Opinião
- 03 de outubro de 2022
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O bem comum nas Escrituras
Por Timóteo Carriker
Especialmente o Antigo Testamento é uma fonte rica para explorar e desenvolver fundamentos para uma ética pública do povo de Deus em relação à cultura.1 Já o Novo Testamento acaba contribuindo mais para discutir especificamente o papel da igreja na ética pública. Aqui vamos considerar uma das passagens neotestamentárias mais claras, Romanos 13.1-7, dentro do seu contexto literário maior de Romanos 12-14 e dentro do seu contexto histórico-cultural da cultura romana.
Romanos 12-14. Nesses três capítulos, Paulo aplica pastoralmente na vida das congregações romanas o seu propósito missionário maior de alcançar gentios e judeus e de uni-los em uma nova humanidade em Cristo. O tema da salvação primeiro do judeu e também do gentio (Rm 1.16) deverá resultar na unidade dos dois dentro da igreja. A metáfora do corpo fornece o ponto de partida para toda a sua exortação a favor de uma unidade que abraça a diversidade. O conhecimento pessoal que Paulo tem no capítulo 16 dos membros das igrejas romanas demonstra que as exortações nos capítulos 12-14 são relevantes para a situação específica dessas igrejas. A visão missionária de Paulo não é simplesmente uma questão de geografia, como se a proclamação do evangelho na Espanha cumprisse a sua missão. Ao invés disso, o alvo para Paulo é a realização das promessas de Deus a respeito da unidade de judeus e gentios na formação de um novo povo de Deus sem divisão étnica, um povo que vive “uns aos outros” entre si e dentro da sociedade maior. Suas exortações pastorais refletem uma aplicação dessa realização dentro dos problemas específicos das igrejas romanas. A função pastoral da passagem não só flui do propósito missionário maior de unidade como também contribui para ela. Isso porque uma comunidade cristã unida e estável seria` uma base bem melhor para alcançar a Espanha do que uma igreja cheia de conflitos internos.
Romanos 13.1-7. Apelo para a passividade ou para a transformação? É dentro desse contexto maior do propósito missionário de Paulo nessa carta e da função específica dos capítulos 12-14 que consideramos o trecho de 13.1-7. É um parágrafo curto dentro desses capítulos. Trata do comportamento da igreja em duas direções: interno e externo, o comportamento entre outros membros da igreja e o comportamento entre os não-crentes. Ambas as direções fluem do plano de salvação do mundo, o projeto de novos céus e nova terra. Romanos 13.1-7 pertence principalmente à categoria da ética pública. A ética pública da igreja não é um tema que domina os capítulos 12-14 como um todo, mas ela já aparece em 12.14 e 12.17-21, onde a instrução geral para os membros da igreja em relação aos que não são membros é “fazer o bem perante todos os homens”, “tende paz com todos os homens”, “vencer o mal com o bem” e “abençoar os que vos perseguem”.
O pano de fundo cultural: engajamento com o mundo. É importante ressaltar que o tema da Carta aos Romanos exposto em 1.16, o “evangelho” como o poder de Deus, era facilmente entendido como uma afronta para o império romano, que anunciava literalmente um “evangelho” de paz e segurança mundial debaixo da supremacia do César, sem dúvida um totalitarismo religioso-cultural do tipo exposto acima por Qutb. Por isso, 13.1-7 dificilmente pode ser entendido como uma teologia universal do estado, é um parênese2 direcionado para circunstâncias específicas. É provável, por exemplo, que Paulo quisesse evitar um novo édito como aquele de Cláudio oito anos atrás, em 49 d.C., que resultou na expulsão dos judeus de Roma. Paulo temia que um novo édito poderia atingir não só os judeus cristãos como a igreja toda. Além disso, ele estava ciente de que o pagamento de impostos era potencialmente uma questão sensível. Entretanto, não é a situação específica ou até mesmo a aplicação do ensino à situação que explica a natureza fundamental da passagem. Romanos 13.1-7 é uma exortação que faz parte de um estrato maior de ensino ético cuja função era exortar os cristãos a participar no mundo. Se isso for verdade, então essa passagem é parte de uma tradição que guia a igreja no processo de transformação social do mundo e que depende de envolvimento missionário, entusiasmado e circunspecto nas estruturas da sociedade. Para Paulo, esse envolvimento era o corolário ético e missiológico do plano de Deus para a salvação universal.
Os códigos domésticos. Romanos 13.1-7 faz parte de um corpo maior de ensino no Novo Testamento estruturado e enraizado semelhantemente em um elemento dominante e muito básico da cosmovisão mediterrânea antiga, isto é, a casa. Os relacionamentos mais fundamentais da cultura mediterrânea antiga eram relacionamentos de parentesco, e a instituição casa (gr. oikos) era onde a maioria desses relacionamentos ocorria. Mais ainda, as expectativas sociais da casa excediam a esfera privada. A casa antiga era considerada a pedra fundamental da sociedade. Sua estabilidade garantia a estabilidade da cidade-estado. Desde o período de Augusto, o imperador era considerado o pater patriae (lat.): ele era um pai, e o estado era a sua casa. No mundo greco-romano antigo, a casa e a sociedade eram separadas apenas por uma barreira muito permeável. Para aqueles que atribuíram a um Deus criador a estrutura básica da natureza, era natural expandir a ideia do oikos humano a uma oikonomia theou, que, por sua vez, abrangeria toda a estrutura do universo. Essa é a ideia clara de 1Pedro 2.13, e o pensamento de Paulo em Romanos 13.1-7 é semelhante. A mesma permeabilidade existia em Romanos entre a igreja como “casa” e a sociedade. Nas crenças judaica e cristã, Deus abraça o mundo inteiro para os seus propósitos. A oikonomia de Deus desenvolve a vida toda, e, por isso, a vida cristã terá de ser vivida dentro da cultura.
Romanos 13.1-7 deve ser visto dentro de um programa social-ético e missiológico semelhante. Seu contexto literário está dedicado à mensagem de que o povo de Deus deve viver consciente de ser uma nova humanidade de Deus no mundo. As circunstâncias específicas em Roma, que ocasionaram a escolha parenética de Paulo, determinaram a forma da aplicação específica (vv. 1,5,6,7), mas o alvo mais fundamental era direcionar as congregações para participar proativamente na vida pública, e, veja bem, não por oposição (totalitarismo religioso, via Qubt) e sim por submissão (pluralismo político religioso, via Volf).
A intenção transformadora de 13.1-7 transparece mais na maneira como a passagem convoca a igreja à ação. Estudos recentes da estrutura retórica da passagem sugerem que o v.3 expressa a ação central na parênese por meio da frase “fazer o bem”. É no imperativo de “fazer o bem” que Paulo “coopta” a convenção cultural conhecida como “benfeitoria” para equipar a igreja para a transformação da sociedade. A prática de “benfeitoria” existia para garantir o bem-estar da sociedade por meio das contribuições dos cidadãos de maior recurso, semelhante ao padrinho ou ao coronel na sociedade brasileira colonial (sem ser pejorativo). O termo “a boa obra” (o agathos; vv.3-4) e a ordem “fazer a boa obra” (to agathov poiei; v.3) aparecem frequentemente nas descrições de benfeitoria; e o termo “louvor” (epainos) como galardão de governantes para bons cidadãos e benfeitores pertence ao domínio semântico dessa convenção cultural. Dentro de tal discussão de responsabilidade pública, as congregações romanas certamente teriam entendido essa referência.
O importante é reparar como a convenção de benfeitoria era empregada pelos escritores cristãos. Eles não apenas enfatizam a continuação da obrigação dos benfeitores cristãos para a sociedade, mas expandem a convenção pela sua fundamentação teológica, aplicando-a a toda a comunidade cristã. Isso também ocorre em Romanos 13.1-7, e é nesse ponto que as injunções dessa passagem adquirem uma conotação radical de transformação. “Fazer o bem” se torna obrigação de todos, não apenas dos poderosos com mais recursos. O conceito de benfeitoria efetivamente é contextualizado para abranger a igreja toda. A benfeitoria é subvertida e transformada em serviço humilde, um exercício que coloca o escravo espiritualmente no mesmo papel do mestre (veja 1Tm 6.1-2). Na oikonomia surpreendente de Deus, a nobreza e a honra, galardões da benfeitoria, são atribuídas aos escravos.
Em Romanos 13.1-7, uma convenção cultural associada com os poderosos e os ricos é atribuída também aos fracos e pobres dentro da comunidade, uma convenção para definir e resumir a sua ética interna e a sua ética pública. De qualquer maneira, “fazer o bem” deve ser entendido como o serviço a favor dos outros e é intrínseco à missão da igreja e ao projeto de Deus de unir gentios e judeus. Essa base teológica da exortação capacita a igreja para um ministério difícil e sacrificial (8.31-19), e chama a igreja para se engajar plenamente no mundo a fim de transformar os seus caminhos e os seus valores.
Conclusão
A alternativa do apóstolo Paulo para um contexto de totalitarismo religioso (romano) não é um outro totalitarismo religioso (cristão). Não, Paulo apela para a sujeição às autoridades e ao mesmo tempo para a sua subversão por meio de uma ética pública que, quando praticada, era um dos principais meios de transformação das culturas que cercavam a igreja ao longo dos séculos. O sociólogo estadunidense Rodney Stark documenta detalhada e convincentemente como isso transpirou durante os primeiros três séculos da igreja cristã primitiva e redundou um crescimento numérico que atingiu 50% da população romana.3 Mas a mesma história se repete ao longo dos séculos e em regiões geográficas e étnicas as mais diversas, onde a igreja aprendeu e exerceu a ética pública de “fazer o bem”.
Originalmente publicado por Martureo. Reproduzido com autorização.
Notas
Originalmente publicado por Martureo. Reproduzido com autorização.
Notas
1- Os livros de teologia bíblica do Antigo Testamento são especialmente relevantes. Minha própria contribuição se encontra em O propósito de Deus e a nossa vocação. Uma teologia bíblica da missão toda. Viçosa: Ultimato, 2021.
2- Termo técnico da retórica grega para uma exortação moral. Paulo usa bastante essa ferramenta da retórica greco-romana em Romanos.
3- O crescimento do cristianismo. Um sociólogo reconsidera a história. São Paulo: Paulinas, 2006. Resumo este fenômeno no meu livro, O que é igreja missional. Modelo e vocação da igreja no Novo Testamento. Viçosa, Ultimato, 2018.
OS CRISTÃOS E O BEM COMUM – O QUE FAZ A VIDA SER BOA PARA TODOS? (JR 29.7)
O subtítulo da matéria de capa traz uma pergunta crucial: o que faz a vida ser boa para todos? A pergunta é crucial pelas respostas, mas também – e antes de tudo – por causa daqueles que fazem a pergunta. Quem faz este tipo de pergunta pensa além de si e de sua “tribo”. Quem pensa nos outros e se importa com eles compartilha da natureza de seu Pai misericordioso e justo.
Saiba mais
» O Propósito de Deus e a Nossa Vocação, de Timóteo Carriker
» A Visão Missionária na Bíblia, de Timóteo Carriker
» O Propósito de Deus e a Nossa Vocação, de Timóteo Carriker
» A Visão Missionária na Bíblia, de Timóteo Carriker
teólogo, missionário da Igreja Presbiteriana Independente, capelão d’A Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. Pela Editora Ultimato, é autor de O Propósito de Deus e a Nossa Vocação, A Visão Missionária na Bíblia e Trabalho, Descanso e Dinheiro. É blogueiro da Ultimato.
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