Opinião
- 09 de fevereiro de 2021
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Lendo a Bíblia como um texto literário e Deus como personagem no livro de Rute
Por Carlos Caldas
A Bíblia, ao longo dos séculos, tem sido consumida e recebida, grosso modo, de duas maneiras, a saber, a devocional e a doutrinária. A leitura devocional é a feita quase sempre individualmente, com propósito de alimentar a fé e a piedade. A leitura doutrinária é a feita por especialistas, que a partir do texto bíblico constroem sistemas teológicos que serão adotados por suas comunidades eclesiásticas como sendo o padrão correto – ortodoxo – de interpretação do texto sagrado. No que diz respeito ao método exegético propriamente de leitura bíblica acadêmica, “científica”, por assim dizer, dois métodos (pelo menos no Ocidente) têm sido predominantes: o histórico-gramatical e o histórico-crítico. Este breve texto não tem como objetivo explicar características destas duas abordagens e diferenças entre uma e outra. Todavia, uma única observação a respeito será feita, uma que provavelmente desagradará a defensores tanto de um como do outro: os dois métodos são diacrônicos, isto é, preocupam-se em reconstruir a história da composição do texto bíblico. Esta tentativa muitas vezes é altamente hipotética, trabalha com pressupostos que dificilmente poderão ser comprovados. O histórico-gramatical tem a tendência, conscientemente ou não, de confirmar a tradição antiga, enquanto o histórico-crítico não se sente obrigado a fazer o mesmo. Isso faz com que certos defensores do histórico-gramatical acusem os partidários do histórico-crítico de serem liberais que querem destruir a fé, e os adeptos do histórico-crítico por sua vez lançam sobre os defensores do histórico-gramatical a acusação de fazer uma exegese ingênua. Talvez estejam certos no que veem de problemático um no outro, mas errados ao não admitir as próprias falhas da metodologia exegética que adotam. Há que se lembrar também que nenhum método exegético é sagrado e infalível, e ao mesmo tempo todos têm elementos sólidos e pontos frágeis.
Uma alternativa relativamente recente a estas duas propostas é a de leitura literária do texto bíblico. Esta é uma leitura sincrônica, que trabalha com o texto como ele está, sem se preocupar com a história da formação do texto. Assim, a preocupação da leitura do texto bíblico na perspectiva da análise narrativa não está em saber como o texto teria sido escrito e qual teria sido o longo caminho desde suas origens mais remotas, muitas vezes na tradição oral, mas saber o que o texto diz. Parece óbvio, mas com muita frequência, o óbvio é esquecido. A leitura literária do texto bíblico poderá eventualmente lançar mão de um ou outro elemento dos mencionados métodos exegéticos, mas não se prenderá a nenhum dos dois. E tem a grande vantagem de poder ser utilizada com proveito em comunidades de fé como auxiliar na leitura devocional, pois não exige conhecimento das línguas originais. Uma limitação do método histórico-crítico e igualmente do histórico-gramatical é que são ambos elitizados, impossíveis de serem praticados por quem não tem conhecimento do hebraico e do grego bíblicos.
Por essas e outras de algum tempo para cá tenho me interessado pela leitura literária do texto bíblico na perspectiva de uma análise narrativa1. Na primeira quinzena de janeiro, aproveitando as férias escolares, revisitei o livro de Rute a partir da mencionada perspectiva. Gostaria de compartilhar sobre apenas um aspecto desta análise aplicada a este pequeno, mas tão belo livro, que para mim tem um significado sentimental especial, pois Rute era o nome da minha mãe, de mui abençoada memória... Literariamente falando Rute é uma novela, pois apresenta uma história curta, com poucos personagens e um enredo relativamente simples. E um dos elementos da análise literária tem a ver exatamente com um estudo dos personagens apresentados na narrativa. Não vou entrar neste texto na explicação dos vários tipos de personagem reconhecidos pela crítica literária, como protagonista ou figurante, pois para isso precisaria de um espaço bem maior que o normalmente reservado para esta coluna. Em Rute há menção a 15 personagens, quais sejam:
- Elimeleque;
- Noemi;
- Malom e Quiliom (os filhos do casal);
- Orfa (uma das noras do casal);
- Rute (a outra nora, que dará título à narrativa);
- “toda a cidade” (1.19) de Belém, quando é mencionado o retorno de Noemi, agora viúva, e sua nora estrangeira, também viúva, para a cidade;
- Boaz (que terá um papel importantíssimo na “virada” da narrativa);
- O capataz de Boaz (2,5-7), que, quando perguntado, dará ao seu patrão um testemunho positivo a respeito da mulher estrangeira;
- O parente não nomeado de Noemi, que aparece como um fator complicador na narrativa (4.1);
- Os dez anciãos de Belém, também não nomeados (4.2-9, 11-12) que servem de testemunhas para a legalização da compra das terras do falecido marido de Noemi e do posterior casamento de Rute e Boaz;
- O “povo” (4.11-12) que também testemunha a cena;
- O filho de Boaz e Rute, que será chamado Obede, nome que significa “servo” (4.13, 17 – até hoje não consegui entender porque neste texto quem dá nome ao recém nascido não é sua mãe, nem seu pai, nem sua “avó”, mas “as vizinhas”. Elas se intrometem na vida alheia, mas a intromissão delas é aceita);
- Um grupo não numerado nem nomeado de “mulheres” (4.14-15) que faz uma profecia bonita a respeito do recém nascido;
- As já mencionadas vizinhas (4.17; talvez tenham sido as mesmas “mulheres” do v. 14);
- Deus – em toda e qualquer narrativa bíblica, Deus sempre é personagem central. Uma afirmação assim pode soar estranha para muitos, mas não há como negar este fato.
Tal como indicado no título deste texto, o que se pretende é explorar, ainda que em síntese, como a narrativa de Rute apresenta Deus como personagem. A primeira coisa que chama a atenção neste sentido é que Deus nunca fala em Rute. Isto é algo incomum, pois nas narrativas bíblicas Deus sempre fala, seja manifestando-se por meio de sonhos ou visões (Gn 15; 1 Sm 3) ou simplesmente “falando” (Gn 12.1 ss). Mas não é o que se vê em Rute. Do primeiro ao quarto e último capítulo Deus não fala nem uma vez. Ele é mencionado por Noemi logo no primeiro capítulo (v. 20-21), em uma fala carregada de amargura, em tom depressivo. Antes, em 1.6 há uma referência à uma ação do Senhor, no caso, a afirmação que a seca terminara em Belém, e isto foi entendido como ação divina. O mesmo entendimento aparece em 4.13: a gravidez de Rute é compreendida como ação do Senhor. Deus ainda é mencionado em fórmulas de saudação e/ou de bênção (1.8-9; 2.4, 20; 3.10; 4.14) e uma única vez em uma forma de imprecação (1.17). Mas, não custa repetir, Deus mesmo não fala nem uma vez. Todavia, sua ação está presente. O olhar da fé permite perceber a ação de Deus em detalhes pequeninos e simples do dia a da vida: na amizade fraterna, na solidariedade, na lealdade, na honestidade (é notável no texto ver como Boaz age de maneira absolutamente correta e honesta, em nenhum momento tentando enganar seu parente anônimo para obter o que quer), no que aparentemente é só o “acaso”, enfim, em situações nas quais se percebe a atuação silenciosa, mas poderosa e providencial do Senhor da história. Em Rute, Deus não intervém de maneira exuberante, espetacular e estrondosa como se lê na narrativa do Êxodo. Mas ele está lá. O Deus apresentado em Rute não é menos presente e menos ativo que o Deus apresentado no Êxodo.
Ler a Bíblia na perspectiva da análise narrativa é um desafio que exige atenção, muita atenção. Uma leitura apressada e descuidada não permitirá ver as sutilezas das quais o texto bíblico está repleto. Mas é algo que se aprende na prática. No ano que se inicia, que tal aceitar o desafio de ler a Bíblia como um texto literário? Mas que o desafio seja aceito não como mero exercício intelectual, mas como dinâmica de fortalecimento na fé e na esperança, para alimentar a vivência do amor.
NOTA
1. Quem quiser saber a mais sobre como ler a Bíblia enquanto texto literário poderá consultar, entre outros:
ALTER, Robert. KERMODE, Frank (Orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.
VITÓRIO, Jaldemir. Análise narrativa da Bíblia. Primeiros passos de um método. São Paulo: Paulinas, 2016.
1. Quem quiser saber a mais sobre como ler a Bíblia enquanto texto literário poderá consultar, entre outros:
ALTER, Robert. KERMODE, Frank (Orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MARGUERAT, Daniel. BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas. Iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.
VITÓRIO, Jaldemir. Análise narrativa da Bíblia. Primeiros passos de um método. São Paulo: Paulinas, 2016.
É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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