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- 26 de janeiro de 2017
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Onde as facções não têm vez
A revista Veja visitou a penitenciária onde o conhecido ex-goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes – condenado há 22 de reclusão pelo assassinato da modelo Eliza Samudio –, está preso e carrega as chaves da própria cela. Trata-se da unidade da APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados – em Santa Luzia, nas proximidades de Belo Horizonte. A matéria e a entrevista com o ex-ídolo do Flamengo foram publicadas esta semana.
Ultimato também visitou uma das 43 unidades da APAC no Brasil, na cidade de Itaúna, uma das unidades de destaque no país. Em 2015, o jornalista e fundador da revista Ultimato, pastor Elben César, passou dois dias com os ‘recuperandos’ e até dormiu nos aposentos da APAC. Confira a reportagem do “Mineiro com cara de Matuto”.
O Mineiro com Cara de Matuto na APAC de Itaúna
A ponte que Deus construiu para os criminosos chegarem a ele
Por Elben César
J. K. Rowling, autora da série Harry Potter, diz que “a pior coisa do mundo é o encarceramento”. E o autor da epístola aos Hebreus ordena: “Não se esqueçam daqueles que estão na prisão. Sofram com eles, como se vocês próprios estivessem aprisionados com eles” (13.3).
Por causa dessa passagem bíblica, o Mineiro com Cara de Matuto pediu a ajuda do advogado Antonio Carlos da Rosa Silva Junior, especializado em ciências penais e em direito e relações familiares e autor do livro “Deus na Prisão”, para ser preso por dois dias em uma penitenciária de Juiz de Fora, MG, a mais próxima de sua casa. Porém, Antonio Carlos achou por bem indicar não uma penitenciária, mas a APAC de Itaúna, uma cidade a 85 quilômetros de Belo Horizonte, onde fica a Universidade de Itaúna. APAC é a sigla de Associação de Proteção e Assistência aos Condenados e tem como objetivo a humanização das prisões, sem perder de vista a finalidade punitiva da pena. Seu propósito é evitar a reincidência no crime e oferecer alternativas para o condenado se recuperar.
No dia 3 de novembro de 2014, o Mineiro apertou a campainha da APAC de Itaúna. Logo ao chegar, ele encontrou a voluntária Vera Lúcia, uma extrovertida cadeirante de 64 anos, formada em ciências econômicas, irmã de seis Marias e tia de duas gêmeas idênticas, formadas na Universidade Federal de Viçosa (UFV) e hoje missionárias católicas, uma em Luxemburgo e outra na Polônia. Ela tinha apenas 12 anos quando um caminhão em marcha a ré esmagou suas pernas.
A ala feminina da APAC
O contato que o Mineiro teve com as recuperandas do regime semiaberto foi muito positivo. Depois de ouvi-las, ele contou a história do desabafo de Ana, uma mulher que havia perdido a vontade de comer e tinha o semblante triste antes de chorar amargamente diante de Deus e de clamar a ele por se sentir desesperada com os problemas domésticos. Ele fez questão de frisar que o semblante de Ana não era mais triste depois de sua longa e fervorosa oração (1Sm 1.18). Depois, orou com elas e por elas.
Quase todas cumprem pena por tráfico de drogas. Mas Daiane, de 24 anos, assassinou o companheiro quando tinha 19. Ela está na APAC há quase quatro anos e tem mais sete anos e meio para cumprir a pena toda. Daiane parece muito sincera, tem buscado muito a Deus e confessa que ele “é a base de tudo na minha recuperação”. Mesmo detida, ela está fazendo um curso superior e procura se profissionalizar.
Ao lado de Daiane estava Savana, de 27 anos, casada, mãe de duas crianças. Ela conviveu num ambiente favorável ao crime desde a idade de 5, “amigou” e começou a traficar aos 12. Cumpre a terceira prisão. Jeniffer, de 31, tinha um bonito nenê de poucos meses no colo, que ela diz ser “o quarto e o último”.
O Mineiro se encontrou com estas mulheres numa varanda no andar de baixo da instituição. Elas estavam trabalhando em artesanato. Quando chegou ao andar de cima, onde ficam as recuperandas do regime fechado, elas estavam tomando café e comendo sonhos, feitos por elas mesmas. O que havia dito no andar de baixo o Mineiro repetiu.
O dinheiro fácil não é fácil
Quem abriu o portão para o Mineiro sair da residência das recuperandas (as palavras cadeia, prisão ou penitenciária são evitadas) foi Keila Cristina, uma mulher de 31 anos, mãe de três filhos e membro da Igreja Evangélica Betel. Ela permaneceu presa por quase cinco anos. Onze meses depois de solta, voltou ao tráfico e cumpriu mais três anos e meio de detenção. Hoje é encarregada da segurança na ala feminina. Quem levou o Mineiro de volta à ala masculina foi Maria Inês. Ela é apaixonada pela APAC e tem toda razão. Seu primeiro contato com a organização foi em 2010 como evangelista da Igreja Presbiteriana Renovada de Itaúna. Pouco depois, tornou-se funcionária, primeiro como plantonista, depois como motorista.
O recuperando Geraldo Magela, 30 anos, foi muito delicado com o Mineiro, conduzindo-o para aqui e acolá. Por sua aparência, ninguém desconfiaria que ele está há três anos privado de liberdade por causa de um assalto a mão armada ocorrido em Itaúna. O jovem está procurando a Deus porque “se nem um abutre sobrevive no deserto, muito menos eu sobreviveria sem Deus”. Geraldo afirma convicto que se o crime desse dinheiro ele seria milionário. Além de cuidar da cantina, o rapaz é presidente do Conselho de Sinceridade e Solidariedade da APAC masculina.
Depois do jantar, foi a vez de conhecer os aposentos dos apaqueanos do regime aberto. Eles podem passar o dia em liberdade, mas não podem beber nem usar qualquer tipo de droga e têm de estar de volta impreterivelmente às 19 horas. Ao chegar, passam pelo teste do bafômetro. Um deles, Reinaldo, de 39 anos, casado, cinco filhos, escreveu no questionário: “Hoje o crime não me seduz mais. Aprendi que o dinheiro fácil não é fácil. Ele me faz sofrer e leva ao sofrimento aqueles que me amam”. Outro, Michael, de apenas 19 anos, até parece conhecer a doutrina da justificação, pois diz que não pede perdão a Deus “porque ele já me perdoou”. De fato, Paulo explica: “Ao aceitar, pela fé, o que Deus sempre desejou para nós – consertar nossa situação com ele, tornar-nos prontos para ele –, alcançamos tudo isso com Deus por causa do nosso Senhor Jesus” (Rm 5.1). O problema é que, além do perdão por atacado, Michael e todos os viventes precisam continuamente do perdão diário (1Jo 2.1).
Uma porta, e não uma janela
Em 84 anos, foi a primeira vez que o Mineiro com Cara de Matuto dormiu num lugar do qual ele próprio não tinha a chave. No dia seguinte, 4 de novembro, antes de tomar café com os apaqueanos do regime semiaberto, ele fez a sua costumeira oração e leu o Salmo 132. O último versículo diz que a coroa do Filho de Davi “vai brilhar cada vez mais”. Então se lembrou de Provérbios 4.18-19: “A estrada em que caminham as pessoas direitas é como a luz da aurora, que brilha cada vez mais até ser dia claro. Mas a estrada dos maus é escura como a noite; eles caem e não podem ver no que foi que tropeçaram”. Ele tem certeza de que a APAC está ajudando de maneira correta homens e mulheres a sair da estrada escura e passar para a estrada cuja luz brilha cada vez mais.
No refeitório, ninguém foi tomando o seu café de qualquer jeito. Havia cerca de cinquenta pessoas. Todas obedecem ao ritual religioso de todas as manhãs: o cântico Bom dia, Jesus, a leitura de duas orações (a Oração do Amanhecer e a Oração do Recuperando), a leitura da passagem bíblica que fala sobre a plenitude da salvação (Fp 2.5-11), a recitação do Pai-Nosso e da Ave-Maria e a leitura do Termo de Adesão. Por ser algo repetitivo, é provável que nem todos percebam a riqueza das palavras cantadas e recitadas. No cântico Bom dia, Jesus, os recuperandos entoam:
Desviei do seu caminho
E caí na tentação
O Diabo me laçou
Mas Jesus me deu perdão!
Agora, estou liberto,
Vibrando com emoção,
De Jesus estou sempre perto
Com muita paz no coração.
Na Oração do Amanhecer, eles pedem: “Reveste-me da tua beleza, Senhor, e que, no decurso desse dia, eu te revele a todos”. Na Oração do Recuperando, eles declaram: “Senhor Jesus, tu vieste para salvar o que estava perdido, para dar chance de vida nova a todos, mediante o dom da tua própria vida, como holocausto pela remissão do mundo”. Na leitura do Termo de Adesão, eles repetem mais uma vez: “Firmo o presente termo comprometendo-me, assim, a não usar drogas e a lutar por todos os meios possíveis para que outros recuperandos não usem, além de vigiar diariamente para que não entre drogas na APAC”.
Na parte de trás da camiseta de um apaqueano estava escrita uma mensagem eufórica: “Eu pedi uma janela e Deus me abriu uma porta”.
O Jesus imatável
Logo após o café, o Mineiro leu para eles a palavra categórica de Jesus: “Ninguém tira a minha vida de mim, mas eu a dou por minha própria vontade” (Jo 10.18). Explicou que Jesus era imatável e só morreu na Sexta-Feira Santa porque se entregara por todos nós para tornar possível o perdão do Pai.
“O que vocês desejam mais: voltar para casa ou receber o perdão de Deus?” – perguntou o Mineiro. Sinceramente ou não, todos foram unânimes: “Preferimos o perdão de Deus”.
Percebe-se claramente a influência do evangelho no pensamento religioso de alguns recuperandos. Guilherme Lúcio, por exemplo, de 26 anos, evangélico, confessa-se pecador “desde quando nasci”. Ele e pelo menos outros dois (Adelson e Lucas) afirmam que a religião em si não salva ninguém. Outro evangélico de 19 anos completa dizendo que a sua recuperação depende de aceitar Jesus e caminhar com ele. Leandro Divino, de 30 anos, casado, pai de uma criança, não esconde que é um evangélico que “deixa muito a desejar”.
Algemas nunca mais
Logo após o demorado encontro com os recuperandos do regime semiaberto, o Mineiro subiu para o andar de cima onde ficam os do regime fechado. Na recepção estava escrito com todas as letras: “Na APAC as algemas só voltam ao seu pulso por sua livre e espontânea vontade”.
No auditório lotado, a professora Terezinha Morais da Silva dava uma aula de valorização humana, com auxílio de slides: “O pessimista sempre enxerga a vida com lentes embaçadas. Por isso para ele o tempo está sempre nublado”.
Quando ela abriu espaço para alguma manifestação dos recuperandos, Rubens, de 35 anos, casado, pai de gêmeas de 15 e de outra menina de 5, levantou-se e disse: “Precisamos acertar o foco – deixar de fazer a vontade da carne e fazer a vontade do Senhor”. Rubens contou ao Mineiro que era usuário de crack e traficante. Aos 32 anos cometeu homicídio e foi para a cadeia, onde ficou por um ano e meio e onde veio a se converter. Está na APAC há apenas oito meses. Não teria passado por essas desventuras se tivesse ouvido a esposa, que lhe pregava o evangelho.
Jadir Lázaro, 39 anos e quatro filhos, pediu ao Mineiro que fizesse uma oração por ele. Como muitos outros, ele tem uma história triste. Depois de trabalhar por dezessete anos na mesma empresa, numa única noite destruiu sua carreira e sua vida. Ele tem sete anos e meio pela frente.
Quando a professora, que é batista, terminou a aula, o Mineiro voltou a falar sobre o Jesus imatável, a mesma mensagem que havia pregado logo após o café.
Chega a exatos cem anos a soma das penas que somente os quinze recuperandos do regime fechado ainda estão devendo à justiça terrena. Tiago, de 25 anos, tem certeza de que só Deus pode tirar de sua mente todos os desejos malignos. Flávio, também de 25, deseja muito fazer parte dos 85% dos apaqueanos que não voltam ao crime para cuidar de seu filho, que tinha apenas 1 ano quando o pai foi preso e agora está com 8.
Ao descer do andar dos recuperandos do regime fechado, o Mineiro se encontrou com um dos cozinheiros, que lhe disse: “Hoje tem moqueca de peixe no almoço”. Ele se assentou ao lado de três rapazes do regime semiaberto e de duas funcionárias para almoçar. Não havia mesas só para os funcionários nem mesas só para os apaqueanos. Todos estavam juntos, inclusive a professora de valorização humana. Ninguém começou a comer antes da oração de gratidão e da recitação do Pai-Nosso. Depois do almoço e de uma esticada na cama, o Mineiro com Cara de Matuto se despediu da direção e voltou para Viçosa, dizendo com seus botões: “Bem-aventurada é Itaúna, não por ser conhecida como Cidade Universitária do Mundo, título conferido pela Unesco em 1975, mas por causa de sua pioneira APAC, que, devido a sua projeção nacional e internacional, é membro da Prison Fellowship International!”.
Texto publicado originalmente na edição 352 da revista Ultimato.
Ultimato também visitou uma das 43 unidades da APAC no Brasil, na cidade de Itaúna, uma das unidades de destaque no país. Em 2015, o jornalista e fundador da revista Ultimato, pastor Elben César, passou dois dias com os ‘recuperandos’ e até dormiu nos aposentos da APAC. Confira a reportagem do “Mineiro com cara de Matuto”.
O Mineiro com Cara de Matuto na APAC de Itaúna
A ponte que Deus construiu para os criminosos chegarem a ele
Por Elben César
J. K. Rowling, autora da série Harry Potter, diz que “a pior coisa do mundo é o encarceramento”. E o autor da epístola aos Hebreus ordena: “Não se esqueçam daqueles que estão na prisão. Sofram com eles, como se vocês próprios estivessem aprisionados com eles” (13.3).
Por causa dessa passagem bíblica, o Mineiro com Cara de Matuto pediu a ajuda do advogado Antonio Carlos da Rosa Silva Junior, especializado em ciências penais e em direito e relações familiares e autor do livro “Deus na Prisão”, para ser preso por dois dias em uma penitenciária de Juiz de Fora, MG, a mais próxima de sua casa. Porém, Antonio Carlos achou por bem indicar não uma penitenciária, mas a APAC de Itaúna, uma cidade a 85 quilômetros de Belo Horizonte, onde fica a Universidade de Itaúna. APAC é a sigla de Associação de Proteção e Assistência aos Condenados e tem como objetivo a humanização das prisões, sem perder de vista a finalidade punitiva da pena. Seu propósito é evitar a reincidência no crime e oferecer alternativas para o condenado se recuperar.
No dia 3 de novembro de 2014, o Mineiro apertou a campainha da APAC de Itaúna. Logo ao chegar, ele encontrou a voluntária Vera Lúcia, uma extrovertida cadeirante de 64 anos, formada em ciências econômicas, irmã de seis Marias e tia de duas gêmeas idênticas, formadas na Universidade Federal de Viçosa (UFV) e hoje missionárias católicas, uma em Luxemburgo e outra na Polônia. Ela tinha apenas 12 anos quando um caminhão em marcha a ré esmagou suas pernas.
A ala feminina da APAC
O contato que o Mineiro teve com as recuperandas do regime semiaberto foi muito positivo. Depois de ouvi-las, ele contou a história do desabafo de Ana, uma mulher que havia perdido a vontade de comer e tinha o semblante triste antes de chorar amargamente diante de Deus e de clamar a ele por se sentir desesperada com os problemas domésticos. Ele fez questão de frisar que o semblante de Ana não era mais triste depois de sua longa e fervorosa oração (1Sm 1.18). Depois, orou com elas e por elas.
Quase todas cumprem pena por tráfico de drogas. Mas Daiane, de 24 anos, assassinou o companheiro quando tinha 19. Ela está na APAC há quase quatro anos e tem mais sete anos e meio para cumprir a pena toda. Daiane parece muito sincera, tem buscado muito a Deus e confessa que ele “é a base de tudo na minha recuperação”. Mesmo detida, ela está fazendo um curso superior e procura se profissionalizar.
Ao lado de Daiane estava Savana, de 27 anos, casada, mãe de duas crianças. Ela conviveu num ambiente favorável ao crime desde a idade de 5, “amigou” e começou a traficar aos 12. Cumpre a terceira prisão. Jeniffer, de 31, tinha um bonito nenê de poucos meses no colo, que ela diz ser “o quarto e o último”.
O Mineiro se encontrou com estas mulheres numa varanda no andar de baixo da instituição. Elas estavam trabalhando em artesanato. Quando chegou ao andar de cima, onde ficam as recuperandas do regime fechado, elas estavam tomando café e comendo sonhos, feitos por elas mesmas. O que havia dito no andar de baixo o Mineiro repetiu.
O dinheiro fácil não é fácil
Quem abriu o portão para o Mineiro sair da residência das recuperandas (as palavras cadeia, prisão ou penitenciária são evitadas) foi Keila Cristina, uma mulher de 31 anos, mãe de três filhos e membro da Igreja Evangélica Betel. Ela permaneceu presa por quase cinco anos. Onze meses depois de solta, voltou ao tráfico e cumpriu mais três anos e meio de detenção. Hoje é encarregada da segurança na ala feminina. Quem levou o Mineiro de volta à ala masculina foi Maria Inês. Ela é apaixonada pela APAC e tem toda razão. Seu primeiro contato com a organização foi em 2010 como evangelista da Igreja Presbiteriana Renovada de Itaúna. Pouco depois, tornou-se funcionária, primeiro como plantonista, depois como motorista.
O recuperando Geraldo Magela, 30 anos, foi muito delicado com o Mineiro, conduzindo-o para aqui e acolá. Por sua aparência, ninguém desconfiaria que ele está há três anos privado de liberdade por causa de um assalto a mão armada ocorrido em Itaúna. O jovem está procurando a Deus porque “se nem um abutre sobrevive no deserto, muito menos eu sobreviveria sem Deus”. Geraldo afirma convicto que se o crime desse dinheiro ele seria milionário. Além de cuidar da cantina, o rapaz é presidente do Conselho de Sinceridade e Solidariedade da APAC masculina.
Depois do jantar, foi a vez de conhecer os aposentos dos apaqueanos do regime aberto. Eles podem passar o dia em liberdade, mas não podem beber nem usar qualquer tipo de droga e têm de estar de volta impreterivelmente às 19 horas. Ao chegar, passam pelo teste do bafômetro. Um deles, Reinaldo, de 39 anos, casado, cinco filhos, escreveu no questionário: “Hoje o crime não me seduz mais. Aprendi que o dinheiro fácil não é fácil. Ele me faz sofrer e leva ao sofrimento aqueles que me amam”. Outro, Michael, de apenas 19 anos, até parece conhecer a doutrina da justificação, pois diz que não pede perdão a Deus “porque ele já me perdoou”. De fato, Paulo explica: “Ao aceitar, pela fé, o que Deus sempre desejou para nós – consertar nossa situação com ele, tornar-nos prontos para ele –, alcançamos tudo isso com Deus por causa do nosso Senhor Jesus” (Rm 5.1). O problema é que, além do perdão por atacado, Michael e todos os viventes precisam continuamente do perdão diário (1Jo 2.1).
Uma porta, e não uma janela
Em 84 anos, foi a primeira vez que o Mineiro com Cara de Matuto dormiu num lugar do qual ele próprio não tinha a chave. No dia seguinte, 4 de novembro, antes de tomar café com os apaqueanos do regime semiaberto, ele fez a sua costumeira oração e leu o Salmo 132. O último versículo diz que a coroa do Filho de Davi “vai brilhar cada vez mais”. Então se lembrou de Provérbios 4.18-19: “A estrada em que caminham as pessoas direitas é como a luz da aurora, que brilha cada vez mais até ser dia claro. Mas a estrada dos maus é escura como a noite; eles caem e não podem ver no que foi que tropeçaram”. Ele tem certeza de que a APAC está ajudando de maneira correta homens e mulheres a sair da estrada escura e passar para a estrada cuja luz brilha cada vez mais.
No refeitório, ninguém foi tomando o seu café de qualquer jeito. Havia cerca de cinquenta pessoas. Todas obedecem ao ritual religioso de todas as manhãs: o cântico Bom dia, Jesus, a leitura de duas orações (a Oração do Amanhecer e a Oração do Recuperando), a leitura da passagem bíblica que fala sobre a plenitude da salvação (Fp 2.5-11), a recitação do Pai-Nosso e da Ave-Maria e a leitura do Termo de Adesão. Por ser algo repetitivo, é provável que nem todos percebam a riqueza das palavras cantadas e recitadas. No cântico Bom dia, Jesus, os recuperandos entoam:
Desviei do seu caminho
E caí na tentação
O Diabo me laçou
Mas Jesus me deu perdão!
Agora, estou liberto,
Vibrando com emoção,
De Jesus estou sempre perto
Com muita paz no coração.
Na Oração do Amanhecer, eles pedem: “Reveste-me da tua beleza, Senhor, e que, no decurso desse dia, eu te revele a todos”. Na Oração do Recuperando, eles declaram: “Senhor Jesus, tu vieste para salvar o que estava perdido, para dar chance de vida nova a todos, mediante o dom da tua própria vida, como holocausto pela remissão do mundo”. Na leitura do Termo de Adesão, eles repetem mais uma vez: “Firmo o presente termo comprometendo-me, assim, a não usar drogas e a lutar por todos os meios possíveis para que outros recuperandos não usem, além de vigiar diariamente para que não entre drogas na APAC”.
Na parte de trás da camiseta de um apaqueano estava escrita uma mensagem eufórica: “Eu pedi uma janela e Deus me abriu uma porta”.
O Jesus imatável
Logo após o café, o Mineiro leu para eles a palavra categórica de Jesus: “Ninguém tira a minha vida de mim, mas eu a dou por minha própria vontade” (Jo 10.18). Explicou que Jesus era imatável e só morreu na Sexta-Feira Santa porque se entregara por todos nós para tornar possível o perdão do Pai.
“O que vocês desejam mais: voltar para casa ou receber o perdão de Deus?” – perguntou o Mineiro. Sinceramente ou não, todos foram unânimes: “Preferimos o perdão de Deus”.
Percebe-se claramente a influência do evangelho no pensamento religioso de alguns recuperandos. Guilherme Lúcio, por exemplo, de 26 anos, evangélico, confessa-se pecador “desde quando nasci”. Ele e pelo menos outros dois (Adelson e Lucas) afirmam que a religião em si não salva ninguém. Outro evangélico de 19 anos completa dizendo que a sua recuperação depende de aceitar Jesus e caminhar com ele. Leandro Divino, de 30 anos, casado, pai de uma criança, não esconde que é um evangélico que “deixa muito a desejar”.
Algemas nunca mais
Logo após o demorado encontro com os recuperandos do regime semiaberto, o Mineiro subiu para o andar de cima onde ficam os do regime fechado. Na recepção estava escrito com todas as letras: “Na APAC as algemas só voltam ao seu pulso por sua livre e espontânea vontade”.
No auditório lotado, a professora Terezinha Morais da Silva dava uma aula de valorização humana, com auxílio de slides: “O pessimista sempre enxerga a vida com lentes embaçadas. Por isso para ele o tempo está sempre nublado”.
Quando ela abriu espaço para alguma manifestação dos recuperandos, Rubens, de 35 anos, casado, pai de gêmeas de 15 e de outra menina de 5, levantou-se e disse: “Precisamos acertar o foco – deixar de fazer a vontade da carne e fazer a vontade do Senhor”. Rubens contou ao Mineiro que era usuário de crack e traficante. Aos 32 anos cometeu homicídio e foi para a cadeia, onde ficou por um ano e meio e onde veio a se converter. Está na APAC há apenas oito meses. Não teria passado por essas desventuras se tivesse ouvido a esposa, que lhe pregava o evangelho.
Jadir Lázaro, 39 anos e quatro filhos, pediu ao Mineiro que fizesse uma oração por ele. Como muitos outros, ele tem uma história triste. Depois de trabalhar por dezessete anos na mesma empresa, numa única noite destruiu sua carreira e sua vida. Ele tem sete anos e meio pela frente.
Quando a professora, que é batista, terminou a aula, o Mineiro voltou a falar sobre o Jesus imatável, a mesma mensagem que havia pregado logo após o café.
Chega a exatos cem anos a soma das penas que somente os quinze recuperandos do regime fechado ainda estão devendo à justiça terrena. Tiago, de 25 anos, tem certeza de que só Deus pode tirar de sua mente todos os desejos malignos. Flávio, também de 25, deseja muito fazer parte dos 85% dos apaqueanos que não voltam ao crime para cuidar de seu filho, que tinha apenas 1 ano quando o pai foi preso e agora está com 8.
Ao descer do andar dos recuperandos do regime fechado, o Mineiro se encontrou com um dos cozinheiros, que lhe disse: “Hoje tem moqueca de peixe no almoço”. Ele se assentou ao lado de três rapazes do regime semiaberto e de duas funcionárias para almoçar. Não havia mesas só para os funcionários nem mesas só para os apaqueanos. Todos estavam juntos, inclusive a professora de valorização humana. Ninguém começou a comer antes da oração de gratidão e da recitação do Pai-Nosso. Depois do almoço e de uma esticada na cama, o Mineiro com Cara de Matuto se despediu da direção e voltou para Viçosa, dizendo com seus botões: “Bem-aventurada é Itaúna, não por ser conhecida como Cidade Universitária do Mundo, título conferido pela Unesco em 1975, mas por causa de sua pioneira APAC, que, devido a sua projeção nacional e internacional, é membro da Prison Fellowship International!”.
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