Opinião
- 16 de julho de 2019
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A voz da criação
A música cristã contemporânea e a questão ambiental
Por Gladir Cabral
O velho poeta cantava em tempos passados: “Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste. Eis o mar, imenso e vasto. Nele vivem inúmeras criaturas, seres vivos, pequenos e grandes. Nele passam os navios, e também o Leviatã, que formaste para com ele brincar” (Salmo 104:24-6). Numa tradução livre, eu preferiria cantar: “Nele passam os navios, e também a baleia jubarte, que formaste para com ela brincar”. Os salmos falam de um Deus criador que se alegra com suas criaturas, e cujo prazer está em relacionar-se com elas. Os salmos revelam o impacto que a contemplação produz no olhar do artista, seus olhos abertos perante a realidade que o cerca, seus ouvidos atentos à voz da criação.
A música cristã contemporânea precisa reverberar mais a sensibilidade ambiental presente no livro dos Salmos. Há ali profundo material para reflexão, experimento e labor estético e teológico. Já há muitas canções que falam da natureza e a colocam como tema central, e esses cânticos precisam ser conhecidos e ouvidos com mais atenção. A lista a seguir não é exaustiva nem alcança todos os gêneros musicais. Ela está mais voltada para músicas que buscam conectar-se com a cultura popular brasileira e talvez possam ser chamadas de música popular brasileira cristã, embora o nome não seja rigoroso.
Ao ouvir várias canções, percebi que algumas utilizam a natureza como metáfora da experiência espiritual. Nelas o foco temático é algum aspecto da relação com Deus, e as referências à natureza são utilizadas para colorir esses temas. É o caso de muitas canções de adoração escritas por Jorge Camargo, cheias de ternura e gratidão pela natureza, muita poesia e sensibilidade humana. É o caso da canção “Ajuntamento”, em que o poeta ora a Deus: “Faz teu rio de paz correr no meio / Destes que com fé vêm bendizer-te”. Ou da andorinha da canção “Teus Altares”, que encontrou no templo de Jerusalém um “ninho para si” assim como o crente encontra os altares do Senhor. É também o caso da canção “Terra Boa”, de Glauber Plaça, que liga o Salmo 1 com os frutos do Espírito citados no livro de Gálatas. Belíssima poesia, cheias de imagens vívidas e naturais. “Sou como árvore plantada junto ao ribeiro das águas / Que em seu tempo, na boa estação, frutificará / Campos de terras molhadas, por este rio são regadas / Onde eu firmo as raízes no chão que me alimentará”. Toda a linguagem é repleta de referências às forças da natureza.
Há, porém, muitas canções em que a natureza aparece como tema principal. É o caso da de “Sabiá”, de Carlinhos Veiga, que fala da ave que vem acordá-lo todos os dias para adorar ao Criador. O poeta é interpelado pelo sabiá. É a natureza chamando as pessoas para adorar. Na canção “Terra”, de Carlinho Veiga, a Terra é apresentada como mãe, irmã e amiga. Há uma relação de parentesco com o planeta. O artista não se vê como separado dele, mas como seu descendente e ao mesmo tempo seu progenitor. A semente é plantada no chão e brota como num milagre. Entretanto, ali também cresce a injustiça, a exploração do trabalho humano, o choro, o lamento. A canção ensina a lamentar e perceber a violência que se faz contra a criação.
A canção “Maracatu do Aratu” (Carlinhos Veiga e Rogério Pinheiro), com arranjo bem regional com sanfona, violão e percussão, celebra a Mata Atlântica brasileira. A voz do poeta descreve o aratu, um pequeno caranguejo que habita as regiões de mangue, também chamado de aratupeba, marinheiro, carapinha. Em certa altura da canção, o poeta dialoga com o aratu e tenta avisá-lo da ameaça do pescador. E avisa: “Sai, corre, aratu!”. O poeta parece reconhecer a ameaça que os seres do mangue sofrem e tenta alertá-los.
A canção “Todas as manhãs”, de Silvestre Khulmann, uma das mais conhecidas e tocantes canções que mostram a vida do homem do campo, um poema bucólico pintado pelo Criador. O homem do campo reconhece que sua vida depende do Deus que faz despertar o dia e que o enche de amor ternura. “Uma toada fora de moda, uma viola, seu desabafo, louvor a Deus, o seu amigo que desperta o dia e com amor sacia”. A canção toda é um poema de paz que celebra a importância da presença de Jesus: “Sem Ele o ganta atrasado, passarim pia desafinado, o colorido parece acinzentado e o coração fica sempre amargurado”. Mensagem singela e que leva a uma profunda meditação sobre a harmonia da vida natural e espiritual.
Carlinhos Veiga escreveu “Acuípe” e celebra a criação de Deus, o grande artista. Uma celebração da beleza do Criador e que “rege a dança dos coqueiros”. A canção fala de paz, consolo e contemplação. Ela também faz pensar que nossa vida é quadro inacabado e que está sendo continuamente trabalhado pelo grande Artista.
A mesma vontade de diálogo já se percebia na canção “A Andorinha”, de João Alexandre, lá dos anos 1980, em que o poeta mostra o quanto a ave, em sua liberdade, alegra o coração de Deus. Ela abre caminhos e desenhos no ar. Canta sua liberdade. E Deus dialoga com ela. A andorinha é chamada de “minha companheira”. Há o reconhecimento do carinho de Deus pelos seres que criou. Ao mesmo tempo, há o reconhecimento de uma ameaça, pois “o mal é tremendo”. Por isso a voz avisa para que a andorinha fuja.
Carlinhos Veiga escreveu outra canção belíssima intitulada “Navegando o Araguaia”, na qual mistura memórias da infância com o reconhecimento da realidade atual em relação ao meio ambiente. A canção reflete a cultura do Cerrado, a beleza do rio e das plantas, a abundância e peixes, o fenômeno como a piracema, os tucunarés, os jacarés e as sucuris. É um chamamento à proteção ao meio ambiente e uma denúncia aos efeitos das várias agressões ao meio ambiente do Cerrado. Os povos indígenas também estão presentes e são citados na canção: xavantes, caiapós, carajás. Com eles, precisamos aprender a cuidar da terra e do rio.
Rubão é outro grande artista que já escreveu muitas canções sobre o meio ambiente. Entre elas, destaco a canção “Amazônia”, que denuncia o descaso, a violência e o preconceito que grassam pelo interior do Brasil. Em ritmo amazônico e percussivo a canção também faz um chamamento à resistência, a “proteger a Amazônia”, a “verde canção”. Complemetando, há também a canção “A caminho do mar”, que segue o caminho do rio em direção ao mar, à imensidão profunda. A canção segue o curso das águas e o fluxo dos peixes. É uma canção de celebração, de quem sabe que não está sozinho. Muita poesia, muita alegria, uma beleza de linguagem de Salmos. Saber que Deus foi quem desenhou o curso dos rios já nos deveria garantir o respeito pela natureza.
Outra canção impressionante de Carlinhos é “Aranherê”, que traz aos ouvidos e corações os sons da mata do Tumbá, o voo do pequeno colibri. A canção traz um lemento pelo fim da mata, celebra a beleza da pele indígena, e sem os povos da floresta a cabaça chora de dor, “dorme o girassol e perde a manhã a cor”. O passarinho deixou seu ninho e se embrenhou na mata que ainda resta, “raro verde”. Ao final, ouve-se uma poesia incidental em língua indígena: “O xim xam xam nairamam Korinkomam”, que quer dizer em língua dos índios da nação yscariana: Deus é bom! Deus é bom! Desde o nascer do sol até o pôr-do-sol”.
Quero terminar esta pequena lista com a canção “Olho dágua do casado”, um xote de Roberto Diamanso. Essa canção também fala do cuidado com o mundo, do trabalho humano, da responsabilidade mútua pela vida. Entre outras coisas, ela diz: “Somos casa do nosso Mestre / Causa de estarmos contentes / E é nosso dever de casa / Cuidar da casa da gente”.
E aqui encerro esta pequena lista, um roteiro inicial. Há muitas outras canções não citadas, autores que não entraram aqui. Quem sabe em outro momento poderei continuar estas breves reflexões.
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» O homem e a terra: quem precisa de quem? | João Leonel
É pastor, músico e professor de letras na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc). É autor, em parceria com João Leonel, do e-book O Menino e o Reino: meditações diárias para o Natal. Acompanhe o seu blog pessoal.
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