Casa torta
Assenta o tijolo, cobre com cimento, levanta a parede. Faz assim muitas vezes, sol a sol, dia a dia. Já nem percebe mais as gotas de suor molhando sua camisa. Brinca com o companheiro: “ô, Zé, faz esta parede direito, hein? Não quero casa torta”.
Casa torta. Esta bem que poderia ser uma definição metafórica da sua própria vida. Ele que hoje tenta manter-se são, já perdeu um rumo muitas vezes, e as paredes de sua casa já caíram em diversos momentos. Não bastasse a separação da mulher, seus filhos vivem distantes dele (por quilômetros de distância e de afeto).
O pedreiro que sabe construir paredes e casas tem dificuldade de construir sua própria vida em um alicerce firme. Seu coração é frágil, envolto pelos desejos de aceitação incondicional, e travestido pela imagem de “Don Juan”. Conquistou muitas mulheres, mas depois de um tempo percebeu que tudo era meio que pó. Tudo ficava pela metade, e sobrou em sua mão apenas lembranças.
Alguns até acham que lembranças são suficientes, mas ele já concluiu que isso não resolve, que não preenche o vazio. Já se cansou de ter boas histórias para contar. O que quer mesmo é viver. Viver com dignidade, com integridade, com respeito. Chega de querer tudo ao mesmo tempo. Chega de fingir ser quem não é só para sentir-se querido por quem nem conhece.
Veja! Nosso amigo agora está dando até para ter pensamentos profundos como estes! Mas a verdade é que o suor não para de cair e ele ainda terá um dia longo de trabalho pesado pela frente.
Enquanto isso, deixa-se levar pelos pensamentos. “E se a vida pudesse ser melhor do que é? E se eu puder ser melhor do que sou? No que exatamente posso melhorar?” Ele assim pensava como um filósofo enquanto amassava o cimento com água.
Por um instante, o pedreiro experiente se viu diante de um mundo novo: o mundo do pensamento. Lá as esquinas são diferentes e a dureza da vida se torna menos ameaçadora. Lá, de alguma forma, ele não é um zé-ninguém. É ele quem lidera as ações. No mundo dos (seus) pensamentos as coisas se encaixam e sempre há diálogo dele com ele mesmo.
As horas se passam e o sol já começa a se despedir. A casa já tem paredes e o nosso amigo move seus olhos para sua roupa. Suja, molhada de suor, rasgada. Olha para o amigo ao lado, e a cena é parecida. Pode da aspereza surgir horizontes? Pode de um arrependido nascer honra? Pode de um velho pecador existir santidade? Sim, pode. Por que não? Afinal, não é de pedras e tijolos que nascem casas?