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- 03 de maio de 2016
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“Dom Quixote” e a leitura
No dia 22 de abril, completaram-se 400 anos da morte de Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), autor do aclamado “Dom Quixote de La Mancha”, o principal escritor espanhol e um dos mais importantes da literatura mundial.
A propósito da data, disponibilizamos a seguir “O Exercício da Leitura em Dom Quixote”, de Gladir Cabral, publicado na seção “Arte e Cultura”, da edição de maio da revista Ultimato.
Confira o artigo do Gladir abaixo e depois siga o conselho de Nélida Piñon: leia “Dom Quixote”!
“Vá direto à fonte. Não perca tempo com livrinhos vagabundos. Após milhões de anos, conseguimos o quinto dedinho da mão, fizemos coisas espantosas e cruéis. Somos um milagre. Podemos perder tempo com banalidade?”.
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O exercício da leitura em “Dom Quixote”
Em ensaio sobre a importância da leitura dos clássicos da literatura, Ítalo Calvino afirma, entre várias teses, que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. A obra “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, confirma plenamente essa afirmação. Após mais de quatrocentos anos da publicação, o livro continua falando coisas, dialogando com seus leitores, provocando risos e reflexões sobre a realidade e a vida.
Entre tantos temas que a obra desenvolve, “Dom Quixote de La Mancha” trata do fenômeno da leitura e de sua prática na sociedade humana. Documento importante sobre a história da leitura, a obra fala da aceitação da literatura popular no período renascentista. Entre os vários gêneros literários que se tornaram populares na época estão os romances de cavalaria, resquícios e sonhos de um mundo medieval que naquela altura já não eram mais possíveis. A obra de Cervantes celebra essa tradição, ao mesmo tempo em que a ironiza e a revisa. Em várias passagens do livro, discute-se se o papel da literatura seria apenas “deleitar” ou “ensinar”. Cruzando dualismos reducionistas, Cervantes mostra que, a partir de um gênero popular, é possível propor questões profundas sobre a vida e a arte.
Outro aspecto interessante do livro é que ele propõe uma discussão sobre ficção e realidade, sugerindo que a literatura permite o desvelamento do caráter ficcional da realidade. Ao abandonar sua cômoda (e medíocre) realidade para buscar as aventuras de um cavaleiro andante, Dom Quixote deseja intensamente ressignificar sua vida. Por meio das leituras de sua vasta biblioteca, ele reconstrói a própria identidade. Vida é narrativa, é história que se conta e que se tece no dia a dia. Momento crítico é aquele em que o herói é derrotado em seu próprio mundo ficcional. Desenganado, recupera a sanidade ao final da história, volta à razão para, simplesmente, morrer e enfim adentrar os portais da realidade perante a qual tudo o mais é sonho.
Esse é um livro sobre a condição humana, sua fragilidade total, sua busca incessante por significado e ventura, sua situação ridícula e ao mesmo tempo admirável, sua nobreza e seu desvario. Sobressalta aos olhos a incompletude da existência, o modo como o herói precisa de Sancho Pança, seu fiel escudeiro, a tal ponto que é impossível conceber Dom Quixote sem o companheiro. O idealismo do “cavaleiro da triste figura” precisa ardentemente da sobriedade simples e chã de Sancho Pança. Isso aponta para o caráter dialogal da vida humana. Somos feitos para o outro, em cooperação com o outro. Somos seres feitos para a relação, para o relacionamento.
Ao final, o herói que volta de suas aventuras não é o mesmo que saiu. Chegando à pequena vila de La Mancha, Dom Quixote, “derrotado pelos braços dos outros, retorna vencedor de si mesmo” (Quixote, p. 993). Assim, o “desocupado leitor” da obra de Cervantes chega ao final da leitura transformado, diferente do que era, quando começou as primeiras linhas.
• Gladir Cabral é pastor, músico e professor de letras na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Acompanhe o seu blog pessoal.
Leia também
400 anos de Cervantes (site oficial do Governo da Espanha)
Pintura: Honoré Daumier. 1808-1879. Paris. Don Quichotte et Sancho Pansa.
A propósito da data, disponibilizamos a seguir “O Exercício da Leitura em Dom Quixote”, de Gladir Cabral, publicado na seção “Arte e Cultura”, da edição de maio da revista Ultimato.
Confira o artigo do Gladir abaixo e depois siga o conselho de Nélida Piñon: leia “Dom Quixote”!
“Vá direto à fonte. Não perca tempo com livrinhos vagabundos. Após milhões de anos, conseguimos o quinto dedinho da mão, fizemos coisas espantosas e cruéis. Somos um milagre. Podemos perder tempo com banalidade?”.
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O exercício da leitura em “Dom Quixote”
Em ensaio sobre a importância da leitura dos clássicos da literatura, Ítalo Calvino afirma, entre várias teses, que “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”. A obra “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, confirma plenamente essa afirmação. Após mais de quatrocentos anos da publicação, o livro continua falando coisas, dialogando com seus leitores, provocando risos e reflexões sobre a realidade e a vida.
Entre tantos temas que a obra desenvolve, “Dom Quixote de La Mancha” trata do fenômeno da leitura e de sua prática na sociedade humana. Documento importante sobre a história da leitura, a obra fala da aceitação da literatura popular no período renascentista. Entre os vários gêneros literários que se tornaram populares na época estão os romances de cavalaria, resquícios e sonhos de um mundo medieval que naquela altura já não eram mais possíveis. A obra de Cervantes celebra essa tradição, ao mesmo tempo em que a ironiza e a revisa. Em várias passagens do livro, discute-se se o papel da literatura seria apenas “deleitar” ou “ensinar”. Cruzando dualismos reducionistas, Cervantes mostra que, a partir de um gênero popular, é possível propor questões profundas sobre a vida e a arte.
Outro aspecto interessante do livro é que ele propõe uma discussão sobre ficção e realidade, sugerindo que a literatura permite o desvelamento do caráter ficcional da realidade. Ao abandonar sua cômoda (e medíocre) realidade para buscar as aventuras de um cavaleiro andante, Dom Quixote deseja intensamente ressignificar sua vida. Por meio das leituras de sua vasta biblioteca, ele reconstrói a própria identidade. Vida é narrativa, é história que se conta e que se tece no dia a dia. Momento crítico é aquele em que o herói é derrotado em seu próprio mundo ficcional. Desenganado, recupera a sanidade ao final da história, volta à razão para, simplesmente, morrer e enfim adentrar os portais da realidade perante a qual tudo o mais é sonho.
Esse é um livro sobre a condição humana, sua fragilidade total, sua busca incessante por significado e ventura, sua situação ridícula e ao mesmo tempo admirável, sua nobreza e seu desvario. Sobressalta aos olhos a incompletude da existência, o modo como o herói precisa de Sancho Pança, seu fiel escudeiro, a tal ponto que é impossível conceber Dom Quixote sem o companheiro. O idealismo do “cavaleiro da triste figura” precisa ardentemente da sobriedade simples e chã de Sancho Pança. Isso aponta para o caráter dialogal da vida humana. Somos feitos para o outro, em cooperação com o outro. Somos seres feitos para a relação, para o relacionamento.
Ao final, o herói que volta de suas aventuras não é o mesmo que saiu. Chegando à pequena vila de La Mancha, Dom Quixote, “derrotado pelos braços dos outros, retorna vencedor de si mesmo” (Quixote, p. 993). Assim, o “desocupado leitor” da obra de Cervantes chega ao final da leitura transformado, diferente do que era, quando começou as primeiras linhas.
• Gladir Cabral é pastor, músico e professor de letras na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). Acompanhe o seu blog pessoal.
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400 anos de Cervantes (site oficial do Governo da Espanha)
Pintura: Honoré Daumier. 1808-1879. Paris. Don Quichotte et Sancho Pansa.
É pastor, músico e professor de letras na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). É autor, em parceria com João Leonel, do e-book O Menino e o Reino: meditações diárias para o Natal. Acompanhe o seu blog pessoal.
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Site: http://ultimato.com.br/sites/gladircabral/
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