundo e de nossas próprias vidas a uma profundidade e a um nível de honestidade raramente experimentados pelos que não oram, além de muita daquela realidade que, certamente, evitaríamos se nos fosse possível”. E o escritor Philip Yancey, comenta que “na oração ficamos perante Deus para interceder por nossa situação, bem como pela situação dos que nos rodeiam. Nesse processo, o ato da oração me dá coragem para participar do trabalho de transformar o mundo num lugar em que a vontade do Pai é de fato feita como é no céu. Afinal, somos o corpo de Cristo na Terra; ele não tem outras mãos a não ser as nossas. E, contudo, para agirmos como Corpo de Cristo, precisamos de uma ligação ininterrupta com a Cabeça [Jesus]”. Ou seja, a oração nos leva a olhar mais uma vez, atentamente, a Jesus. A oração nos conduz a uma observação mais profunda da atitude de Jesus diante da corrupção, da miséria humana, diante dos negligenciados e privilegiados.

Oremos. Para o bem de nossa vida, para o bem da nação, oremos.

 

Espiritualidade e Natureza

2

Em meio ao caos e profunda angústia, um aflito ora, lembrando quem é esse Deus a quem clama: “No princípio firmaste os fundamentos da terra e os céus são obras das tuas mãos” (Sl 102.25).

Um Deus criador e uma criatura que vai se tornando cada vez mais perigosa pelas escolhas que faz. Ao que tudo indica não temos sido muito responsáveis, tão pouco bons cuidadores da criação. Temos visto o efeito das mudanças climáticas sobre a agricultura, a saúde, os ecossistemas, os recursos hídricos e os meios de subsistência. Estudiosos também afirmam ver sinais precoces de que o sistema de recifes de corais e o sistema ártico estão passando por modificações irreversíveis. Como reagimos a isso tudo?

Na tentativa de satisfazer impulsos interiores e atender a demandas criadas pelo mercado e suas ditaduras, onde na maior parte do tempo nos sujeitamos sem quase refletir, vemos então uma iníqua injustiça ecológica, uma exploração repetida por gerações, que agora beira o limite. Nossa voracidade consumista devorou recursos até quase esgotá-los. A exploração excedeu-se a tal ponto que devastamos ecossistemas inteiros, contaminando solos, as águas, os ares e os alimentos. Onde estava a ética, as considerações sociais e sanitárias? Comprometemos as futuras gerações?

Em triste e preocupante situação que criamos não podemos seguir ignorando a realidade que nos cerca. Nossa irresponsabilidade traz consequências ameaçadoras, que complicam cada dia mais rotinas simples, dos grandes centros aos sertões praticamente desconhecidos.

Sendo a oração um diálogo, tendo um Deus criador para conversar e ouvir, como a fé cristã pode ajudar-nos? Bem, acredito que as implicações são inúmeras, que espaços devem ser ampliados para se estudar e conversar melhor a respeito, contudo, hoje poderíamos pensar na singeleza e força transformadora que a oração pode ser.

A oração pode conduzir-nos a novas perspectivas, mudar nossa postura a partir do centro, uma interioridade resgatada apesar do exterior confuso. Quanto pode a oração?

Henri Nouwen destaca dois efeitos da oração na vida de Thomas Merton que foram facilmente crescendo: um estilo de vida diferente (cujos hábitos se tornaram mais austeros) e a receptividade crescente frente à beleza da natureza. Ou seja, resultados visíveis da oração em nós podem ser: uma vida mais disciplinada e simples, além de uma atenção mais sensível ao nosso ambiente.

Para usar as palavras de Nouwen, descrevendo as mudanças no Merton: “está menos tenso, menos agitado, menos desamparado, menos inquieto e a natureza que o cerca, antes despercebida, desabrocha agora numa beleza nunca dantes notada. É impressionante constatar como a oração abre os olhos de muita gente para a natureza. A oração torna o homem contemplativo e atento. O homem deixa de manipular, passando a ser mais receptivo diante do mundo. Não agarra as coisas, mas as acaricia, não as agride, mas beija, não as esquadrinha, mas admira-as. Para quem assim age, a natureza pode mostrar-se completamente renovada. Ao invés de ser um obstáculo, torna-se um caminho; em vez de ser escudo impenetrável, passa a ser um véu que descortina horizontes desconhecidos”.

A oração também educa a alma, faz-nos mais sensíveis com uma qualidade na atenção antes perdida, regenera olhos adoecidos. Assim diz Davi, num de seus salmos: “Bom e justo é o Senhor; por isso mostra o caminho aos pecadores… Todos os caminhos do Senhor são amor e fidelidade” (Sl 25.8 e 10). A oração é um espaço onde caminhos são mostrados, pecados são assumidos e pecadores são transformados. Crer num Deus cujos caminhos são amor e fidelidade me encoraja a ter conversas francas, a perseverar no caminho e ter a esperança renovada.

Sigamos descobrindo e desfrutando mais das orações.

Teologia do Quartinho

3

O que nunca foi simples parece estar ainda mais complicado, consideremos as relações entre verdade e mentira, ficção e realidade, essência e aparência.

O que caracteriza nossa vida no século XXI? Vertiginosos processos de espetacularização do nosso mundo, onde apenas o que causa sensação é percebido e valorizado, ou seja, experiência e intensidade são palavras chaves em nosso tempo.

Vivemos dias onde tudo o que não causa impacto em nossas sensações tende a desaparecer rapidamente no fluxo de informações, apesar, claro, de que aquilo que nos causa sensações fortes também desaparecerá em breve período, mas ao menos deixa marcas. O que quero destacar é o quanto vamos nos tornando viciados em injeções de sensações que agudizam nosso sistema nervoso, favorecendo assim, um jeito de ser que depende de sequências de instantes que nos joguem na vida como montanha russa permanente.

Dentre as sensações mais buscadas está o de ser visto, admirado, seguido (criar tendência e espalhá-las com agilidade porque logo se esvai, tudo é muito efêmero – sensação é vapor).

No regime ditatorial da espetacularização da vida crescem novas construções identitárias, onde valho quanto causo (provoco sensações nos que me cercam), sou quando sou percebida (necessidade de destaque na vitrine da vida).

Há sempre muito mais nos obscuros meandros de nossa alma, e quão pouco ainda sabemos da bagagem enigmática que carregamos. Mas, algumas coisas carregamos há muito, constitui-nos como humanidade caída.

A questão de exibirmo-nos, de sermos validados pelo outro, de desejarmos ser não apenas aprovados, mas admirados é grande desde sempre. E isso aparece inclusive no âmbito da espiritualidade.

Ao mesmo tempo que queremos novidades (novas e mais intensas sensações), trazemos desejos antigos, que nos confundem e nos empurram a práticas já conhecidas.

Aprecio sempre como as palavras de Jesus são atuais. Como profundo conhecedor de nossa alma carente, de nossos desvios e labirintos interiores, ele adianta e revela comportamentos mascarados, mas que achamos que nunca ninguém descobriria o que estava por detrás – achamo-nos convincentes.

Assim diz Jesus: “Quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas. Eles gostam de ficar orando em pé nas sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos outros” (Mt 6.5). Jesus, firmemente, denuncia a hipocrisia na espiritualidade. Quem de nós escapa?

A oração é um convite desafiador para o desvendamento de própria alma, sempre surpreendente. Contudo, até a oração pode ser instrumento fundamental em meu jogo de cena na espetacularização da espiritualidade, uma maneira de esmolarmos atenção e reconhecimento, provocando sensações diversas em mim e no outro.

Jesus instrui seus discípulos dizendo: “mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está sem secreto” (Mt 6.6).

Nós vivemos num tempo onde a tentação é abrir a porta do quarto e nos mostrarmo-nos – exibicionismo de intimidade perdida. É muito contracultura o que Jesus nos pede. É estranho a nossa alma, afinal, vida privada é algo que está em desuso, intimidade é algo desconhecido e deturpado (novas construções vem por aí?), e discrição é cada vez mais difícil de se viver.

Fechar a porta é um trabalho árduo e que não nos chama a atenção por ir na contramão do que tem sido mais valorizado, nada glamoroso, então, quem vai atender a tal pedido e aprender essa nova forma de ser?

Buscamos compensar nossas inseguranças quanto ao nosso valor e identidade com frenesis espetaculares, fantasias grandiosas que denunciam a deficiência de valor e significado.

Não ser hipócrita, não enganar o outro e nem a si mesmo é deslocar-se do palco para a coxia, para os bastidores. Encarar a vida a partir de quem se é, não de quem se desejaria ser. É fechar as cortinas, olhar no espelho, arrancar máscaras e maquiagens e ver quem de fato somos. Não precisamos ter medo, pois Jesus nos lembra, temos um Pai que nos vê em secreto, ou seja, para Deus não será novidade, talvez, sejamos novidade apenas para nós mesmos (e, quem sabe, para alguns diante de quem ainda sustentamos máscaras e vivemos papéis decorados, conforme manda o script).

O Pai que nos vê como somos, conhece nossas reais necessidades (Mt 6.8),e cuidará de nós. Crer nisso pode ser o início de uma caminhada nova e profunda, num caminho estreito, é fato, onde poucos seguem. Mas abandonar tendências, fugir de tais tentações, não viver por meras sensações, exigem a coragem de fechar a porta do quarto e ser tratado num genuíno espaço de oração. Quem quer assim ser trabalhado?

Go to Top