Por Escrito
- 23 de novembro de 2017
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A oração de gratidão que eu nunca fiz
Por Phelipe Reis
Senhor, peço que não te aborreças comigo, mas estou tirando minha máscara e o meu figurino religioso – que nunca te impressionaram, nem dentro e fora dos palcos, onde enceno meus espetáculos estéreis –, silenciado meu discurso com aparência de santidade e estou aprendendo a orar por coisas cotidianas e ordinárias, consideradas por alguns até profanas.
Primeiro, agradeço por tua graça – aquela que os reformadores chamaram de “graça comum” e que, segundo eles, é a causa das bênçãos que tu derramas sobre todos os seres humanos, independentemente das crenças de cada um. Obrigado pelo teu favor para com todos, que – além de fazer o Sol se levantar sobre maus e bons e a chuva descer sobre justos e injustos –, limita a atuação do pecado no mundo, distribui dons e talentos para homens e mulheres e os torna capazes de produzir beleza.
Eu já tinha me encantado com muitas vozes que estão fora dos palcos da indústria gospel, mas a tua graça comum abriu meus ouvidos para descobrir quanta música bela há por detrás da feiura da cultura, manchada e deturpada pelo pecado. Para mim, perceber tua graça comum na cultura brasileira é um exercício de sensibilidade, que me ensina a ser mais humano e a ser gente. Por isso te sou grato.
Raízes e identidade
Sou grato pelas canções que me fazem saber quem eu sou e de onde eu vim. O samba do amazonense Chico da Silva, além de alimentar no meu coração a memória de meu pai, me faz reconhecer que o tempo de menino, de “rodar pião, estilingue no pescoço e papagaio pra soltar”, foi um tempo muito bom e que “não volta nunca mais”. Cantar com Chico me ensina a amar coisas “tão puras, tão minhas”, como as águas que me dão alimento e a gostosa farinha no caldo do peixe. A canção “Tempo de Trapiche”, de David Assayag, me faz não esquecer minhas raízes e saber que por onde eu for, levarei no peito o porto de onde parti, com o saudosismo de quem sempre quer voltar um dia.
Sou grato pela honestidade de Gonzaguinha. Suas canções me fizeram admitir que homem também chora, também deseja colo, também precisa de carinho, abraço e ternura. Que, no fundo, guerreiros são apenas meninos. Também foi ele que me fez entender que soltar a minha voz é um lindo “jeito de viver o que é amar”.
Sou grato pelos protestos melancólicos e poéticos das músicas de Belchior. Suas letras filosóficas expressaram com tanta verdade a minha humanidade tão contraditória: a perversa juventude do meu coração, a minha aspiração utópica de amar e mudar as coisas, a minha pressa de viver, e que, portanto, é imperativo que “deixemos de coisas, cuidemos da vida; senão chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta moço sem ter visto a vida”.
Sou grato pelo romantismo de Vander Lee, que me lembrou que “a vida anda louca e as pessoas andam tristes”, e que “meus amigos são amigos de ninguém”. O poeta apaixonado também me consolou, disse que “eu posso chorar até cansar”; eu só preciso de qualquer lugar, onde Deus possa me ouvir.
Poesia, teologia e cotidiano
Sou grato pelo dom de Gladir Cabral em combinar poesia e música com tanta maestria. O professor me ensina literatura cantando, me inspira a ser mais humano com “Gentes”, e me faz perceber que um dos momentos cotidianos mais bonitos é quando a gente faz um café gostoso, põe a mesa no jardim e deixa as plantas em paz com a gente, fazendo a vida ganhar maior sentido.
Sou grato pela canção e poesia de Milton Nascimento. O “Bituca” me ensinou que música é algo tão sagrado que não pode estar adornada de outra coisa que não seja a amizade. Além de me advertir que “há que se cuidar do broto, pra que a vida nos dê flor e fruto”, seus acordes me revelaram o segredo de uma amizade duradoura: “amigo é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância, digam não”.
Sou grato por aquela manhã de maio de 2008, em Brasília, quando ouvi pela primeira vez o rouco timbre de Zazo, em sua casa, cantando de forma tão abrasileirada e poética sua vitória sobre uma doença que quase lhe deixou sem voz. Seis anos depois, ele me traria à lembrança que não é hora de olhar para trás, mas sim olhar o arco-íris, lembrar a promessa e recomeçar.
Sou grato pela teologia do trabalho musicada em Amor de Índio, por Beto Guedes: “todo amor é sagrado / e o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor / A massa que faz o pão vale a luz do seu suor / Lembra que o sono é sagrado / e alimenta de horizontes / o tempo acordado de viver”.
Música e brasilidade
Sou grato pela ousadia de João Alexandre em abrasileirar nossos cânticos congregacionais, sem “vergonha de ser brasileiro”. O profeta do samba, do frevo e do maracatu, me ensinou que a música pode ser protesto social, especialmente quando vivemos em um país de “homens com tanto poder e nenhum coração”, de “gente que compra e que vende a moral da nação”. Ele denunciou, mas também semeou esperança: se o Brasil olhar pra cima e voltar os olhos pra Deus, existe uma chance de ser novamente feliz!
Sou grato pela carioquice de Gerson Borges. Puxando conversa ele me ensinou que posso “ser evangélico sem deixar de ser brasileiro” e, junto com Paulo Nazareth, ensinou que preciso aprender a viver o hoje, priorizando na agenda o Espírito Santo, o Filho, o Pai, e o que realmente importa, afinal, eu só tenho o hoje, aqui, agora, o já. E quanto ao amanhã, Deus cuidará.
Sou grato pelos irmãos Lô e Márcio Borges, que alimentaram meus sonhos com “Clube da Esquina 2“, profetizando que “sonhos não envelhecem”; grato pela intensidade da vida e do canto de Elis Regina; grato pela ilustração do “céu” feita por Marisa Monte, em “Vilarejo”; grato por aprender a prestar atenção em cores e flores que eu não sei o nome, com “Esquadros”, de Belchior; grato por poder me apropriar de “Velha Infância”, dos Tribalistas, e cantar para ti: “Seus olhos meu clarão / Me guiam dentro da escuridão / Seus pés me abrem o caminho / Eu sigo e nunca me sinto só”.
Sou grato a ti, Senhor, pelo dom, talento e sensibilidade que concedeste a esses e tantos outros músicos e compositores brasileiros. Seus timbres e acordes conseguem expressar o que eu não conseguiria comunicar de outra maneira; me fazem querer olhar o mundo e o outro com mais amor; me fazem perceber teu toque em coisas comuns e ordinárias; me fazem amar cada vez mais a ti, por revelarem um Deus criador e criativo, amoroso e gracioso, que aprecia a arte e a beleza.
• Phelipe Reis é amazonense, missionário e jornalista. Casado com Luíze e pai da Elis.
Leia mais
Aquilo que o músico cristão precisa saber
Ser Evangélico Sem Deixar de Ser Brasileiro [Gérson Borges]
A Arte Não precisa de Justificativa [H. R. Rookmaaker]
Imagem: Photo by Pearse O'Halloran on Unsplash
Senhor, peço que não te aborreças comigo, mas estou tirando minha máscara e o meu figurino religioso – que nunca te impressionaram, nem dentro e fora dos palcos, onde enceno meus espetáculos estéreis –, silenciado meu discurso com aparência de santidade e estou aprendendo a orar por coisas cotidianas e ordinárias, consideradas por alguns até profanas.
Primeiro, agradeço por tua graça – aquela que os reformadores chamaram de “graça comum” e que, segundo eles, é a causa das bênçãos que tu derramas sobre todos os seres humanos, independentemente das crenças de cada um. Obrigado pelo teu favor para com todos, que – além de fazer o Sol se levantar sobre maus e bons e a chuva descer sobre justos e injustos –, limita a atuação do pecado no mundo, distribui dons e talentos para homens e mulheres e os torna capazes de produzir beleza.
Eu já tinha me encantado com muitas vozes que estão fora dos palcos da indústria gospel, mas a tua graça comum abriu meus ouvidos para descobrir quanta música bela há por detrás da feiura da cultura, manchada e deturpada pelo pecado. Para mim, perceber tua graça comum na cultura brasileira é um exercício de sensibilidade, que me ensina a ser mais humano e a ser gente. Por isso te sou grato.
Raízes e identidade
Sou grato pelas canções que me fazem saber quem eu sou e de onde eu vim. O samba do amazonense Chico da Silva, além de alimentar no meu coração a memória de meu pai, me faz reconhecer que o tempo de menino, de “rodar pião, estilingue no pescoço e papagaio pra soltar”, foi um tempo muito bom e que “não volta nunca mais”. Cantar com Chico me ensina a amar coisas “tão puras, tão minhas”, como as águas que me dão alimento e a gostosa farinha no caldo do peixe. A canção “Tempo de Trapiche”, de David Assayag, me faz não esquecer minhas raízes e saber que por onde eu for, levarei no peito o porto de onde parti, com o saudosismo de quem sempre quer voltar um dia.
Sou grato pela honestidade de Gonzaguinha. Suas canções me fizeram admitir que homem também chora, também deseja colo, também precisa de carinho, abraço e ternura. Que, no fundo, guerreiros são apenas meninos. Também foi ele que me fez entender que soltar a minha voz é um lindo “jeito de viver o que é amar”.
Sou grato pelos protestos melancólicos e poéticos das músicas de Belchior. Suas letras filosóficas expressaram com tanta verdade a minha humanidade tão contraditória: a perversa juventude do meu coração, a minha aspiração utópica de amar e mudar as coisas, a minha pressa de viver, e que, portanto, é imperativo que “deixemos de coisas, cuidemos da vida; senão chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta moço sem ter visto a vida”.
Sou grato pelo romantismo de Vander Lee, que me lembrou que “a vida anda louca e as pessoas andam tristes”, e que “meus amigos são amigos de ninguém”. O poeta apaixonado também me consolou, disse que “eu posso chorar até cansar”; eu só preciso de qualquer lugar, onde Deus possa me ouvir.
Poesia, teologia e cotidiano
Sou grato pelo dom de Gladir Cabral em combinar poesia e música com tanta maestria. O professor me ensina literatura cantando, me inspira a ser mais humano com “Gentes”, e me faz perceber que um dos momentos cotidianos mais bonitos é quando a gente faz um café gostoso, põe a mesa no jardim e deixa as plantas em paz com a gente, fazendo a vida ganhar maior sentido.
Sou grato pela canção e poesia de Milton Nascimento. O “Bituca” me ensinou que música é algo tão sagrado que não pode estar adornada de outra coisa que não seja a amizade. Além de me advertir que “há que se cuidar do broto, pra que a vida nos dê flor e fruto”, seus acordes me revelaram o segredo de uma amizade duradoura: “amigo é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância, digam não”.
Sou grato por aquela manhã de maio de 2008, em Brasília, quando ouvi pela primeira vez o rouco timbre de Zazo, em sua casa, cantando de forma tão abrasileirada e poética sua vitória sobre uma doença que quase lhe deixou sem voz. Seis anos depois, ele me traria à lembrança que não é hora de olhar para trás, mas sim olhar o arco-íris, lembrar a promessa e recomeçar.
Sou grato pela teologia do trabalho musicada em Amor de Índio, por Beto Guedes: “todo amor é sagrado / e o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor / A massa que faz o pão vale a luz do seu suor / Lembra que o sono é sagrado / e alimenta de horizontes / o tempo acordado de viver”.
Música e brasilidade
Sou grato pela ousadia de João Alexandre em abrasileirar nossos cânticos congregacionais, sem “vergonha de ser brasileiro”. O profeta do samba, do frevo e do maracatu, me ensinou que a música pode ser protesto social, especialmente quando vivemos em um país de “homens com tanto poder e nenhum coração”, de “gente que compra e que vende a moral da nação”. Ele denunciou, mas também semeou esperança: se o Brasil olhar pra cima e voltar os olhos pra Deus, existe uma chance de ser novamente feliz!
Sou grato pela carioquice de Gerson Borges. Puxando conversa ele me ensinou que posso “ser evangélico sem deixar de ser brasileiro” e, junto com Paulo Nazareth, ensinou que preciso aprender a viver o hoje, priorizando na agenda o Espírito Santo, o Filho, o Pai, e o que realmente importa, afinal, eu só tenho o hoje, aqui, agora, o já. E quanto ao amanhã, Deus cuidará.
Sou grato pelos irmãos Lô e Márcio Borges, que alimentaram meus sonhos com “Clube da Esquina 2“, profetizando que “sonhos não envelhecem”; grato pela intensidade da vida e do canto de Elis Regina; grato pela ilustração do “céu” feita por Marisa Monte, em “Vilarejo”; grato por aprender a prestar atenção em cores e flores que eu não sei o nome, com “Esquadros”, de Belchior; grato por poder me apropriar de “Velha Infância”, dos Tribalistas, e cantar para ti: “Seus olhos meu clarão / Me guiam dentro da escuridão / Seus pés me abrem o caminho / Eu sigo e nunca me sinto só”.
Sou grato a ti, Senhor, pelo dom, talento e sensibilidade que concedeste a esses e tantos outros músicos e compositores brasileiros. Seus timbres e acordes conseguem expressar o que eu não conseguiria comunicar de outra maneira; me fazem querer olhar o mundo e o outro com mais amor; me fazem perceber teu toque em coisas comuns e ordinárias; me fazem amar cada vez mais a ti, por revelarem um Deus criador e criativo, amoroso e gracioso, que aprecia a arte e a beleza.
• Phelipe Reis é amazonense, missionário e jornalista. Casado com Luíze e pai da Elis.
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Aquilo que o músico cristão precisa saber
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