Opinião
- 15 de março de 2018
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Qual o papel da antropologia em missões?
Por André Oliveira de Souza
A antropologia não pode ser reduzida a uma definição somente etimológica (antropologia = estudo do homem), pois se trata de uma ciência mais complexa do que o significado da palavra seria capaz de traduzir.
É difícil identificar na história o período exato do surgimento da antropologia. Reportamos seus primórdios nos estudos evolucionistas de Morgan, Frazer e Tylor, quando a antropologia começa a se estabelecer como ciência. Porém, muitos anos antes deles, cerca de 450 a.C, Heródoto, conhecido como pai da História, já se interessava pelo estudo do “outro”, da alteridade, objeto de estudo da antropologia. Em um período aproximado temos os filhos de Issacar que eram considerados “conhecedores da sua época.” (1 Cr. 12:32). Jesus, por sua vez, nos dá clara demonstração de análise e prática antropológica (Mt. 9:35-38; Jo. 4:1-42). O apóstolo Paulo também o faz em Listra (At. 14:8-20) e em Atenas (17:16-34). É certo que estes exemplos não mostram a antropologia como ciência propriamente dita, mas nos dá um bom exemplo da importância da antropologia e a prática missionária. Podemos observar que antropologia e missões sempre caminharam lado a lado, e até arriscamos dizer que, em certo sentido, a antropologia é devedora do trabalho missionário, já que boa parte do material colhido pelos antropólogos evolucionistas eram anotações de campo de missionários.
Após os evolucionistas, temos outros nomes e escolas antropológicas. Dentre os mais importantes no desenvolvimento da antropologia como ciência, podemos citar:
Do culturalismo americano, Franz Boas (1858 – 1942). Ele rompe definitivamente com o evolucionismo reduzindo-o a uma teoria fracassada, embora tenha sua importância histórica. Boas propunha que para conhecer a cultura de um povo era necessário conhecer sua história (particularismo histórico) e relativizar.
>> Missiologia: o que é? Para que serve? <<
Antropólogo importante da escola funcionalista inglesa, Bronislaw Malinowski (1884 – 1942). Entre suas principais contribuições estão a introdução do trabalho de campo do antropólogo e o método da observação participante. Segundo Malinowski (1978, p. 20), os princípios metodológicos podem ser aplicados em três direções: Possuir objetivos genuinamente científicos; viver entre os nativos sem depender de outros não nativos (observação participante); e, aplicar métodos especiais de coleta, manipulação e registro da evidência. Parafraseando Malinowski, “toda a cultura e sua rede social estão incorporadas ao mais elusivo dos materiais: o próprio ser humano”. (MALINOWSKI 1978, p. 24).
Antropólogo e fundador da escola estruturalista francesa: Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009). Sua percepção da cultura humana estruturada em códigos naturais foi uma das transformadoras descobertas antropológicas para a compreensão padrão de pensamento e organização social do ser humano.
Por fim, Clifford Geertz (1926 – 2016), antropólogo estadunidense, propôs uma antropologia simbólica e hermenêutica (interpretativa). Para ele, os símbolos de um fenômeno cultural poderiam ser observados e, assim como um livro, seriam interpretados revelando o significado por trás dos fenômenos culturais.
Com base nas ideias dos autores mencionados neste breve panorama histórico, poderíamos definir a antropologia como: “o resultado da aglutinação histórica de impressões, fatos e ideias sobre a identidade do homem disperso em seus diferentes ajuntamentos sociais.” (LIDÓRIO, 2014, p. 35).
Significa que, quando falamos em antropologia missionária, não estamos nos referindo a uma antropologia bíblica ou teológica, mas sim “ao estudo derivado do processo de utilização dos elementos antropológicos aplicados ao ambiente de interculturalidade envolvendo ações missionárias” (LIDORIO 2001, p. 15) e que tem como objetivo “desenvolver relações interpessoais equilibradas e comunicação inteligível num ambiente que promove a partilha das verdades de Cristo e o envolvimento com a sociedade abordada e suas respectivas virtudes e desafios” (LIDORIO, 2011, p. 19-20).
>> Evangelização ou Colonização? – O risco de fazer missão sem se importar com o outro <<
Temos assim, dois aspectos fundamentais. O primeiro é que a antropologia missionária lança mão da antropologia como ciência a partir de si mesma e, em segundo que, a partir da análise científica construímos pontes assertivas de comunicação que sejam relevantes à cultura e fiel ao Evangelho. Significa que a antropologia oferece as teorias e metodologias de compreensão cultural, a missiologia oferece a aplicação dos resultados adquiridos pela análise antropológica e a teologia bíblica responde, com a Palavra de Deus, a cada cultura adequadamente conforme seu contexto. De certa forma, a antropologia faz com a cultura aquilo que a linguística faz com a língua. Para a comunicação fiel e inteligível do Evangelho em outra língua é necessário que a língua seja aprendida e que os achados sejam avaliados para que se entenda como comunicar, naquela língua, a verdade do Evangelho de Deus, que foi preparada pelo próprio Deus para todas as línguas e tempos. De igual modo, é necessário que a cultura seja aprendida e analisada, para que a comunicação do Evangelho seja teologicamente fiel e culturalmente inteligível.
Quais as contribuições da antropologia missionária?
Segundo Hiebert (1999, p. 15-16), a antropologia missionária: (1) Faz compreender situações transculturais; (2) Esclarece tarefas missionárias como a tradução da Bíblia e aquisição de uma nova língua; (3) Auxilia a compreensão dos processos de conversão, incluindo a mudança social; (4) Ajuda a comunicar o evangelho de forma relevante para aquele que o ouve; (5) Constrói relacionamentos interculturais criando pontes de compreensão e comunicação.
Acredito também que a antropologia, além de fazer compreender situações transculturais, faz com que compreendamos a nossa própria cultura. Houve um tempo em que a antropologia era vista apenas como estudo de povos “exóticos” ou tribais, mas hoje temos uma vasta gama de antropólogos que tem estudado sua própria cultura e o espaço urbano, trabalho relegado no passado mais aos sociólogos. Então, quando pensamos em antropologia missionária, podemos ampliar sua contribuição não somente ao contexto transcultural, mas também ao ambiente cultural próprio do missionário pesquisador. De certa forma também chamar esta vertente de “antropologia missional”*, aquela aplicada na própria cultura para a plantação de igrejas, discipulado, evangelismo, ações sociais etc.
A antropologia missionária (no sentido da tarefa) e missional (no sentido da identidade da igreja), nesse caso, deve também contribuir para nos ajudar a ver e melhor conhecer o outro; escutá-lo, conhecendo seus valores e pensamento; respeita-lo como ser humano, nosso próximo; comunicar melhor, com relevância e simpatia; e escrever, produzindo materiais para reflexão e direcionamento.
>> A cultura, esta nossa inimiga <<
É preciso compreender que a cultura não é uma barreira para a evangelização, mas sim o contexto, de onde podemos entender quais as perguntas e crises, ou seja, como o ser humano naquele ambiente experimenta as crises produzidas pelo pecado; e, a partir disso, apresentar o Evangelho que consola, confronta e transforma o homem, bem como sua cultura.
O objetivo da antropologia missionária pode ser percebido a partir dos pressupostos Malinowskianos. Primeiro, usar a antropologia missionária como ciência a partir do legado antropológico e com claro objetivo científico; segundo, viver em uma determinada cultura sem depender de outros não nativos para o caso transcultural, bem como viver em sua própria cultura sabendo fazer os links entre o Evangelho e a cultura contemporânea; e, terceiro, aplicar métodos de coleta de dados, manipulação, registro e interpretação dos significados que estão por trás de cada fenômeno cultural. Neste sentido, identificamos uma das principais tarefas da antropologia missionária: despertar o leitor, estudante, professor, líder de missões e principalmente o missionário para compreender a importância do estudo antropológico de modo intencional e objetivo. E, partir disso, visualizar os benefícios e desdobramentos práticos que a antropologia pode oferecer para o aprendizado cultural, bem como para uma comunicação do Evangelho de forma relevante, inteligível ao contexto e fiel às Escrituras – vivendo (testemunho de presença) e anunciando (testemunho de proclamação) a verdade de Deus em sua integridade.
Notas
* Usamos o termo missional conforme Michael Goheen. A igreja missional na Bíblia: Luz para as nações.
BOAS, Franz. Antropologia cultural. Zahar. Rio de janeiro, 2004.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2011.
GOHEEN, W. Michael. A Igreja missional na Bíblia: Luz para as nações. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014.
LIDORIO, R. Introdução à Antropologia Missionária. São Paulo: Edições Vida Nova, 2001.
_____. Comunicação e Cultura. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014.
MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guine melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1978 ( 2.ª edição).
• André Oliveira de Souza é missionário e antropólogo.
Imagem ilustrativa: Photo by Trevor Cole on Unsplash.
Leia mais
> A Missão Cristã no Mundo Moderno
> Missões: reducionismo, falsas dicotomias e novos desafios
> Uma visão antropológica sobre a prática do infanticídio indígena no Brasil
A antropologia não pode ser reduzida a uma definição somente etimológica (antropologia = estudo do homem), pois se trata de uma ciência mais complexa do que o significado da palavra seria capaz de traduzir.
É difícil identificar na história o período exato do surgimento da antropologia. Reportamos seus primórdios nos estudos evolucionistas de Morgan, Frazer e Tylor, quando a antropologia começa a se estabelecer como ciência. Porém, muitos anos antes deles, cerca de 450 a.C, Heródoto, conhecido como pai da História, já se interessava pelo estudo do “outro”, da alteridade, objeto de estudo da antropologia. Em um período aproximado temos os filhos de Issacar que eram considerados “conhecedores da sua época.” (1 Cr. 12:32). Jesus, por sua vez, nos dá clara demonstração de análise e prática antropológica (Mt. 9:35-38; Jo. 4:1-42). O apóstolo Paulo também o faz em Listra (At. 14:8-20) e em Atenas (17:16-34). É certo que estes exemplos não mostram a antropologia como ciência propriamente dita, mas nos dá um bom exemplo da importância da antropologia e a prática missionária. Podemos observar que antropologia e missões sempre caminharam lado a lado, e até arriscamos dizer que, em certo sentido, a antropologia é devedora do trabalho missionário, já que boa parte do material colhido pelos antropólogos evolucionistas eram anotações de campo de missionários.
Após os evolucionistas, temos outros nomes e escolas antropológicas. Dentre os mais importantes no desenvolvimento da antropologia como ciência, podemos citar:
Do culturalismo americano, Franz Boas (1858 – 1942). Ele rompe definitivamente com o evolucionismo reduzindo-o a uma teoria fracassada, embora tenha sua importância histórica. Boas propunha que para conhecer a cultura de um povo era necessário conhecer sua história (particularismo histórico) e relativizar.
>> Missiologia: o que é? Para que serve? <<
Antropólogo importante da escola funcionalista inglesa, Bronislaw Malinowski (1884 – 1942). Entre suas principais contribuições estão a introdução do trabalho de campo do antropólogo e o método da observação participante. Segundo Malinowski (1978, p. 20), os princípios metodológicos podem ser aplicados em três direções: Possuir objetivos genuinamente científicos; viver entre os nativos sem depender de outros não nativos (observação participante); e, aplicar métodos especiais de coleta, manipulação e registro da evidência. Parafraseando Malinowski, “toda a cultura e sua rede social estão incorporadas ao mais elusivo dos materiais: o próprio ser humano”. (MALINOWSKI 1978, p. 24).
Antropólogo e fundador da escola estruturalista francesa: Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009). Sua percepção da cultura humana estruturada em códigos naturais foi uma das transformadoras descobertas antropológicas para a compreensão padrão de pensamento e organização social do ser humano.
Por fim, Clifford Geertz (1926 – 2016), antropólogo estadunidense, propôs uma antropologia simbólica e hermenêutica (interpretativa). Para ele, os símbolos de um fenômeno cultural poderiam ser observados e, assim como um livro, seriam interpretados revelando o significado por trás dos fenômenos culturais.
Com base nas ideias dos autores mencionados neste breve panorama histórico, poderíamos definir a antropologia como: “o resultado da aglutinação histórica de impressões, fatos e ideias sobre a identidade do homem disperso em seus diferentes ajuntamentos sociais.” (LIDÓRIO, 2014, p. 35).
Significa que, quando falamos em antropologia missionária, não estamos nos referindo a uma antropologia bíblica ou teológica, mas sim “ao estudo derivado do processo de utilização dos elementos antropológicos aplicados ao ambiente de interculturalidade envolvendo ações missionárias” (LIDORIO 2001, p. 15) e que tem como objetivo “desenvolver relações interpessoais equilibradas e comunicação inteligível num ambiente que promove a partilha das verdades de Cristo e o envolvimento com a sociedade abordada e suas respectivas virtudes e desafios” (LIDORIO, 2011, p. 19-20).
>> Evangelização ou Colonização? – O risco de fazer missão sem se importar com o outro <<
Temos assim, dois aspectos fundamentais. O primeiro é que a antropologia missionária lança mão da antropologia como ciência a partir de si mesma e, em segundo que, a partir da análise científica construímos pontes assertivas de comunicação que sejam relevantes à cultura e fiel ao Evangelho. Significa que a antropologia oferece as teorias e metodologias de compreensão cultural, a missiologia oferece a aplicação dos resultados adquiridos pela análise antropológica e a teologia bíblica responde, com a Palavra de Deus, a cada cultura adequadamente conforme seu contexto. De certa forma, a antropologia faz com a cultura aquilo que a linguística faz com a língua. Para a comunicação fiel e inteligível do Evangelho em outra língua é necessário que a língua seja aprendida e que os achados sejam avaliados para que se entenda como comunicar, naquela língua, a verdade do Evangelho de Deus, que foi preparada pelo próprio Deus para todas as línguas e tempos. De igual modo, é necessário que a cultura seja aprendida e analisada, para que a comunicação do Evangelho seja teologicamente fiel e culturalmente inteligível.
Quais as contribuições da antropologia missionária?
Segundo Hiebert (1999, p. 15-16), a antropologia missionária: (1) Faz compreender situações transculturais; (2) Esclarece tarefas missionárias como a tradução da Bíblia e aquisição de uma nova língua; (3) Auxilia a compreensão dos processos de conversão, incluindo a mudança social; (4) Ajuda a comunicar o evangelho de forma relevante para aquele que o ouve; (5) Constrói relacionamentos interculturais criando pontes de compreensão e comunicação.
Acredito também que a antropologia, além de fazer compreender situações transculturais, faz com que compreendamos a nossa própria cultura. Houve um tempo em que a antropologia era vista apenas como estudo de povos “exóticos” ou tribais, mas hoje temos uma vasta gama de antropólogos que tem estudado sua própria cultura e o espaço urbano, trabalho relegado no passado mais aos sociólogos. Então, quando pensamos em antropologia missionária, podemos ampliar sua contribuição não somente ao contexto transcultural, mas também ao ambiente cultural próprio do missionário pesquisador. De certa forma também chamar esta vertente de “antropologia missional”*, aquela aplicada na própria cultura para a plantação de igrejas, discipulado, evangelismo, ações sociais etc.
A antropologia missionária (no sentido da tarefa) e missional (no sentido da identidade da igreja), nesse caso, deve também contribuir para nos ajudar a ver e melhor conhecer o outro; escutá-lo, conhecendo seus valores e pensamento; respeita-lo como ser humano, nosso próximo; comunicar melhor, com relevância e simpatia; e escrever, produzindo materiais para reflexão e direcionamento.
>> A cultura, esta nossa inimiga <<
É preciso compreender que a cultura não é uma barreira para a evangelização, mas sim o contexto, de onde podemos entender quais as perguntas e crises, ou seja, como o ser humano naquele ambiente experimenta as crises produzidas pelo pecado; e, a partir disso, apresentar o Evangelho que consola, confronta e transforma o homem, bem como sua cultura.
O objetivo da antropologia missionária pode ser percebido a partir dos pressupostos Malinowskianos. Primeiro, usar a antropologia missionária como ciência a partir do legado antropológico e com claro objetivo científico; segundo, viver em uma determinada cultura sem depender de outros não nativos para o caso transcultural, bem como viver em sua própria cultura sabendo fazer os links entre o Evangelho e a cultura contemporânea; e, terceiro, aplicar métodos de coleta de dados, manipulação, registro e interpretação dos significados que estão por trás de cada fenômeno cultural. Neste sentido, identificamos uma das principais tarefas da antropologia missionária: despertar o leitor, estudante, professor, líder de missões e principalmente o missionário para compreender a importância do estudo antropológico de modo intencional e objetivo. E, partir disso, visualizar os benefícios e desdobramentos práticos que a antropologia pode oferecer para o aprendizado cultural, bem como para uma comunicação do Evangelho de forma relevante, inteligível ao contexto e fiel às Escrituras – vivendo (testemunho de presença) e anunciando (testemunho de proclamação) a verdade de Deus em sua integridade.
Notas
* Usamos o termo missional conforme Michael Goheen. A igreja missional na Bíblia: Luz para as nações.
BOAS, Franz. Antropologia cultural. Zahar. Rio de janeiro, 2004.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, RJ: LTC, 2011.
GOHEEN, W. Michael. A Igreja missional na Bíblia: Luz para as nações. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014.
LIDORIO, R. Introdução à Antropologia Missionária. São Paulo: Edições Vida Nova, 2001.
_____. Comunicação e Cultura. São Paulo: Edições Vida Nova, 2014.
MALINOWSKI, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guine melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1978 ( 2.ª edição).
• André Oliveira de Souza é missionário e antropólogo.
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