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Por Escrito

Um raio de luz

Por Délio Porto
 
A pintura é capaz de narrar sentimentos e preocupações, conectar ideias e memórias. Pode contar histórias que apenas o observador reconhece. Compartilho aqui o que me veio à mente a partir da observação de algumas pinturas. São comentários livres, sem a preocupação com a referência bem informada quanto ao conjunto da obra e ao estilo do artista. A escolha das pinturas foi aleatória, circunscrita aos autores que me chamaram a atenção no momento. 
 
Estas foram reunidas sob o tema da luz, que é bastante óbvio para o observador leigo.
 

Três Barcos, 1903
Joaquin Sorola, pintor espanhol
 
GERAÇÕES
Três barcos de pesca guardam relação com três mulheres a caminho do local de descarga do pescado. Agora que os barcos retornaram, está tudo bem. A luz intensa, a brisa tranquila e a conversa entre amigas representam uma pausa nas agruras do dia. São também três gerações que se reconhecem no caminho da vida e no limite da linha d"água. 

Paisagem do recôncavo de Fique, 1957
Rafael Zabaleta, pintor espanhol
 
SE OS OLHOS VEEM
Estava cansada daquele confinamento, passando os dias a olhar as pontas dos pés. De manhã resolveu subir a montanha. Carregava dentro de si um fastio, seu quinhão de trevas. Possuía olhos bons. Viu a luz. Viu as cores. “Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será luminoso”. Mt 6.22

Rua do Cairo, 1873
Konstantin Makovsky, pintor russo
 
FISSURAS
A entrada do sol conduz o espectador ao fundo da ruela, onde o artista revela a intensa atividade do dia. Povo simples e vida simles, mas a cena ganha grandiosidade com as paredes altas. As construções são marcadas por alvenarias expostas, rebocos fissurados, pinturas calcinadas, madeiras intemperizadas, remates decorativos desgastados e pórticos esquecidos. Os habitantes, aplicados aos seus afazeres e aos laços de convívio, parecem imunes à idade das edificações e às patologias que as assediam.

Em família, 1859
Fyodor Bronnikov, pintor russo
 
RECÔNDITO
Uma família surpreendida no interlúdio. Cena de recato, preguiça e vida simples. Os laços de família foram enaltecidos pelo artista, que preferiu um cenário sem o luxo dos palácios. A parreira, a vista dos campos e o dia luminoso da Itália, onde o autor viveu grande parte da sua vida, fornecem a ambientação para o momento.

Crocodilos Lamacentos, 1917
John Singer Sargent, pintor americano
 
SUPERAÇÃO
Simples animais em repouso, retratados nesta aquarela com requinte de cores, onde a cena surge quase a partir dos contrastes. As árvores assemelham-se a lembranças, mas estão presentes no reflexo da água. O tema surge de uma descontração do artista, não da exigência de uma encomenda. Por vezes, um artista pinta só pela expectativa de superar algum descontentamento pessoal e é capaz de fazer algo belo e excelente a partir de jacarés enlameados e fedorentos.

Acima da paz eterna, 1894
Isaac Levitan, pintor russo
 
REAÇÃO
O horizonte anuncia o infindável, em contraste com a colina escarpada. O brilho intenso do lago avança e lhe faz o cerco, enquanto a igreja, com sua torre encimada pela cruz, defende o humilde cemitério, colocado como um memento mori. O título da obra convida o observador a conjecturar sobre o que estaria acima da paz eterna. Pode ser uma referência ao ponto de observação do artista, ou ao crepúsculo, que prenuncia a inevitabilidade da noite e do recolhimento passivo. Ou, ainda, à brecha de luz no horizonte, que cobra uma reação urgente de proveito, posto que prestes a se fechar. O senso de humor do artista, um mestre da paisagem, deixa esta decisão para o observador.

Necrópole Florestal, 1893
Ivan Shishkin - pintor russo
 
CONSOLO
Uma cobertura verde recobre os troncos caídos como sudários que recobrem heróis tombados. Homenagem dos vivos no feitio de matéria viva. As árvore à volta, enlutadas e incapazes de expressar seus sentimentos, apenas desfrutam do consolo silencioso dos raios de sol. O ciclo da vida segue o seu rumo e apenas aos humanos foi dado o poder de se revoltarem contra ele.

Garganta Darial, 1862
Ivan Aivazovsky, pintor russo
 
LUAR
Resta pouco tempo para os viajantes quando desce a noite e uma réstia de luz ilumina o presente. O futuro, ainda luminoso e distante, indica o destino final. As opiniões dos peregrinos se dividem: para alguns, há luz suficiente para prosseguir com confiança, outros, porém, entrevam. O artista molda a realidade pelo equilíbrio de luzes e sombras. Elas explicam até os espírito humano: “Se não houvesse obscuridade, o homem não sentiria sua corrupção. Se não houvesse luz, o homem não esperaria remédio” (Blaise Pascal, 1623-1662).


Nota
Com exceção da pintura de © Rafael Zabaleta, todas as imagens estão em domínio público e disponíveis nas plataformas Wikimedia e WikiArt.

• Délio Porto é engenheiro e reside em Minas Gerais. Siga o autor no twitter.

 

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