Opinião
- 10 de junho de 2020
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"Eu não consigo respirar": tempos de violência, descaso e pandemia
Por Luiz Fernando dos Santos
"Fiquei muito tempo em silêncio, e me contive, calado. Mas agora, como mulher em trabalho de parto, eu grito, gemo e respiro ofegante” (Is 42.14).
A frase que dá o título a este texto tem indignado e assombrado o planeta nas últimas semanas. Foram as últimas palavras do cidadão George Floyd, afro-americano, brutalmente assassinado por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos da América. Durante os seis minutos em que agonizou conscientemente, essas foram as suas últimas palavras: “Eu não consigo respirar”, (nos outros dois minutos de desumana violência, ele já estava inconsciente). As palavras quase gemidas, quase inexprimíveis de Floyd foram amplificadas no mais inimaginável volume já concebido. Ecoou em alto e bom som de Minneapolis para todos os cantos do planeta e foi emprestada às mais variadas e angustiantes situações de asfixias existenciais. Extrapolou o movimento “vidas pretas importam”, legítimo no centro das suas reivindicações contra o racismo estrutural, cultural e de toda ordem, talvez discutíveis em outras bandeiras levantadas, mas legítimo.
O desespero de George Floyd encontra plena consonância e ressonância na agonia de milhões de homens e mulheres no planeta e no Brasil mais especialmente, que precisam receber tratamento em uma Unidade de Terapia Intensiva, por conta dessa pandemia, e não conseguem atendimento por falta de leitos, insumos, profissionais etc. Estes, agonizam por dias, contando as dolorosas horas pelas quais vêm a vida se esvaindo em respirações cada vez mais dramáticas, mais exasperadas até não terem mais forças para puxar o ar. Esses, seguramente, repetiram essas mesmas últimas palavras: “Eu não consigo respirar”. Em sua grande maioria são vítimas do mesmo mal que acometeu o americano Floyd, vítimas da marginalização institucionalizada, do descaso público, da inércia da elite e não raras vezes, do ensurdecedor silêncio de homens “bons”. São vidas relegadas nos amontoados urbanos desumanos das favelas sem saneamento, sem atenção primária na saúde, sem educação, lazer, cultura e ainda tendo que conviver e sobreviver à violência endêmica.
Sem diminuir ou esvaziar em nada a fala da vítima de Minneapolis, também anda difícil respirar o ar tóxico da política, de maneira acentuada aqui no Brasil. É asfixiante a completa incapacidade dos nossos gestores maiores em meio a essa crise sanitária, administrar para o bem público, deixando de lado as diferenças ideológicas (se é que elas existem de fato) e os diferentes interesses. Em vez disso, como personagens de cortiço ou lavadeiras a beira do rio, de muitos contos, romances e do imaginário brasileiros, encontram tempo pata trocar farpas, insultos e insinuações pelas redes sociais. Ficam à cata dos deslizes alheios, como hienas esfaimadas, para depois jogarem aos quatro ventos na esperança de obterem alguma vantagem. Enquanto a temperatura da fogueira das vaidades sobe, a cada um minuto (1.440 por dia, números sem muita maquiagem), um brasileiro morre em decorrência da pandemia de Covid-19 e do letal vírus do descaso das autoridades públicas.
Também anda muito difícil respirar no poluído ambiente “evangélico”, de maneira especial, na ‘terra de ninguém’ das redes sociais. Um ambiente onde o amor fraternal, o respeito pela integridade moral, o acolhimento das diferenças em Cristo e o direito de discordar em coisas que orbitam em torno da fé, simplesmente inexistem. Fico surpreso, inclusive, com a idolatria (verdadeiro culto à personalidade e ao personagem) que muitos evangélicos prestam de maneira acrítica, confundindo e misturando plataformas políticas com o Reino de Deus. Na verdade, essa tentação parece nos acompanhar, já prevista em Apocalipse, e nos seguiu passando pelo ‘Constantinianismo’, pelo Sacro-império romano-germânico, pelas lutas intestinas dos puritanos, pelo movimento missionário-colonialista e etc. Sempre há quem confunda agendas humanas e interesseiras com a agenda do Reino dos Céus. Mas, também me surpreendo com opositores de ocasião, de última hora que já vestiram as mais antagônicas cores desse estranho espectro político.
Me assusto com os passionalismos irracionais que se deixam levar por discursos inflamados e não atentam muitas vezes para as verdadeiras pautas que estão em jogo. Muitas delas, impossíveis e irreconciliáveis com o Evangelho. Mas, o mais sufocante é o linguajar pesado, ferino, desrespeitoso, jocoso, numa palavra, inapropriado aos santos. E o que falar das manipulações da “grande imprensa”, mas também das terríveis ‘Fake News’? É difícil não perder o fôlego. Quando você estiver para levantar bandeiras, e engajar é preciso, sem engajamento não há testemunho, lembre-se de um outro homem que morreu também de asfixia, sem conseguir respirar. O ambiente em que ele viveu era humanamente irrespirável, opressor, violento, ditatorial, sem liberdades, com pobreza e enfermidades expostas à luz do dia. O mal e o cheiro nauseabundos eram insuportáveis. Entretanto, ele sempre falou com amor, ensinou com brandura, discordou com respeito, condenou os erros para corrigir, anunciou a esperança e tocou as vidas, inclusive a de seus algozes, para os abençoar. No fim, já quase sem forças para respirar deu alento e salvação para um odioso ladrão e em seu último suspiro, disse, “Está Consumado”, “Pai, tuas mãos entrego o meu espírito”.
Os discípulos de Cristo sabem valorizar um suspiro, se importam com cada dor, se deixam sensibilizar com cada lágrima, se indignam com cada injustiça, sabem quanta exasperação há numa asfixia, mas, sabem também que a revolta e a rebeldia e o ódio não são o melhor caminho, desde que não tirem os olhos da cruz.
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Luiz Fernando dos Santos (1970-2022), foi ministro presbiteriano e era casado com Regina, pai da Talita e professor de teologia no Seminário Presbiteriano do Sul e no Seminário Teológico Servo de Cristo.
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