Opinião
- 29 de julho de 2015
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A ONG “Rio de Paz” e o obituário de John Stott em “O Globo”
SEMANA JOHN STOTT
Poucos autores conheço tanto quanto John Stott. Li praticamente tudo o que ele escreveu. Não há palavras para descrever sua influência na minha vida. Toda a minha visão sobre a missão da Igreja está alicerçada nos seus escritos.
Houve um dia em que sonhei, em lágrimas, apresentar a ele o resultado do seu ministério em minha vida. Nascia a ONG “Rio de Paz”, com suas manifestações repercutindo no Brasil e no mundo. O meu desejo era dizer a John Stott que tudo havia sido inspirado e dirigido pelos seus escritos. Não tive esse privilégio. Aprouve a Deus que fizesse o seu obituário no jornal “O Globo”, fazendo o registro da sua influência sobre o nosso movimento de defesa dos direitos humanos e redução de homicídio.
Acabei de ler seu último livro - O Discípulo Radical, escrito aos 88 anos, dois anos antes da sua morte em 2011. Ele selou seu ministério como escritor com a mesma lucidez, fidelidade às Escrituras, clareza, polidez e compromisso com a missão integral da Igreja, que tanto caracterizaram seu trabalho. Vale a pena ressaltar as suas preocupações ao ver a morte se aproximar.
O pequeno livro é dividido em oito capítulos, nos quais tenciona expressar as principais características de um discípulo de Cristo. Que traços são esses?
1. Inconformismo
Os cristãos não devem assumir a forma do mundo. Não devem se deixar contaminar. Quais as tendências contemporâneas que ameaçam nos tragar? Ele menciona quatro. Pluralismo (que relativiza a verdade), materialismo (que absolutiza o consumismo), relativismo (que relativiza a ética) e o narcisismo (que absolutiza o ego). Segundo John Stott, “diante do desafio do pluralismo, devemos ser uma comunidade de verdade, declarando a singularidade de Cristo. Diante do desafio do materialismo, devemos ser uma comunidade de simplicidade, considerando que somos peregrinos aqui. Diante do desafio do relativismo, devemos ser uma comunidade de obediência. Diante do desafio do narcisismo, devemos ser uma comunidade de amor”.
2. Semelhança com Cristo
“Semelhança com Cristo é a vontade de Deus para o povo de Deus.” Fomos predestinados para sermos parecidos com Cristo, estamos sendo a cada dia transformados pelo Espírito Santo para nos tornarmos parecidos com Cristo e um dia seremos como Cristo. “Em que devemos ser parecidos com Cristo?” – indaga Stott. Na sua encarnação, no seu serviço, no seu amor, na sua longanimidade e na sua missão.
3. Maturidade
Stott ressalta: “O que é a maturidade cristã? O fato é que ela é algo difícil de ser obtido. A maioria de nós sofre de imaturidades prolongadas. Mesmo no adulto, a pequena criança ainda se esconde em algum lugar. Além disso, existem diferentes tipos de maturidade. Existe a física (ter um corpo saudável e bem desenvolvido), a intelectual (ter uma mente disciplinada e uma cosmovisão coerente), a moral (aqueles que ‘têm suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal’, Hb 5.14), a emocional (ter uma personalidade equilibrada, capaz de estabelecer relacionamentos e assumir responsabilidades). Porém, acima de tudo, existe a maturidade espiritual. E isso é o que o apóstolo chama de maturidade ‘em Cristo’, isto é, ter um relacionamento maduro com Cristo”.
4. Cuidado com a criação
Ele condena a exploração da natureza, revelando profunda consciência ecológica, voltada para o desenvolvimento sustentável. Esse cuidado, de acordo com Stott, “não significa tratá-la (a natureza) com veneração, como se ela fosse Deus, nem tratá-la com arrogância, como se nós fossemos Deus”. Ele revela uma preocupação com a economia ao afirmar que “o que Deus nos deu foi a natureza, e o que fazemos com ela é cultura. Não devemos apenas conservar o ambiente, mas também desenvolver os seus recursos para o bem comum”.
John Stott fala sobre as principais ameaças à natureza: crescimento populacional acelerado do mundo, depleção dos recursos da terra, descarte de lixo e mudança climática. Ele cita Chris Wright, que enfatiza a necessidade de os cristãos levarem a sua responsabilidade ambiental a sério: “Eles escolhem formas sustentáveis de energia quando é viável. Desligam aparelhos em desuso. Sempre que possível, compram alimentos, mercadorias e serviços de empresas que tenham diretrizes ambientais eticamente saudáveis. Eles se aliam a grupos de conservação. Evitam o consumo demasiado e o desperdício desnecessário e reciclam o máximo possível”.
5. Simplicidade
Ser criterioso em amor quanto ao uso de bens e dinheiro é consequência da vida que foi tangida pela verdade do evangelho, que chama os discípulos de Cristo a morrerem para si mesmos a fim de viverem para o próximo.
Essa foi a ênfase da Consulta Internacional sobre Estilo de Vida Simples, realizada em 1980 na Inglaterra. Esse encontro foi um desdobramento do Congresso de Lausanne em 1974, que tanto marcou a vida do protestantismo mundial. Mencionando mais uma vez minha atividade no campo dos direitos humanos, por meio da ONG Rio de Paz, devo reconhecer que o material dessa conferência, que teve John Stott como um dos preletores, foi de grande importância para a decisão que tomei de viver o protestantismo nas ruas, protestando.
Vale a pena lermos com atenção o registro da conclusão a que chegaram os participantes do encontro: “Afirmamos que a pobreza involuntária é uma ofensa contra a bondade de Deus. Na Bíblia, a pobreza aparece associada à impotência, pois os pobres não têm meios de se proteger [...] a igreja precisa ficar ao lado de Deus e dos pobres contra à injustiça, sofrer com eles e apelar às autoridades para que cumpram o papel que lhes foi determinado por Deus [...] o reino é um dádiva oferecida a todos, mas o que ele é, de maneira especial, são boas novas para os pobres, dado que são eles que recebem mais benefícios em consequência das mudanças implantadas pelo reino [...] cremos que Jesus chama algumas pessoas (talvez até mesmo nós) para segui-lo num estilo de vida que inclui a pobreza total voluntária [...], resolvemos conhecer pessoalmente pessoas pobres e oprimidas, e ouvir o que elas podem nos dizer sobre injustiças específicas, para depois procurar aliviar seu sofrimento e incluí-las regularmente em nossas orações”. É impossível ler essa declaração, repleta de verdades que saltam aos olhos de qualquer leitor das Escrituras, desde que, é claro, sua leitura não seja condicionada por fatores culturais e ideológicos, e não perceber que o grande escândalo do protestantismo vivido por milhares de brasileiros é a falta de compreensão que a missão de Deus no mundo é o pobre.
Em conexão a isso, um apelo é feito à própria Igreja, a fim de que ela economize ao máximo, visando socorrer o pobre: “Devemos procurar meios de tocar a vida comunitária da igreja com o mínimo de gastos em itens como viagens, alimentação e acomodação. Conclamamos as igrejas e agências paraeclesiásticas para que, em seus planejamentos, se conscientizem da necessidade de se manter a integridade tanto no estilo de vida da comunidade quanto no testemunho”. Por que as coisas devem funcionar desse jeito? A resposta é irrefutável: “O fato de 800 milhões de pessoas estarem na pobreza mais absoluta e 10 mil morrerem de fome todo dia, torna inviável qualquer outro estilo de vida”. Uma proposta é apresentada. Será que há espaço para que seja discutida no âmbito do protestantismo brasileiro? Veja: “Resolvemos renunciar ao desperdício, e opormo-nos à extravagância em nossa vida pessoal, em matéria de roupas e de moradia, de viagens e de templos. Também aceitamos a distinção entre necessidades e luxo, ‘hobbies’ criativos e símbolos de status vazios, modéstia e vaidade, celebrações ocasionais e o nosso dia a dia, e entre o serviço de Deus e a escravidão à moda. Onde traçar o divisor de águas – eis o que requer mais reflexão e mais decisão da nossa parte, juntamente com nossos familiares”.
Qual o lugar do pobre na vida da sua igreja? Quanto você tem doado? Há preocupação em sua vida com gastos desnecessários? Você procura economizar a fim de socorrer os miseráveis deste mundo? Podemos continuar vivendo num país socialmente tão desigual como o nosso, no qual milhares vivem destituídos de todos os elementos essenciais para que a vida humana floresça e se desenvolva, sem que isso não nos diga absolutamente nada? Há diferença entre ser cristão num país rico e ser cristão num país tomado de bolsões de pobreza? Você não pode deixar de responder a essas perguntas.
O discípulo de Cristo deve ter preocupações políticas? Faz sentido ele gastar o tempo que poderia ser dedicado ao evangelismo para lutar pela justiça social? Há relação entre vida cristã e luta por ordem econômica que ajude a eliminar a desigualdade? Para John Stott, não havia a mínima incompatibilidade entre essas esferas de vida.
Ele se indignava com a fome que faz secar a vida de bilhões de seres humanos. Estimulava, assim, a igreja a se envolver em ações de desenvolvimento humano: “As pessoas com frequência morrem de fome porque não podem comprar comida, porque não têm rendimento, não têm oportunidade para produzir, e porque não têm acesso ao poder. Portanto, aplaudimos a crescente ênfase das agências cristãs no desenvolvimento, de preferência à ajuda simplesmente”. Certamente, ele haveria de apoiar o bolsa família do governo federal (“onde vidas humanas estão em jogo, nunca deveria haver carência de fundos”), mas ao mesmo tempo pressionando o poder público a investir na independência do pobre, tanto em relação a um assistencialismo que o torna economicamente dependente do Estado, quanto em relação ao socorro incerto da sociedade.
Pessoas podem cair na pobreza pelos mais diferentes motivos: tragédias naturais, doenças, conflitos pessoais, falta de capacidade de administrar a própria vida. Mas, na maioria das vezes, o que ocorre é vidas humanas serem privadas de recursos para viver com dignidade por força de estruturas sociais malignas. Por isso, existe a necessidade imperiosa de o cristão ver a pressão política como expressão de amor. John Stott ressalta que “pobreza e riqueza excessiva, militarismo e indústria armamentista, e a distribuição injusta de capital, de terra e de recursos constituem problemas que têm a ver diretamente com poder e impotência. Sem uma mudança de poder através de mudanças estruturais, esses problemas não poderão ser resolvidos”.
O envolvimento político é inevitável. É impossível plantar igrejas na “polis” e não se envolver de uma maneira ou de outra com política: “A igreja, juntamente com o resto da sociedade, está inevitavelmente envolvida na política, que é ‘a arte de viver na comunidade’. Os servos de Cristo precisam expressar o senhorio dele em seus compromissos políticos, econômicos e sociais, e em seu amor por seu próximo, participando do processo político”. Stott apresenta quatro caminhos de ação política por parte da igreja:
1. Orar.
2. Educar. “Procurar educar o povo cristão nas questões morais e políticas envolvidas, esclarecendo assim sua visão e levantando suas expectativas.”
3. Agir. “Alguns cristãos são chamados a exercer tarefas importantes junto ao governo, no setor econômico ou em assuntos de desenvolvimento. Todos os cristãos devem participar ativamente do esforço pela criação de uma sociedade justa e responsável.” Vale a pena ressaltar importante declaração que apresenta uma implicação do viver em santidade: “Em algumas situações, a obediência a Deus exige resistência a um sistema injusto”.
4. Sofrer. “Como seguidores de Cristo, o Servo Sofredor, sabemos que o serviço sempre envolve sofrimento.” Fica a questão: que preço o protestantismo brasileiro está pagando pelo seu compromisso com a causa da justiça social?
Portanto, não há incompatibilidade entre compromisso pessoal e ação política, obras de filantropia e protesto a fim de que haja mudança sistêmica. Um precisa do outro: “O compromisso pessoal em termos de mudança de estilo de vida não será eficaz se não houver ação política, visando à mudança dos sistemas injustos. Mas a ação política sem compromisso pessoal é inadequada e incompleta”. De fato, quem trabalha em comunidades pobres é confrontado todos os dias com essa realidade. Por um lado, a demanda imediata, que requer a ajuda efetiva, pessoal, direta, tal como levar cesta básica para a casa de uma mãe pobre, abandonada pelo marido e com quatro filhos para criar. Por outro lado, a decisão de bater à porta do poder público a fim de que este faça o que nenhuma igreja está apta a fazer. Como, por exemplo, fazer a limpeza e dragagem de um rio de esgoto puro que corta a favela, no qual crianças nadam por falta de acesso à área de lazer.
Tudo isso está intimamente ligado ao evangelismo: “Quando os cristãos se importam uns com os outros, e com os pobres, Jesus Cristo se torna mais visivelmente atraente”. Na verdade, a compaixão pelo pobre é uma das metas principais do evangelismo. Somos justificados pela graça mediante uma fé que precisa ser justificada pelas obras. A principal obra da fé é o amor misericordioso: “Aqueles que serviram a ele, servindo aos mais pequeninos de seus irmãos carentes, serão salvos, pois a realidade da fé que salva é visível no amor serviçal”. Essa é uma questão que deve confrontar todo plantador de igreja e evangelista: que tipo de crente queremos que apareça lá na ponta, como consequência dos nossos esforços? Estamos nos dedicando a plantar e nutrir que tipo de igreja? Martin Luther King vai bater à porta da casa do membro da sua igreja, chamando-o para marchar com ele contra a segregação racial, e ele vai dizer não, porque só consegue ver o cristianismo em termos de convidar pessoas a participar do grupo pequeno da sua igreja?
Que esperança podemos ter de que essas mudanças ocorram num mundo caótico como este em que vivemos, composto na sua maioria por pessoas não regeneradas? A mesma que levou homens e mulheres no passado a sonhar com a democracia, o fim de regimes absolutistas, a liberdade da mulher, o término da escravidão. O que não podemos é usufruir desse legado, que custou o sangue de muitos, e fincar o pé num pessimismo injustificável, por ser desalmado e não resistir aos fatos históricos. John Stott afirma que “também estamos convencidos de que a presente situação de injustiça social é tão repulsiva a Deus, que uma mudança bem ampla é necessária. Não que creiamos em utopias terrestres. Mas tampouco somos pessimistas”.
O capítulo sétimo é o mais emocionante de todos. No sexto, a ênfase é posta na necessidade de os cristãos buscarem equilíbrio de vida. Ele usa as mais conhecidas metáforas bíblicas sobre a Igreja, a fim de mostrar os diferentes aspectos da eclesiologia do Novo Testamento, construindo assim um quadro harmonioso que pode trazer mais equilíbrio à prática do cristianismo.
A Igreja é comparada a bebês famintos pelo leite espiritual, a pedras vivas que compõe o templo de Deus, a sacerdotes cujo dever é adorar, a um povo chamado para pertencer exclusivamente a Deus a fim de revelar as perfeições do seu Criador, a estrangeiros que não têm morada fixa neste mundo e a servos que devem viver em obediência ao seu Senhor. John Stott ressalta a importância de sabermos quem somos a fim de ajustarmos nosso comportamento ao que sabemos ser verdadeiro sobre a nossa vida.
John Stott faz uma exposição rara sobre sua vida. Ele sempre falou pouco sobre si mesmo nas suas pregações e escritos. No penúltimo capítulo, contudo, ele fala das lutas pessoais que teve de enfrentar na velhice. É o relato comovente de quem expõe suas fraquezas a fim de desfazer qualquer espécie de visão idealizada sobre sua vida.
Há dois relatos de experiências humilhantes. Na manhã do dia 20 de agosto de 2006, ele tropeça numa cadeira, cai no chão, vindo a fraturar o quadril (o que o levou para a mesa de cirurgia a fim de colocar uma prótese) e ali permaneceu imóvel: “Não podia me mover, muito menos levantar-me sozinho, percebi naquele momento que havia quebrado ou deslocado o quadril. Entretanto, consegui apertar o botão de emergência e alguns amigos vieram imediatamente em meu socorro”. Ele conta que se ver “‘esparramado’ no chão, completamente dependente dos outros” o ajudou a ver que “este é o lugar onde, de vez em quando, o discípulo radical precisa estar. Deus pode usar a dependência gerada por essas experiências para causar em nós profundo amadurecimento”.
O segundo testemunho pessoal de contato com a fragilidade humana tem a ver com “a instabilidade pessoal que algumas vezes a enfermidade física traz à tona e que se manifesta pelo choro”. Stott relata a descrição feita pelo professor de ética e perinatologia do hospital-escola da Universidade de Londres, John Wyatt, que o visitou no hospital e testemunhou da angústia do grande teólogo inglês: “Nos primeiros dias depois da cirurgia, John Stott foi acometido por episódios de desorientação e por distintas e alarmantes alucinações visuais. Além disso, havia a inevitável humilhação de receber os cuidados da enfermagem, e a preocupação com o futuro. Enquanto estávamos no hospital, conversando e compartilhando, lembrei-me da minha própria experiência de doença e caos, alguns anos antes. Lembro que estávamos em lágrimas, dominados por um poderoso sentimento comum de vulnerabilidade e debilidade humana. Foi uma experiência dolorosa, mas libertadora”.
A que conclusão ele chegou? Ele afirma que “viemos a este mundo totalmente dependentes do amor, do cuidado e da proteção de outros. Passamos por uma fase na vida em que outras pessoas dependem de nós. E a maior parte de nós deixará este mundo dependendo totalmente do amor e cuidado dos outros. E isso não é nenhum mal ou realidade destrutiva. É parte do plano, da natureza física que nos foi dada por Deus [...] todos nós estamos destinados a ser um peso para os outros. Você está destinado a ser um peso para mim e eu estou destinado a ser um peso para você [...] na pessoa de Cristo, aprendemos a dependência que não destitui – não pode destituir – uma pessoa de sua dignidade, de seu valor supremo”.
O que acrescentar a tudo que foi dito? Você já aprendeu que o orgulho não combina com a nossa condição? “Baixe a bola” – diria num português bem popular, lide com humildade com o próximo e a vida, e sobretudo, aprenda a depender de Deus e de sua misericórdia. É pela fé neste amor que atravessemos o vale de lágrimas, vendo o invisível, esperando contra a esperança.
Podemos até tentar ocultar nossas fraquezas de nós mesmos e do próximo. Porém, chega o dia em que a vida nos põe nus. Às vezes, literalmente, com gente limpando nossas fezes. Que não haja espaço na nossa vida para a propaganda enganosa, que faz pessoas pensarem ao nosso respeito o que não corresponde à realidade dos fatos.
John Stott afirma que uma das características mais proeminentes do verdadeiro nascido de novo é a morte. O caminho para a vida é a morte. Não há salvação sem morte. Ninguém entra na vida se não morrer primeiro. O discipulado envolve morte também. Ele lembra Dietrich Bonhoeffer no seu clássico “Discipulado”: “Quando Cristo chama um homem, ele o convida a vir e morrer”.
Esse caminho não é o do masoquismo: “Jesus promete a verdadeira autodescoberta pelo preço da autonegação, a verdadeira vida pelo preço da morte”. O que falar sobre esse convite neste contexto de cristianismo desfigurado, em que pregadores mimam suas congregações na perspectiva de as manterem cheias? Quantos membros de igreja no nosso país estão enfrentando a realidade da morte, que requer coragem para viver, em razão do grau de profundidade de sua identificação com Cristo?
A missão da Igreja é levada a cabo mediante o alto preço do amor sacrificial da Igreja. Ele cita Douglas Webster, segundo o qual “mais cedo ou mais tarde, a missão leva à paixão. Nos padrões bíblicos [...] o servo deve sofrer [...] e isso faz a missão ser efetiva”. Neste sentido, a perseguição é inevitável na vida do discípulo radical, podendo levar em alguns casos ao martírio.
A conclusão do seu último livro comove. Que pena não o ter mais entre nós! Poucos souberam escrever com tamanha concisão, fidelidade às Escrituras, sabedoria, clareza, amplitude, polidez. Ele recomenda aos cristãos lerem: “Nossos livros favoritos se tornam preciosos para nós e até desenvolvemos com eles um relacionamento quase intenso e afetuoso. Não é estranho o fato de manusearmos, riscarmos e até cheirarmos os livros como símbolo de nossa estima e afeição?”. Isso me faz lembrar de minha reação ao terminar de ler o terceiro volume de “The Rational Biblical Theology of Jonathan Edwards”, de John Gerstner. Eu caí de joelhos, beijei o livro e orei em agradecimento a Deus. Stott via os livros cristãos como meio de graça negligenciado. Eu completaria dizendo: deixar de ler John Stott é um grande desperdício.
Quando estive em All Souls, no centro de Londres, no início da década de 90, perguntei ao pastor da igreja sobre a importância de John Stott para a história do cristianismo, ao que ele me respondeu: “O John é a âncora da Inglaterra”. Sim, ele ajudou a manter homens e mulheres, na Inglaterra e no mundo, fiéis ao cristianismo das páginas da Escrituras Sagradas.
Oro para expressar minha gratidão: Pai santo, obrigado por teres separado a John Stott para instruir e edificar a todos quantos ansiaram por servir a Cristo a partir da fidelidade às Sagradas Escrituras.
• Antônio Carlos Costa é teólogo e fundador da ONG Rio de Paz.
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Poucos autores conheço tanto quanto John Stott. Li praticamente tudo o que ele escreveu. Não há palavras para descrever sua influência na minha vida. Toda a minha visão sobre a missão da Igreja está alicerçada nos seus escritos.
Houve um dia em que sonhei, em lágrimas, apresentar a ele o resultado do seu ministério em minha vida. Nascia a ONG “Rio de Paz”, com suas manifestações repercutindo no Brasil e no mundo. O meu desejo era dizer a John Stott que tudo havia sido inspirado e dirigido pelos seus escritos. Não tive esse privilégio. Aprouve a Deus que fizesse o seu obituário no jornal “O Globo”, fazendo o registro da sua influência sobre o nosso movimento de defesa dos direitos humanos e redução de homicídio.
Acabei de ler seu último livro - O Discípulo Radical, escrito aos 88 anos, dois anos antes da sua morte em 2011. Ele selou seu ministério como escritor com a mesma lucidez, fidelidade às Escrituras, clareza, polidez e compromisso com a missão integral da Igreja, que tanto caracterizaram seu trabalho. Vale a pena ressaltar as suas preocupações ao ver a morte se aproximar.
O pequeno livro é dividido em oito capítulos, nos quais tenciona expressar as principais características de um discípulo de Cristo. Que traços são esses?
1. Inconformismo
Os cristãos não devem assumir a forma do mundo. Não devem se deixar contaminar. Quais as tendências contemporâneas que ameaçam nos tragar? Ele menciona quatro. Pluralismo (que relativiza a verdade), materialismo (que absolutiza o consumismo), relativismo (que relativiza a ética) e o narcisismo (que absolutiza o ego). Segundo John Stott, “diante do desafio do pluralismo, devemos ser uma comunidade de verdade, declarando a singularidade de Cristo. Diante do desafio do materialismo, devemos ser uma comunidade de simplicidade, considerando que somos peregrinos aqui. Diante do desafio do relativismo, devemos ser uma comunidade de obediência. Diante do desafio do narcisismo, devemos ser uma comunidade de amor”.
2. Semelhança com Cristo
“Semelhança com Cristo é a vontade de Deus para o povo de Deus.” Fomos predestinados para sermos parecidos com Cristo, estamos sendo a cada dia transformados pelo Espírito Santo para nos tornarmos parecidos com Cristo e um dia seremos como Cristo. “Em que devemos ser parecidos com Cristo?” – indaga Stott. Na sua encarnação, no seu serviço, no seu amor, na sua longanimidade e na sua missão.
3. Maturidade
Stott ressalta: “O que é a maturidade cristã? O fato é que ela é algo difícil de ser obtido. A maioria de nós sofre de imaturidades prolongadas. Mesmo no adulto, a pequena criança ainda se esconde em algum lugar. Além disso, existem diferentes tipos de maturidade. Existe a física (ter um corpo saudável e bem desenvolvido), a intelectual (ter uma mente disciplinada e uma cosmovisão coerente), a moral (aqueles que ‘têm suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o mal’, Hb 5.14), a emocional (ter uma personalidade equilibrada, capaz de estabelecer relacionamentos e assumir responsabilidades). Porém, acima de tudo, existe a maturidade espiritual. E isso é o que o apóstolo chama de maturidade ‘em Cristo’, isto é, ter um relacionamento maduro com Cristo”.
4. Cuidado com a criação
Ele condena a exploração da natureza, revelando profunda consciência ecológica, voltada para o desenvolvimento sustentável. Esse cuidado, de acordo com Stott, “não significa tratá-la (a natureza) com veneração, como se ela fosse Deus, nem tratá-la com arrogância, como se nós fossemos Deus”. Ele revela uma preocupação com a economia ao afirmar que “o que Deus nos deu foi a natureza, e o que fazemos com ela é cultura. Não devemos apenas conservar o ambiente, mas também desenvolver os seus recursos para o bem comum”.
John Stott fala sobre as principais ameaças à natureza: crescimento populacional acelerado do mundo, depleção dos recursos da terra, descarte de lixo e mudança climática. Ele cita Chris Wright, que enfatiza a necessidade de os cristãos levarem a sua responsabilidade ambiental a sério: “Eles escolhem formas sustentáveis de energia quando é viável. Desligam aparelhos em desuso. Sempre que possível, compram alimentos, mercadorias e serviços de empresas que tenham diretrizes ambientais eticamente saudáveis. Eles se aliam a grupos de conservação. Evitam o consumo demasiado e o desperdício desnecessário e reciclam o máximo possível”.
5. Simplicidade
Ser criterioso em amor quanto ao uso de bens e dinheiro é consequência da vida que foi tangida pela verdade do evangelho, que chama os discípulos de Cristo a morrerem para si mesmos a fim de viverem para o próximo.
Essa foi a ênfase da Consulta Internacional sobre Estilo de Vida Simples, realizada em 1980 na Inglaterra. Esse encontro foi um desdobramento do Congresso de Lausanne em 1974, que tanto marcou a vida do protestantismo mundial. Mencionando mais uma vez minha atividade no campo dos direitos humanos, por meio da ONG Rio de Paz, devo reconhecer que o material dessa conferência, que teve John Stott como um dos preletores, foi de grande importância para a decisão que tomei de viver o protestantismo nas ruas, protestando.
Vale a pena lermos com atenção o registro da conclusão a que chegaram os participantes do encontro: “Afirmamos que a pobreza involuntária é uma ofensa contra a bondade de Deus. Na Bíblia, a pobreza aparece associada à impotência, pois os pobres não têm meios de se proteger [...] a igreja precisa ficar ao lado de Deus e dos pobres contra à injustiça, sofrer com eles e apelar às autoridades para que cumpram o papel que lhes foi determinado por Deus [...] o reino é um dádiva oferecida a todos, mas o que ele é, de maneira especial, são boas novas para os pobres, dado que são eles que recebem mais benefícios em consequência das mudanças implantadas pelo reino [...] cremos que Jesus chama algumas pessoas (talvez até mesmo nós) para segui-lo num estilo de vida que inclui a pobreza total voluntária [...], resolvemos conhecer pessoalmente pessoas pobres e oprimidas, e ouvir o que elas podem nos dizer sobre injustiças específicas, para depois procurar aliviar seu sofrimento e incluí-las regularmente em nossas orações”. É impossível ler essa declaração, repleta de verdades que saltam aos olhos de qualquer leitor das Escrituras, desde que, é claro, sua leitura não seja condicionada por fatores culturais e ideológicos, e não perceber que o grande escândalo do protestantismo vivido por milhares de brasileiros é a falta de compreensão que a missão de Deus no mundo é o pobre.
Em conexão a isso, um apelo é feito à própria Igreja, a fim de que ela economize ao máximo, visando socorrer o pobre: “Devemos procurar meios de tocar a vida comunitária da igreja com o mínimo de gastos em itens como viagens, alimentação e acomodação. Conclamamos as igrejas e agências paraeclesiásticas para que, em seus planejamentos, se conscientizem da necessidade de se manter a integridade tanto no estilo de vida da comunidade quanto no testemunho”. Por que as coisas devem funcionar desse jeito? A resposta é irrefutável: “O fato de 800 milhões de pessoas estarem na pobreza mais absoluta e 10 mil morrerem de fome todo dia, torna inviável qualquer outro estilo de vida”. Uma proposta é apresentada. Será que há espaço para que seja discutida no âmbito do protestantismo brasileiro? Veja: “Resolvemos renunciar ao desperdício, e opormo-nos à extravagância em nossa vida pessoal, em matéria de roupas e de moradia, de viagens e de templos. Também aceitamos a distinção entre necessidades e luxo, ‘hobbies’ criativos e símbolos de status vazios, modéstia e vaidade, celebrações ocasionais e o nosso dia a dia, e entre o serviço de Deus e a escravidão à moda. Onde traçar o divisor de águas – eis o que requer mais reflexão e mais decisão da nossa parte, juntamente com nossos familiares”.
Qual o lugar do pobre na vida da sua igreja? Quanto você tem doado? Há preocupação em sua vida com gastos desnecessários? Você procura economizar a fim de socorrer os miseráveis deste mundo? Podemos continuar vivendo num país socialmente tão desigual como o nosso, no qual milhares vivem destituídos de todos os elementos essenciais para que a vida humana floresça e se desenvolva, sem que isso não nos diga absolutamente nada? Há diferença entre ser cristão num país rico e ser cristão num país tomado de bolsões de pobreza? Você não pode deixar de responder a essas perguntas.
O discípulo de Cristo deve ter preocupações políticas? Faz sentido ele gastar o tempo que poderia ser dedicado ao evangelismo para lutar pela justiça social? Há relação entre vida cristã e luta por ordem econômica que ajude a eliminar a desigualdade? Para John Stott, não havia a mínima incompatibilidade entre essas esferas de vida.
Ele se indignava com a fome que faz secar a vida de bilhões de seres humanos. Estimulava, assim, a igreja a se envolver em ações de desenvolvimento humano: “As pessoas com frequência morrem de fome porque não podem comprar comida, porque não têm rendimento, não têm oportunidade para produzir, e porque não têm acesso ao poder. Portanto, aplaudimos a crescente ênfase das agências cristãs no desenvolvimento, de preferência à ajuda simplesmente”. Certamente, ele haveria de apoiar o bolsa família do governo federal (“onde vidas humanas estão em jogo, nunca deveria haver carência de fundos”), mas ao mesmo tempo pressionando o poder público a investir na independência do pobre, tanto em relação a um assistencialismo que o torna economicamente dependente do Estado, quanto em relação ao socorro incerto da sociedade.
Pessoas podem cair na pobreza pelos mais diferentes motivos: tragédias naturais, doenças, conflitos pessoais, falta de capacidade de administrar a própria vida. Mas, na maioria das vezes, o que ocorre é vidas humanas serem privadas de recursos para viver com dignidade por força de estruturas sociais malignas. Por isso, existe a necessidade imperiosa de o cristão ver a pressão política como expressão de amor. John Stott ressalta que “pobreza e riqueza excessiva, militarismo e indústria armamentista, e a distribuição injusta de capital, de terra e de recursos constituem problemas que têm a ver diretamente com poder e impotência. Sem uma mudança de poder através de mudanças estruturais, esses problemas não poderão ser resolvidos”.
O envolvimento político é inevitável. É impossível plantar igrejas na “polis” e não se envolver de uma maneira ou de outra com política: “A igreja, juntamente com o resto da sociedade, está inevitavelmente envolvida na política, que é ‘a arte de viver na comunidade’. Os servos de Cristo precisam expressar o senhorio dele em seus compromissos políticos, econômicos e sociais, e em seu amor por seu próximo, participando do processo político”. Stott apresenta quatro caminhos de ação política por parte da igreja:
1. Orar.
2. Educar. “Procurar educar o povo cristão nas questões morais e políticas envolvidas, esclarecendo assim sua visão e levantando suas expectativas.”
3. Agir. “Alguns cristãos são chamados a exercer tarefas importantes junto ao governo, no setor econômico ou em assuntos de desenvolvimento. Todos os cristãos devem participar ativamente do esforço pela criação de uma sociedade justa e responsável.” Vale a pena ressaltar importante declaração que apresenta uma implicação do viver em santidade: “Em algumas situações, a obediência a Deus exige resistência a um sistema injusto”.
4. Sofrer. “Como seguidores de Cristo, o Servo Sofredor, sabemos que o serviço sempre envolve sofrimento.” Fica a questão: que preço o protestantismo brasileiro está pagando pelo seu compromisso com a causa da justiça social?
Portanto, não há incompatibilidade entre compromisso pessoal e ação política, obras de filantropia e protesto a fim de que haja mudança sistêmica. Um precisa do outro: “O compromisso pessoal em termos de mudança de estilo de vida não será eficaz se não houver ação política, visando à mudança dos sistemas injustos. Mas a ação política sem compromisso pessoal é inadequada e incompleta”. De fato, quem trabalha em comunidades pobres é confrontado todos os dias com essa realidade. Por um lado, a demanda imediata, que requer a ajuda efetiva, pessoal, direta, tal como levar cesta básica para a casa de uma mãe pobre, abandonada pelo marido e com quatro filhos para criar. Por outro lado, a decisão de bater à porta do poder público a fim de que este faça o que nenhuma igreja está apta a fazer. Como, por exemplo, fazer a limpeza e dragagem de um rio de esgoto puro que corta a favela, no qual crianças nadam por falta de acesso à área de lazer.
Tudo isso está intimamente ligado ao evangelismo: “Quando os cristãos se importam uns com os outros, e com os pobres, Jesus Cristo se torna mais visivelmente atraente”. Na verdade, a compaixão pelo pobre é uma das metas principais do evangelismo. Somos justificados pela graça mediante uma fé que precisa ser justificada pelas obras. A principal obra da fé é o amor misericordioso: “Aqueles que serviram a ele, servindo aos mais pequeninos de seus irmãos carentes, serão salvos, pois a realidade da fé que salva é visível no amor serviçal”. Essa é uma questão que deve confrontar todo plantador de igreja e evangelista: que tipo de crente queremos que apareça lá na ponta, como consequência dos nossos esforços? Estamos nos dedicando a plantar e nutrir que tipo de igreja? Martin Luther King vai bater à porta da casa do membro da sua igreja, chamando-o para marchar com ele contra a segregação racial, e ele vai dizer não, porque só consegue ver o cristianismo em termos de convidar pessoas a participar do grupo pequeno da sua igreja?
Que esperança podemos ter de que essas mudanças ocorram num mundo caótico como este em que vivemos, composto na sua maioria por pessoas não regeneradas? A mesma que levou homens e mulheres no passado a sonhar com a democracia, o fim de regimes absolutistas, a liberdade da mulher, o término da escravidão. O que não podemos é usufruir desse legado, que custou o sangue de muitos, e fincar o pé num pessimismo injustificável, por ser desalmado e não resistir aos fatos históricos. John Stott afirma que “também estamos convencidos de que a presente situação de injustiça social é tão repulsiva a Deus, que uma mudança bem ampla é necessária. Não que creiamos em utopias terrestres. Mas tampouco somos pessimistas”.
O capítulo sétimo é o mais emocionante de todos. No sexto, a ênfase é posta na necessidade de os cristãos buscarem equilíbrio de vida. Ele usa as mais conhecidas metáforas bíblicas sobre a Igreja, a fim de mostrar os diferentes aspectos da eclesiologia do Novo Testamento, construindo assim um quadro harmonioso que pode trazer mais equilíbrio à prática do cristianismo.
A Igreja é comparada a bebês famintos pelo leite espiritual, a pedras vivas que compõe o templo de Deus, a sacerdotes cujo dever é adorar, a um povo chamado para pertencer exclusivamente a Deus a fim de revelar as perfeições do seu Criador, a estrangeiros que não têm morada fixa neste mundo e a servos que devem viver em obediência ao seu Senhor. John Stott ressalta a importância de sabermos quem somos a fim de ajustarmos nosso comportamento ao que sabemos ser verdadeiro sobre a nossa vida.
John Stott faz uma exposição rara sobre sua vida. Ele sempre falou pouco sobre si mesmo nas suas pregações e escritos. No penúltimo capítulo, contudo, ele fala das lutas pessoais que teve de enfrentar na velhice. É o relato comovente de quem expõe suas fraquezas a fim de desfazer qualquer espécie de visão idealizada sobre sua vida.
Há dois relatos de experiências humilhantes. Na manhã do dia 20 de agosto de 2006, ele tropeça numa cadeira, cai no chão, vindo a fraturar o quadril (o que o levou para a mesa de cirurgia a fim de colocar uma prótese) e ali permaneceu imóvel: “Não podia me mover, muito menos levantar-me sozinho, percebi naquele momento que havia quebrado ou deslocado o quadril. Entretanto, consegui apertar o botão de emergência e alguns amigos vieram imediatamente em meu socorro”. Ele conta que se ver “‘esparramado’ no chão, completamente dependente dos outros” o ajudou a ver que “este é o lugar onde, de vez em quando, o discípulo radical precisa estar. Deus pode usar a dependência gerada por essas experiências para causar em nós profundo amadurecimento”.
O segundo testemunho pessoal de contato com a fragilidade humana tem a ver com “a instabilidade pessoal que algumas vezes a enfermidade física traz à tona e que se manifesta pelo choro”. Stott relata a descrição feita pelo professor de ética e perinatologia do hospital-escola da Universidade de Londres, John Wyatt, que o visitou no hospital e testemunhou da angústia do grande teólogo inglês: “Nos primeiros dias depois da cirurgia, John Stott foi acometido por episódios de desorientação e por distintas e alarmantes alucinações visuais. Além disso, havia a inevitável humilhação de receber os cuidados da enfermagem, e a preocupação com o futuro. Enquanto estávamos no hospital, conversando e compartilhando, lembrei-me da minha própria experiência de doença e caos, alguns anos antes. Lembro que estávamos em lágrimas, dominados por um poderoso sentimento comum de vulnerabilidade e debilidade humana. Foi uma experiência dolorosa, mas libertadora”.
A que conclusão ele chegou? Ele afirma que “viemos a este mundo totalmente dependentes do amor, do cuidado e da proteção de outros. Passamos por uma fase na vida em que outras pessoas dependem de nós. E a maior parte de nós deixará este mundo dependendo totalmente do amor e cuidado dos outros. E isso não é nenhum mal ou realidade destrutiva. É parte do plano, da natureza física que nos foi dada por Deus [...] todos nós estamos destinados a ser um peso para os outros. Você está destinado a ser um peso para mim e eu estou destinado a ser um peso para você [...] na pessoa de Cristo, aprendemos a dependência que não destitui – não pode destituir – uma pessoa de sua dignidade, de seu valor supremo”.
O que acrescentar a tudo que foi dito? Você já aprendeu que o orgulho não combina com a nossa condição? “Baixe a bola” – diria num português bem popular, lide com humildade com o próximo e a vida, e sobretudo, aprenda a depender de Deus e de sua misericórdia. É pela fé neste amor que atravessemos o vale de lágrimas, vendo o invisível, esperando contra a esperança.
Podemos até tentar ocultar nossas fraquezas de nós mesmos e do próximo. Porém, chega o dia em que a vida nos põe nus. Às vezes, literalmente, com gente limpando nossas fezes. Que não haja espaço na nossa vida para a propaganda enganosa, que faz pessoas pensarem ao nosso respeito o que não corresponde à realidade dos fatos.
John Stott afirma que uma das características mais proeminentes do verdadeiro nascido de novo é a morte. O caminho para a vida é a morte. Não há salvação sem morte. Ninguém entra na vida se não morrer primeiro. O discipulado envolve morte também. Ele lembra Dietrich Bonhoeffer no seu clássico “Discipulado”: “Quando Cristo chama um homem, ele o convida a vir e morrer”.
Esse caminho não é o do masoquismo: “Jesus promete a verdadeira autodescoberta pelo preço da autonegação, a verdadeira vida pelo preço da morte”. O que falar sobre esse convite neste contexto de cristianismo desfigurado, em que pregadores mimam suas congregações na perspectiva de as manterem cheias? Quantos membros de igreja no nosso país estão enfrentando a realidade da morte, que requer coragem para viver, em razão do grau de profundidade de sua identificação com Cristo?
A missão da Igreja é levada a cabo mediante o alto preço do amor sacrificial da Igreja. Ele cita Douglas Webster, segundo o qual “mais cedo ou mais tarde, a missão leva à paixão. Nos padrões bíblicos [...] o servo deve sofrer [...] e isso faz a missão ser efetiva”. Neste sentido, a perseguição é inevitável na vida do discípulo radical, podendo levar em alguns casos ao martírio.
A conclusão do seu último livro comove. Que pena não o ter mais entre nós! Poucos souberam escrever com tamanha concisão, fidelidade às Escrituras, sabedoria, clareza, amplitude, polidez. Ele recomenda aos cristãos lerem: “Nossos livros favoritos se tornam preciosos para nós e até desenvolvemos com eles um relacionamento quase intenso e afetuoso. Não é estranho o fato de manusearmos, riscarmos e até cheirarmos os livros como símbolo de nossa estima e afeição?”. Isso me faz lembrar de minha reação ao terminar de ler o terceiro volume de “The Rational Biblical Theology of Jonathan Edwards”, de John Gerstner. Eu caí de joelhos, beijei o livro e orei em agradecimento a Deus. Stott via os livros cristãos como meio de graça negligenciado. Eu completaria dizendo: deixar de ler John Stott é um grande desperdício.
Quando estive em All Souls, no centro de Londres, no início da década de 90, perguntei ao pastor da igreja sobre a importância de John Stott para a história do cristianismo, ao que ele me respondeu: “O John é a âncora da Inglaterra”. Sim, ele ajudou a manter homens e mulheres, na Inglaterra e no mundo, fiéis ao cristianismo das páginas da Escrituras Sagradas.
Oro para expressar minha gratidão: Pai santo, obrigado por teres separado a John Stott para instruir e edificar a todos quantos ansiaram por servir a Cristo a partir da fidelidade às Sagradas Escrituras.
• Antônio Carlos Costa é teólogo e fundador da ONG Rio de Paz.
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- 29 de julho de 2015
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