Ou o que aprendi sobre o tempo em um albergue municipal

Roda de cadeiras, todos sentados. Não mais que dez; no fundo a pequena plantação de alface. Boas vindas, abraços, saudações. Fim de ano, desejo de parar e pensar no tempo. “Falei com meu filho por telefone”, diz Fida, a mais baixinha, com mania de piscar o olho direito. João agradece por ter sido acolhido pela assistente social e encaminhado ao albergue. Animado, gosta de falar frases de encorajamento. Custódio é simples de raciocínio, mas ninguém duvida de que o que ele deseja é correto e justo. “Que Deus ilumine os caminhos de todos”. Cíntia, bondosa, parece que nesta altura da vida deseja a paz mais que tudo. Cansou de discórdia. Vem de Fão as respostas mais inteligentes, mas cabe a ele também os comentários mais bobos, às vezes de escárnio.

Longe de elucubrações filosóficas sobre o tempo, ao olharem para o ano que finda, há um misto de incompreensão e de descoberta. Eles incompreendem uma linha do começo ao fim que possa ligar os fatos e dar (pelo menos) um pouco de sentido à vida. Mas sabem reconhecer muito bem acontecimentos e circunstâncias especiais, que lhes afetaram diretamente – mais para o bem do que para o mal.

E agora que miram seus olhos para o ano que chega, são esperançosos. Querem um trabalho digno, um “barraco”, casar, reencontrar o filho, cura, ganhar na loteria, paz e alegria para todos…

Para quem já fracassou tanto na vida – e de fato eles chegam ao fim dela – é surpreendente esperar algo mais do que simplesmente sobreviver. Pois querem. E pelo menos neste momento de encontro e conversa, expressam o desejo (se falso ou não) de entender os alegres caminhos de Deus nos sofridos descaminhos da vida. Mesmo que porventura falso, não deixa de ser um desejo, um anseio por reconhecimento de que ele – até mesmo ele – pode ter pensamentos sublimes, bons.

Este grupo de homens e mulheres, de meia idade, sem casa, abrigados no albergue municipal, que lutam contra vícios, feridas emocionais e pela sobrevivência física, me ensina que o tempo não é uma linha reta, fácil de ser delimitada ou racionalizada. Ele é vívido tanto quanto for minha maneira de encarar a vida, o momento da caminhada. Seja com as mãos cheias (de conhecimento, dinheiro, bens, família, fé), seja com as mãos vazias (de reconhecimento, de gente que nos ama, de sucesso, de recursos materiais). Mais que isso, importa olhar na face (imaginária) do tempo e enxergar o rosto de Deus, o Senhor dos caminhos, ensinando-nos bondosamente a contar nossos dias para que alcancemos corações sábios (Sl 90.12).

 

Nota
Os nomes citados são fictícios.

 

  1. “Para quem já fracassou tanto na vida, e de fato chegam ao fim dela, é surpreendente esperar algo mais do que simplesmente sobreviver.” Esta parte calou fundo no meu coração. Que 2012 seja um ano de sonhos realizados!

    • Tatá,
      Geralmente nossos olhos são seduzidos pelos valores do mundo relacionados ao poder, ao status e dinheiro, o que faz com que esqueçamos da sabedoria que percorre as ruas e os recônditos ignorados pela sociedade.
      Que bom que Deus nos chama de novo para apreciar e aprender desta sabedoria dos “pequeninos”.
      Abraço.

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