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Opinião

Maria Madalena: O filme e o mito da prostituta

Por Carlos Caldas

Semana Santa: o momento mais importante do calendário litúrgico cristão. Tempo sagrado de comemorar, celebrar e atualizar os acontecimentos dramáticos do fim da vida terrena de Jesus e de contemplar, pela fé, o mistério de sua ressurreição. É muito comum que nesta época sejam exibidos filmes que tratem destes temas. É exatamente o caso de “Maria Madalena”, do diretor australiano Garth Davis.

Maria Madalena é um filme interessante por algumas razões. O objetivo dele é mostrar o projeto de Jesus, a compreensão do reino de Deus, a morte e ressurreição na perspectiva de Maria de Magdala, popularmente conhecida como Maria Madalena. O filme de Davis desconstrói algumas compreensões populares a respeito desta Maria. Dentre estas, a de que a Madalena seria uma prostituta. Essa compreensão é recorrente no cristianismo ocidental há séculos. Mas trata-se de uma compreensão equivocada do Papa Gregório Magno, que no século sexto da era cristã associou a “pecadora” anônima de Lc 7.36-50 com Maria de Magdala. Entretanto, em nenhum momento o texto bíblico confirma esta interpretação. O Novo Testamento nunca diz que aquela Maria foi prostituta. Desde então, em todo o ocidente cristão a Madalena tornou-se símbolo de alguém que se arrepende de sua vida pregressa. Só que, não é demais repetir, não há base bíblica para afirmar que ela fora prostituta. Neste sentido, o filme de Garth Davis acerta em cheio quando a apresenta como uma moça que ajudava sua família nas lides da pesca, como muitas outras, considerando que Magdala era uma pequenina aldeia ao redor do grande Lago de Genesaré, que é o mesmo Mar da Galileia. Também conforme o filme, ela era uma assistente da parteira da vila.

>> A dignificação do feminino em seis mulheres na Bíblia <<

O que o Novo Testamento de fato afirma sobre Maria de Magdala é bastante interessante: ela, e outras mulheres, algumas de posição socioeconômica elevada, ajudaram a Jesus e aos doze em sua missão (Lc 8.1-3); ela, bem como outra Maria, seguiram Jesus desde a Galileia até a crucificação em Jerusalém (Mt 27.55-56); ela, e a “Maria mãe de José” prestaram bastante atenção ao túmulo onde Jesus fora sepultado (Mc 15.42-47); ela, e algumas amigas, foram as primeiras a ir ao túmulo onde Jesus fora sepultado, logo na madrugada do domingo (Mc 16.1-2; Mt 28.1), tornando-se uma das primeiras pessoas a tomar conhecimento da notícia mais extraordinária e inesperada de todas: o Rabi Jesus de Nazaré ressuscitou dos mortos (Jo 20.11-16), e uma das primeiras a avisar aos demais apóstolos a respeito de sua descoberta (Jo 20.1-2). Depois destas passagens a Madalena sairá de cena, não sendo mais mencionada. Mas o que a respeito dela é dito é o suficiente para mostrar que ela desempenhou um papel destacado na história dos primeiros seguidores de Jesus.

O filme de Garth Davis tenta fazer jus a estes fatos. Em sua narrativa, ao contrário das especulações baratas do Código Da Vinci, não há romance entre Jesus e Madalena. No filme, Maria de Magdala é uma mulher forte e decidida, porque tem coragem de fazer o que nenhuma mulher solteira teria coragem de fazer naquele tempo: ela sai de casa e se torna seguidora de Jesus. Conforme os evangelhos, foi exatamente isso que aconteceu. Na narrativa fílmica de Davis, o relacionamento entre Jesus e Maria de Magdala não é romântico, e muito menos sexual. Antes, é um relacionamento de confiança, porque um inspira o outro. A Madalena de Garth Davis é a única que entende que o reino de Deus que Jesus anunciou está nos corações, e não vem como uma revolução militar para expulsar os invasores romanos.

>> Maria Madalena <<

Mas todo filme é uma releitura, e o de Davis não é exceção: ele se permite algumas liberdades, que dificilmente teriam tido base histórica. Jesus (Joaquin Phoenix) e Maria de Magdala (Rooney Mara) são caucasianos, e Pedro (Chiwetel Ejiofor) é negro. É improvável que Jesus e a Madalena fossem brancos, e que houvesse judeus galileus negros naquela época. Na cena da última ceia, no cenáculo não há treze pessoas (Jesus e os doze), como estamos acostumados a pensar, mas quatorze (Jesus, os doze e Maria Madalena). O filme é na maior parte do tempo lento e arrastado. Quando Jesus cura alguém ele fica esgotado, chegando a quase perder os sentidos. A narrativa se passa o tempo todo com um clima melancólico, talvez por concentrar a atenção nos últimos dias da vida de Jesus. Com perdão do trocadilho infame, todo mundo no filme está com “cara de Madalena arrependida”, todo mundo com cara de choro e lágrimas nos olhos quase o tempo todo. A meu ver, Davis poderia ter feito a cena do encontro inesperado de Maria com o ressuscitado, narrada com detalhes emocionantes em Jo 20.11-18 mais fiel ao relato bíblico. A cena no filme foi muito rápida, e não tem a carga emocional forte e intensa do relato joanino.

A recriação fílmica do relato da Madalena feita por Garth Davis poderá desagradar a alguns. Mas também fará pensar no papel de uma mulher que teve sensibilidade para abandonar a segurança do seu lar para seguir o Rabi Jesus, por entender sua mensagem e se comprometer com o seu anúncio. O filme poderá provocar uma revisão da maneira como entendemos a Madalena: não uma prostituta endemoninhada, mas uma mulher inteligente, solidária e corajosa, que levou o discipulado – seguir Jesus – às últimas conseqüências.

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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
  • Textos publicados: 83 [ver]

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