Opinião
- 16 de outubro de 2020
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Reformar é restaurar – e não estamos falando de religião ou moralidade
Por Luiz Fernando dos Santos
>> Conheça o livro A Reforma – O que você precisa saber e por quê, de John Stott e Michael Reeves
“Restaura-nos, ó Deus! Faze resplandecer sobre nós o teu rosto, para que sejamos salvos” (Sl 80.3).
“Restaura-nos para ti, Senhor, para que voltemos; renova os nossos dias como os de antigamente” (Lm 5.21).
Estamos celebrando neste mês de outubro os quinhentos e três anos do início do movimento de Reforma da igreja. A Reforma não foi um evento único, estático no tempo, mas um movimento centrífugo que foi crescendo com o passar do tempo e alcançando homens, comunidades, cidades, países e até continentes. Identificamos esse movimento, com muita justiça, a nomes de celebridades como Lutero, Zwinglio, Calvino, Bucer, Farel, Beza, Knox e etc. Entretanto, o que os livros não registram com precisão e nem foi possível identificar é a imensa multidão de anônimos, camponeses, donas de casa, artesãos, padres, monges, freiras, mercadores, aristocratas e até mendigos que foram tocados e transformados pelos ventos reformadores.
Não se tratava apenas de uma nova ideia, ainda que revolucionária, sobre religião ou moralidade. Mas, de se fazer uma experiência desconcertante do poder da Palavra de Deus pregada, ensinada, cantada. A Reforma proporcionava, antes de qualquer coisa, um encontro pessoal do pecador com a graça de Deus manifestada em Cristo e revelada nas Escrituras. Não era uma reforma exterior, dos costumes, de moralidade e do jeito de ‘ir à missa’. Não era uma mudança de época, ainda que a renascença estivesse presente, mas a restauração de um projeto divino encoberto, acrescido, desfigurado e quase irreconhecível pelas demãos de tinta da tradição e da projeção do coração idólatra que busca sempre um culto de si mesmo. A Reforma protestante foi uma (é) uma espécie de oficina de restauração de obras de artes. O restaurador é o Espírito Santo, a ferramenta usada, as Escrituras, o autor o Bendito Deus Triúno, a obra em questão, o homem e consequentemente, a criação.
Celebrar, pois, os quinhentos e três anos da Reforma, sobretudo nesses dias de pandemia, onde muita coisa feia, deformada e corrompida veio à tona, inclusive na vida pessoal de muitos crentes, significa encetar um projeto de restauração da vida como um todo ao seu projeto original. A carta de Paulo aos Efésios diz: “Pois somos feitura dele” (Ef 2.10), isto é, somos obra de suas mãos, a mais esplendorosa e magnífica obra de suas obras. Temos alguma coisa de nosso autor que nos distingue de todas os seus feitos, somos sua imagem e semelhança, por isso mesmo, a sua ‘Opus Magna’. Contudo, assim como acontece com as obras de artistas humanos geniais, Picasso, Da Vinci, Kandinsky, Michelangelo, a exposição a micro-organismos, a ação do tempo, questões de pressão e temperatura incompatíveis e, claro, a intromissão de inábeis restauradores e os falsificadores, comprometem a beleza original nascida na mente do autor deixando de fazer justiça ao seu criador, igualmente aconteceu e acontece, com o homem.
Desde a Queda, estamos sofrendo esses processos todos de desfiguração da obra original. O pecado, a corrupção do nosso coração e do mundo, as investidas de Satanás, as falsas religiões, uma igreja e um evangelho deturpados e usurpados, todas essas coisas concorreram para que não só a beleza da glória de Cristo se empalidecesse em nós, mas também o plano original ficou comprometido, esquecido ou mesmo descartado. Fomos “projetados” para viver a vida intencional e intensamente glorificando a Deus. Recebemos o privilegiadíssimo encargo de representar a Deus em toda a criação e fazer espargir sobre ela algo da glória, do amor, da santidade e da beleza do Criador. Deveríamos fazer isso cultivando o jardim, formando famílias santas, gerando santos para a adoração, estabelecendo instituições que conservassem e promovessem a justiça, a verdade e a paz entre os homens e realizando boas obras para que o autor recebesse o devido reconhecimento e toda a glória. Não fossem as Escrituras Sagradas, nada saberíamos desse plano original e mais, não teríamos a consciência dessa nossa dignidade criatural de sermos ‘feitura’ dele, criados para um relacionamento de amor com ele, para representá-lo na criação.
Por isso, a melhor maneira de celebrar os quinhentos e três anos da Reforma Protestante é fugir um pouco do esquema do simples memorialismo saudosista e ufanista e desejar em nossa vida, já salvos em Cristo, mas com muitas áreas ainda que apresentam avarias estruturais e a presença de agentes danosos, que o Espírito use a ferramenta da Palavra com poder e graça, para restaurar em nossa humanidade a beleza original pretendida pelo Pai. A beleza de uma vida santa, humilde, adorante, missionária, generosa e que em tudo faça o Pai ser glorificado e amado. Graças a Deus que o Espírito e a Palavra possuem em si o arquétipo desse projeto, que é Cristo Jesus em sua humanidade glorificada. É somente quando nos assemelhamos a ele é que a nossa existência cumpre o seu propósito original. Que o Espírito e a Palavra trabalhem em nós e nos restaure.
Imagem: Ferdinand Pauwels, Public domain, via Wikimedia Commons
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Luiz Fernando dos Santos (1970-2022), foi ministro presbiteriano e era casado com Regina, pai da Talita e professor de teologia no Seminário Presbiteriano do Sul e no Seminário Teológico Servo de Cristo.
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