Aceitar o paradoxo: diariamente entre a morte e a vida

Parece que a consciência de que vamos morrer já percorreu toda história da humanidade, que por sua vez lida com essa verdade de diversas formas: há quem por amar viver, a aproveita virtuosamente pois acredita que ela é o fim. Há quem por amar viver e também acreditar que ela é o fim, minimiza suas dores e maximiza seus prazeres. Há quem por amar viver, espera a vida que nos alcançará depois da morte, numa outra vida como essa. E há quem por receber a vida de outro, decidiu viver para quem o garantiu a vida eterna. Dentre estes, estamos provavelmente com a última opção, que nos dá a capacidade de viver uma vida significativa, mesmo com a morte batendo a porta. De qualquer forma, só imagina uma vida eterna, quem está vivo agora, mas sabe que morrerá antes de viver de novo. Assim, é melhor aceitar o paradoxo, aceitar que viver é ir se esvaindo, mas que esse processo vale e valerá a pena. Só nós, os que vivemos, podemos saber disso. Só nós temos a consciência de que o fenômeno da morte, enquanto estivermos nesta forma de vida, não nos acometeu ainda. Quem morre já não pode saber disso mais.

Os vivos pelo menos sabem que vão morrer, mas os mortos nada sabem. Já não têm recompensas para receber e caem no esquecimento. Amar, odiar, invejar, tudo que já fizeram ao longo da vida passou há muito tempo. Já não participam de coisa alguma que acontece debaixo do sol. (Ec. 9.5–6)

Parece que teremos de nos acostumar com ela. Este sussurro incômodo que fala e canta aos nossos ouvidos, de que não somos imortais. O aviso que eclode do fundo d’alma (tipo Otto com o Numinoso) de que tanto as alegrias, conquistas e superações, quanto as tristezas, dores e perdas, passarão. O fato é que seremos lembrados, por nós, pelas pessoas, pelas perdas, que o fenômeno morte vai nos cercando, enquanto vamos fugindo, como quem sabe que será assaltado e não importa o quanto tente atravessar a rua ou apertar o passo, algo seu será tirado. Neste caso, a vida.

Viver como quem sabe que morrerá é algo a ser apre(e)ndido

Até aqui, uma coisa já entendemos: que inevitavelmente morreremos um dia, e que devemos tentar nos lembrar disso como um paradoxo a ser aceito. No entanto, saber que morreremos não necessariamente nos ensina como viver melhor. Na verdade, algo nada natural precisa ser importado para dentro de nós para que o senso de finitude da vida humana seja mais benéfico do que depreciativo. Que raios isso significa? Veja, não basta saber que não viveremos para sempre, pois isso qualquer gentio sabe. Precisamos ter em mente que saber que somos finitos, pequenos, passageiros e necessitados é a única maneira de apre(e)nder a Vida. Quem sabe viver é quem tem consciência de sua finitude, pois encontrou a fonte da vida. Nessa lógica, meu problema (aquele que te contei de amar demais viver) acaba se tornando uma garantia egoísta de que a suficiência da vida se encontra em mim mesmo. Em outras palavras, a vida, quando é tida como tudo que há, fica por demais pequena, pois se tornou maior do que deveria.

Portanto amigos, amar demais a vida parece ser o grande problema, porque pressupõe que o eu que vive é o que há de mais precioso no universo. Como diria nosso colega da família, Agostinho:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado pelo desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levando pelo desprezo de si próprio, a celestial. (Cidade de Deus, 14.28)

Isso quer dizer que a maneira como decidimos viver enquanto não morremos são como cidades onde moramos. Porém, essas cidades estão mais para formas de vida do que para locais onde morar, porque são onde habitamos com o nosso coração, onde repousamos nossos amores. Ou seja, os dois tipos de cidades são duas formas de encarar que a vida humana é guiada pelo peso de nossos amores (estou meio smithiano ultimamente, desculpe), a começar pelo amor primeiro —aquele amor que devotamos a Deus ou a nós mesmo, isto é, a base dos outros amores. Então, amar demais a vida e o eu que a vive, é desprezar a Vida, que morreu pra quem não pode viver mais. Como diria outro amigo da família, Karl Barth:

A pessoa que é chamada a seguir Jesus, tem que simplesmente renunciar, anular e retirar-se de um relacionamento existente de obediência e lealdade. Este relacionamento é consigo mesmo. (Chamado ao discipulado, 2006, p. 30)

Mas será que, disto que estamos falando, resulta-se que amar viver é um problema? Veja, não se trata disso. O problema, ao que me parece, é amar viver enquanto viver significar amar a si mesmo. Portanto, continuaremos a amar a vida até morrermos, mas sem prestar lealdade a nossa vida, porque pra viver a vida como quem sabe que vai morrer é preciso apreender a Vida. Sim, a Vida. Essa Vida não é nada natural, comum, conquistável. É somente apreensível, porque é importada, vem de fora de nós, apesar de não caber lá dentro.

Paradoxalmente, viver é se esvair até a morte. Morrer é um fenômeno que nos acometerá. Saber disso é uma dádiva de quem está vivo. Mas viver é apre(e)nder a Vida.

Ensina-nos, Senhor, a viver como quem morrerá, viverá por causa de Ti, apesar de nós.

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