Ensina-nos a viver como quem morre
Ou, um apelo sobre viver a vida consciente da finitude.
Por Tiago Melo
Gosto de pensar que conforme vou vivendo, mais saberei sobre como viver. Meio que eu me iludo, conscientemente. Penso que auto sabotagem é uma habilidade inerente ao ser humano, que vem sendo arrastada pela nossa raça, pela via do egoísmo ao longo dos séculos, desde que o homem decidiu que sabia viver por si mesmo. Coitado. Coitada. Erraram feio. Na verdade, parece que quanto mais vivemos (e eu não vivi quase nada), somos mais incapazes ainda de perceber que nosso fim está sempre à espreita. É irônico, ao estilo Eclesiastes, que quanto mais as coisas dão certo na vida, menos temos o privilégio de imaginá-la se esvaindo de nós. Deve ser porque quando as coisas correspondem ao nossos intentos, o intento primário por vida eterna grita dentro de nós achando que ele também será saciado. De alguma forma, viver é ir esquecendo que iremos morrer, mas gradualmente, ilusoriamente, esperançosamente (às vezes) e, sempre, lamentavelmente.
Me parece que vivemos como quem nunca morrerá. Planejamos como quem não será frustrado. Refletimos como quem alcançará o pleno conhecimento. Vivemos como quem se esquece que um dia não viverá mais.
Lembrar que vai morrer é um exercício de quem está vivo
Temos algo pela frente: a nossa morte. Temos isso em comum a todos os homens e mulheres que já existiram (exceto por Jesus, tinha certeza que você ia se lembrar dele), todos que existem e todos que irão existir. É uma realidade. Afinal de contas, morrer é um privilégio de quem está vivo. Aliás, lembrar que vai morrer é uma tarefa que só quem está vivo pode fazer.
É melhor ir a funerais que ir a festas; afinal, todos morrem, e é bom que os vivos se lembrem disso. A tristeza é melhor que o riso, pois aperfeiçoa o coração. O sábio pensa na morte com frequência, enquanto o tolo só pensa em se divertir. (Ec. 7:2–4)
Imagino que Salomão ao escrever esses versos não imaginava que iriam chegar tão longe. A Saraiva de sua época também devia conter auto-ajuda nos best-sellers. Falar de morte não vende, não é agradável e, as vezes, nem aceitável. Fato é que quanto mais deixamos de falar dela, mais ela se torna uma coisa em si mesma. E taí uma coisa que ela não é: uma coisa — um ente. A morte, pela via negationis, não é a vida, mas também não é algo a que podemos pegar, ou que nos pega. Portanto, parece que a morte está menos para um ente e mais para um acontecimento. Ela está, por assim dizer, mais como o contrário da vida. Está mais para um fenômeno. Assim, a morte é esse estranho, inevitável e não premiditável fenômeno que acomete a todos, é algo a ser lembrado, não como algo que já vivemos, mas como algo que viveremos.
Estranho, não é? Diferente de tudo que lembramos, a morte é o lembrete do que ainda não vivemos. É a lembrança que não vem por meio da memória, afinal, tudo que vivemos pode ser lembrado, mas a morte é inédita nesse sentido. Ela causa em nós uma estranheza (certa anomia, sabe?), porque não sabemos como é tê-la, mesmo sabendo que saberemos um dia. Nossa tarefa, penso eu, é a de lembrar da morte enquanto vivemos.
Antes que você imagine que essas linhas parecem um tanto quanto niilistas, quero, em minha defesa, dizer que não tenho simpatia pela falta de sentido. Na verdade, peco por amar viver. Talvez você tenha o mesmo pecado que eu, e por isso vamos ter que lidar com esse paradoxo: viver sabendo que morreremos. E mais, amar viver sabendo que morreremos.
Aceitar o paradoxo: diariamente entre a morte e a vida
Parece que a consciência de que vamos morrer já percorreu toda história da humanidade, que por sua vez lida com essa verdade de diversas formas: há quem por amar viver, a aproveita virtuosamente pois acredita que ela é o fim. Há quem por amar viver e também acreditar que ela é o fim, minimiza suas dores e maximiza seus prazeres. Há quem por amar viver, espera a vida que nos alcançará depois da morte, numa outra vida como essa. E há quem por receber a vida de outro, decidiu viver para quem o garantiu a vida eterna. Dentre estes, estamos provavelmente com a última opção, que nos dá a capacidade de viver uma vida significativa, mesmo com a morte batendo a porta. De qualquer forma, só imagina uma vida eterna, quem está vivo agora, mas sabe que morrerá antes de viver de novo. Assim, é melhor aceitar o paradoxo, aceitar que viver é ir se esvaindo, mas que esse processo vale e valerá a pena. Só nós, os que vivemos, podemos saber disso. Só nós temos a consciência de que o fenômeno da morte, enquanto estivermos nesta forma de vida, não nos acometeu ainda. Quem morre já não pode saber disso mais.
Os vivos pelo menos sabem que vão morrer, mas os mortos nada sabem. Já não têm recompensas para receber e caem no esquecimento. Amar, odiar, invejar, tudo que já fizeram ao longo da vida passou há muito tempo. Já não participam de coisa alguma que acontece debaixo do sol. (Ec. 9.5–6)
Parece que teremos de nos acostumar com ela. Este sussurro incômodo que fala e canta aos nossos ouvidos, de que não somos imortais. O aviso que eclode do fundo d’alma (tipo Otto com o Numinoso) de que tanto as alegrias, conquistas e superações, quanto as tristezas, dores e perdas, passarão. O fato é que seremos lembrados, por nós, pelas pessoas, pelas perdas, que o fenômeno morte vai nos cercando, enquanto vamos fugindo, como quem sabe que será assaltado e não importa o quanto tente atravessar a rua ou apertar o passo, algo seu será tirado. Neste caso, a vida.
Viver como quem sabe que morrerá é algo a ser apre(e)ndido
Até aqui, uma coisa já entendemos: que inevitavelmente morreremos um dia, e que devemos tentar nos lembrar disso como um paradoxo a ser aceito. No entanto, saber que morreremos não necessariamente nos ensina como viver melhor. Na verdade, algo nada natural precisa ser importado para dentro de nós para que o senso de finitude da vida humana seja mais benéfico do que depreciativo. Que raios isso significa? Veja, não basta saber que não viveremos para sempre, pois isso qualquer gentio sabe. Precisamos ter em mente que saber que somos finitos, pequenos, passageiros e necessitados é a única maneira de apre(e)nder a Vida. Quem sabe viver é quem tem consciência de sua finitude, pois encontrou a fonte da vida. Nessa lógica, meu problema (aquele que te contei de amar demais viver) acaba se tornando uma garantia egoísta de que a suficiência da vida se encontra em mim mesmo. Em outras palavras, a vida, quando é tida como tudo que há, fica por demais pequena, pois se tornou maior do que deveria.
Portanto amigos, amar demais a vida parece ser o grande problema, porque pressupõe que o eu que vive é o que há de mais precioso no universo. Como diria nosso colega da família, Agostinho:
Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado pelo desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levando pelo desprezo de si próprio, a celestial. (Cidade de Deus, 14.28)
Isso quer dizer que a maneira como decidimos viver enquanto não morremos são como cidades onde moramos. Porém, essas cidades estão mais para formas de vida do que para locais onde morar, porque são onde habitamos com o nosso coração, onde repousamos nossos amores. Ou seja, os dois tipos de cidades são duas formas de encarar que a vida humana é guiada pelo peso de nossos amores (estou meio smithiano ultimamente, desculpe), a começar pelo amor primeiro —aquele amor que devotamos a Deus ou a nós mesmo, isto é, a base dos outros amores. Então, amar demais a vida e o eu que a vive, é desprezar a Vida, que morreu pra quem não pode viver mais. Como diria outro amigo da família, Karl Barth:
A pessoa que é chamada a seguir Jesus, tem que simplesmente renunciar, anular e retirar-se de um relacionamento existente de obediência e lealdade. Este relacionamento é consigo mesmo. (Chamado ao discipulado, 2006, p. 30)
Mas será que, disto que estamos falando, resulta-se que amar viver é um problema? Veja, não se trata disso. O problema, ao que me parece, é amar viver enquanto viver significar amar a si mesmo. Portanto, continuaremos a amar a vida até morrermos, mas sem prestar lealdade a nossa vida, porque pra viver a vida como quem sabe que vai morrer é preciso apreender a Vida. Sim, a Vida. Essa Vida não é nada natural, comum, conquistável. É somente apreensível, porque é importada, vem de fora de nós, apesar de não caber lá dentro.
Paradoxalmente, viver é se esvair até a morte. Morrer é um fenômeno que nos acometerá. Saber disso é uma dádiva de quem está vivo. Mas viver é apre(e)nder a Vida.
Ensina-nos, Senhor, a viver como quem morrerá, viverá por causa de Ti, apesar de nós.
Matheus Luiz
Incrível essa percepção de uma cosmovisão totalmente cristã acerca da morte versus vida, reflexão preciosa e necessária!