Opinião
- 26 de outubro de 2020
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É tudo pela fé... nessa loucura de Deus
Por Valdir Steuernagel
Deve ser porque sou luterano
Há tradições e costumes que a gente vai construindo no decorrer do tempo. Se você é pastor, como eu, ir a uma festa de aniversário de alguém da igreja significa fazer a oração depois do “parabéns pra você” e antes da comilança. Costumes que geram uma tradição.
Ao chegar o mês de outubro pode-se esperar que de algum lado venha um convite para uma palavra acerca da Reforma Protestante, que faz aniversário em 31 de outubro. Ou, então, o pessoal da Ultimato pede que eu escreva um artigo sobre a justificação pela fé, na edição da revista que sai nessa época e que aborda o tema da salvação como presente de Deus. Deve ser porque eu sou luterano e se pressupõe que eu entenda um pouco mais do que seja a justificação pela fé. No entanto, a gente entende muito pouco desse negócio de justificação pela fé.
O risco de um aniversário de rotina
É até normal que o pessoal do aniversário peça que o pastor faça a oração. Afinal, na festa ele é a pessoa que representa a religião. Por vezes, o próprio pastor faz questão disso. É, portanto, uma questão de preservação de mercado. Senão ele acaba ficando obsoleto. Mas essas coisas não são comentadas assim abertamente...
Muitas vezes, nessas ocasiões, minha tentação é passar o bastão adiante. Há uma coisa adolescente dentro de mim que quer bagunçar tais situações. Quebrar os costumes. Protestar contra formas. Mas isso é problema meu.
No que se refere à Reforma Protestante, o processo pode ser igual. A gente convida um protestante histórico para falar sobre a justificação pela fé porque crê que ele entende mais do assunto, o que pode ser um grande engano. Não seria bom convidar alguém de tradição pente-costal para falar sobre a Reforma? A gente não deveria contratar sempre a mesma companhia para abrilhantar a festa de aniversário. E, depois, um dos princípios da Reforma é que a Igreja precisa estar sempre em reforma. Num processo contínuo de questionamento próprio, compartilhamento mútuo e refazimento do ser Igreja. A Reforma não pode ser engessada. Nem por um discurso histórico que meramente repete seus princípios norteadores e fundacionais.
Afinal, o que a gente sabe sobre a justificação?
Uma das ilusões com que me tenho deparado é a de que “pastor sabe orar melhor”. É tão bonito ouvir o pastor orar com aquelas palavras bonitas, religiosas e incompreensíveis! Ele é o mestre das palavras e da religião. Abrilhante-se, pois, a festa. Mesmo que a oração simplesmente reverbere no salão de festas mas não encontre guarida no trono de Deus.
Outra ilusão é pensar que os filhos da Reforma saibam o que seja a Reforma. Ou que eles sejam seus intérpretes maiores. E a gente acaba transformando o evento da Reforma num ato cultural.
Passei anos ouvindo os princípios básicos da Reforma. Acentuando a centralidade deles para a vida da Igreja e o exercício da fé. Posso trazê-los à nossa memória coletiva para enfatizar sua importância e significado: Somente Cristo, somente a Escritura, somente a graça, somente a fé. E, ao repeti-los, percebo sua densidade e essencialidade; percebo quanto eles conseguem transmitir, de forma tão curta e sucinta. Falar do coração da própria fé cristã. Mas o problema é que sempre me afasto do que esses princípios atestam. Ou seja, pressuponho que compreender seja entender. E que entender seja aceitar. Que o cerne da Reforma seja simples-mente uma questão de compreensão intelectual.
A continuação da Reforma, em seu desenrolar histórico, trabalhou com o pressuposto de que esta era uma questão de compreensão racional. Poderia ser transformado em postulado. Um programa teológico. Uma questão de cabeça. A ortodoxia, portanto, se tornou fria e a teologia correu o risco de se tornar algo distante, teórico. Não é assim que os postulados da Reforma não possam ser expressos de forma compreensível e inteligente. É que seu significado está atrelado a seu acompanhamento. Eles são uma espécie de orquestra, que precisa vir acompanhada de dois instrumentos chaves: o Espírito e a fraqueza.
Quando o apóstolo Paulo escreve sua Primeira Carta aos Coríntios, quando ele se relaciona com uma igreja concreta, com desafios reais, ele faz alusão a estas duas dimensões. Ele diz que não é possível conhecer as coisas de Deus, senão pelo Espírito de Deus. Ou seja: as coisas de Deus são de Deus e só podem ser por nós recebidas à medida que Ele as revela, e só podem ser por nós entendidas à medida que Ele nos dá a intermediação do Espírito Santo. É só pelo Espírito que se compreendem as coisas de Deus. Assim diz Paulo: “Nós, porém, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito procedente de Deus, para que entendamos as coisas que Deus nos tem dado gratuitamente” (1 Co 2.12, NVI). É só pelo Espírito Santo, pois, que se pode ter um vislumbre do que seja a justificação pela fé.
Ainda aos coríntios, Paulo diz que foi até eles, em absoluta fraqueza e marcado por uma postura de ausência de conhecimento: “Pois decidi nada saber entre vocês a não ser Jesus Cristo, e este crucificado. E foi com fraqueza, temor e com muito tremor que estive entre vocês” (1 Co 2.2-3, NVI). Essa é uma espécie de contramão essencial na caminhada da fé: a gente só consegue entender algumas coisas acerca de Deus à medida que a gente aceita que não consegue entender nada. É por isso que se diz que a fé cristã é uma fé revelada. É Deus que nos dá a conhecer quem Ele é e o que Ele deseja. A nossa contribuição é a nossa impossibilidade, a nossa fraqueza, a nossa perdição. É pela graça!
Tentarei dizer isso de uma forma mais organizada: a) a Reforma Protes-tante sintetizou uma coisa fundamental: o fato de que a justificação é pela fé; b) a justificação pela fé nunca pode ser primariamente compreendida pela nossa razão. Ela só pode ser aceita pela intermediação do Espírito Santo, que a coloca em nós como uma semente que quer desabrochar; c) a experiência da fraqueza, na qual estamos conscientes da nossa fragilidade, ignorância e pecado, constitui-se o terreno fértil para a compreensão do próprio Deus e da sua graça. E acho tudo isso fantástico. Coisa de Deus!
O reencontro com a graça
Se me fosse permitido falar um pouco mais da graça de Deus, eu voltaria a afirmar a nossa impossibilidade de atingi-la, de compreendê-la, de sistematizá-la. Só é possível começar a “beliscar” a compreensão da graça de Deus quando se aceita que nada se sabe sobre ela. A graça só é experimentada como sendo de graça, e não como mérito, esse grande inimigo da graça de Deus. E essa é a grande tentação religiosa: a salvação pelas obras.
A salvação pela graça passa a ser importante à medida que se percebe o quanto se está distante dela e quão profundamente se carece dela. Como expresso em tantas e tão diferentes igrejas hoje, precisamos voltar a falar sobre a importância da graça de Deus e sobre a realidade da justificação pela fé. Não, em primeiro lugar, como elemento de testemunho, mas como sinal de conversão. A tradição da Reforma ganha em relevância quando ela se volta para dentro, reformando a própria Igreja. E não é disso que estamos precisando hoje?
• Valdir Steuernagel é pastor luterano e integrante da Aliança Cristã Evangélica Brasileira e da Visão Mundial.
Há tradições e costumes que a gente vai construindo no decorrer do tempo. Se você é pastor, como eu, ir a uma festa de aniversário de alguém da igreja significa fazer a oração depois do “parabéns pra você” e antes da comilança. Costumes que geram uma tradição.
Ao chegar o mês de outubro pode-se esperar que de algum lado venha um convite para uma palavra acerca da Reforma Protestante, que faz aniversário em 31 de outubro. Ou, então, o pessoal da Ultimato pede que eu escreva um artigo sobre a justificação pela fé, na edição da revista que sai nessa época e que aborda o tema da salvação como presente de Deus. Deve ser porque eu sou luterano e se pressupõe que eu entenda um pouco mais do que seja a justificação pela fé. No entanto, a gente entende muito pouco desse negócio de justificação pela fé.
O risco de um aniversário de rotina
É até normal que o pessoal do aniversário peça que o pastor faça a oração. Afinal, na festa ele é a pessoa que representa a religião. Por vezes, o próprio pastor faz questão disso. É, portanto, uma questão de preservação de mercado. Senão ele acaba ficando obsoleto. Mas essas coisas não são comentadas assim abertamente...
Muitas vezes, nessas ocasiões, minha tentação é passar o bastão adiante. Há uma coisa adolescente dentro de mim que quer bagunçar tais situações. Quebrar os costumes. Protestar contra formas. Mas isso é problema meu.
No que se refere à Reforma Protestante, o processo pode ser igual. A gente convida um protestante histórico para falar sobre a justificação pela fé porque crê que ele entende mais do assunto, o que pode ser um grande engano. Não seria bom convidar alguém de tradição pente-costal para falar sobre a Reforma? A gente não deveria contratar sempre a mesma companhia para abrilhantar a festa de aniversário. E, depois, um dos princípios da Reforma é que a Igreja precisa estar sempre em reforma. Num processo contínuo de questionamento próprio, compartilhamento mútuo e refazimento do ser Igreja. A Reforma não pode ser engessada. Nem por um discurso histórico que meramente repete seus princípios norteadores e fundacionais.
Afinal, o que a gente sabe sobre a justificação?
Uma das ilusões com que me tenho deparado é a de que “pastor sabe orar melhor”. É tão bonito ouvir o pastor orar com aquelas palavras bonitas, religiosas e incompreensíveis! Ele é o mestre das palavras e da religião. Abrilhante-se, pois, a festa. Mesmo que a oração simplesmente reverbere no salão de festas mas não encontre guarida no trono de Deus.
Outra ilusão é pensar que os filhos da Reforma saibam o que seja a Reforma. Ou que eles sejam seus intérpretes maiores. E a gente acaba transformando o evento da Reforma num ato cultural.
Passei anos ouvindo os princípios básicos da Reforma. Acentuando a centralidade deles para a vida da Igreja e o exercício da fé. Posso trazê-los à nossa memória coletiva para enfatizar sua importância e significado: Somente Cristo, somente a Escritura, somente a graça, somente a fé. E, ao repeti-los, percebo sua densidade e essencialidade; percebo quanto eles conseguem transmitir, de forma tão curta e sucinta. Falar do coração da própria fé cristã. Mas o problema é que sempre me afasto do que esses princípios atestam. Ou seja, pressuponho que compreender seja entender. E que entender seja aceitar. Que o cerne da Reforma seja simples-mente uma questão de compreensão intelectual.
A continuação da Reforma, em seu desenrolar histórico, trabalhou com o pressuposto de que esta era uma questão de compreensão racional. Poderia ser transformado em postulado. Um programa teológico. Uma questão de cabeça. A ortodoxia, portanto, se tornou fria e a teologia correu o risco de se tornar algo distante, teórico. Não é assim que os postulados da Reforma não possam ser expressos de forma compreensível e inteligente. É que seu significado está atrelado a seu acompanhamento. Eles são uma espécie de orquestra, que precisa vir acompanhada de dois instrumentos chaves: o Espírito e a fraqueza.
Quando o apóstolo Paulo escreve sua Primeira Carta aos Coríntios, quando ele se relaciona com uma igreja concreta, com desafios reais, ele faz alusão a estas duas dimensões. Ele diz que não é possível conhecer as coisas de Deus, senão pelo Espírito de Deus. Ou seja: as coisas de Deus são de Deus e só podem ser por nós recebidas à medida que Ele as revela, e só podem ser por nós entendidas à medida que Ele nos dá a intermediação do Espírito Santo. É só pelo Espírito que se compreendem as coisas de Deus. Assim diz Paulo: “Nós, porém, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito procedente de Deus, para que entendamos as coisas que Deus nos tem dado gratuitamente” (1 Co 2.12, NVI). É só pelo Espírito Santo, pois, que se pode ter um vislumbre do que seja a justificação pela fé.
Ainda aos coríntios, Paulo diz que foi até eles, em absoluta fraqueza e marcado por uma postura de ausência de conhecimento: “Pois decidi nada saber entre vocês a não ser Jesus Cristo, e este crucificado. E foi com fraqueza, temor e com muito tremor que estive entre vocês” (1 Co 2.2-3, NVI). Essa é uma espécie de contramão essencial na caminhada da fé: a gente só consegue entender algumas coisas acerca de Deus à medida que a gente aceita que não consegue entender nada. É por isso que se diz que a fé cristã é uma fé revelada. É Deus que nos dá a conhecer quem Ele é e o que Ele deseja. A nossa contribuição é a nossa impossibilidade, a nossa fraqueza, a nossa perdição. É pela graça!
Tentarei dizer isso de uma forma mais organizada: a) a Reforma Protes-tante sintetizou uma coisa fundamental: o fato de que a justificação é pela fé; b) a justificação pela fé nunca pode ser primariamente compreendida pela nossa razão. Ela só pode ser aceita pela intermediação do Espírito Santo, que a coloca em nós como uma semente que quer desabrochar; c) a experiência da fraqueza, na qual estamos conscientes da nossa fragilidade, ignorância e pecado, constitui-se o terreno fértil para a compreensão do próprio Deus e da sua graça. E acho tudo isso fantástico. Coisa de Deus!
O reencontro com a graça
Se me fosse permitido falar um pouco mais da graça de Deus, eu voltaria a afirmar a nossa impossibilidade de atingi-la, de compreendê-la, de sistematizá-la. Só é possível começar a “beliscar” a compreensão da graça de Deus quando se aceita que nada se sabe sobre ela. A graça só é experimentada como sendo de graça, e não como mérito, esse grande inimigo da graça de Deus. E essa é a grande tentação religiosa: a salvação pelas obras.
A salvação pela graça passa a ser importante à medida que se percebe o quanto se está distante dela e quão profundamente se carece dela. Como expresso em tantas e tão diferentes igrejas hoje, precisamos voltar a falar sobre a importância da graça de Deus e sobre a realidade da justificação pela fé. Não, em primeiro lugar, como elemento de testemunho, mas como sinal de conversão. A tradição da Reforma ganha em relevância quando ela se volta para dentro, reformando a própria Igreja. E não é disso que estamos precisando hoje?
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