Por Escrito
- 25 de julho de 2019
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A nuvem, ela e o grito banguela
Um Dia de Cada Vez
Por Liz Valente
O sol bate na janela aberta. A nuvem abre caminho e ri pra ela, que nem nota. Segue adiante. Veste a roupa, desce a escada. Põe a mesa, esquenta a água. Toma o café esperando um sinal dos céus para ter a paz que tanto quer. A brisa sopra e toca o seu rosto amargurado de desgostos. Olha pro lado em busca de um lugar, algum abrigo para aninhar a alma. Perdida em devaneios, nem nota a flor, ou a pipa, segue o dia em melancolia. Os desalentos a guiam. O emprego que não queria, a cidade indesejável, a moradia no alto da ladeira.
Descolorida, reprimida por anseios insaciáveis e sonhos fora da realidade. Vive em seus pensamentos sem viver de fato o que lhe está disponível. No céu, a dança da despedida, e as nuvens cedem lugar para uma ventania. Toca o sino da catedral, toca a banda no meio da praça, mas nem nisso ela vê qualquer graça. Ouve apenas o toque do telefone, só que quando atende era a venda de um plano mais caro. Ela não dá atenção à contradição óbvia, segue tentando, segue vivendo e reclamando.
Enfim é tarde, que sábado vazio! As cores do céu são para ela indiferentes, mais interessantes é a tela do seu smartphone. As nuvens retornam sincronizadas e mais uma vez desapreciadas. O tempo vira e cai uma garoa, porém tudo o que ela pensa é na janela aberta. Não sente o cheiro de terra molhada, não sente a pele sendo lavada, não se importa com o alimento dos passarinhos. Quer mais do mundo e mais de Deus e nada disso lhe atinge. Não entende de onde possa vir tanto descuidado por parte daquele que, vendo sua dor, não lhe responde. A garoa engrossa e vira chuva, o ônibus caminha lentamente. No cruzamento, em frente a igreja, uma placa diz "eis que faço nova todas as coisas". Mas tudo que ela vê é "disse Jesus" e o outdoor da pizzaria ao lado.
O motorista assobiando lhe faz perceber que está distraída. Desce no próximo ponto. Busca abrigo num shopping camelô onde dá de cara com uma promoção de guarda-chuvas e capas de bíblias. A Bíblia exemplar está aberta no salmo 23 o qual memorizou quando criança. Compra um guarda-chuva com o dinheiro da janta e sente a fome apertar.
Sobe a Ladeira dos Mineiros, onde o boeiro foi consertado, mas, em sua opinião, não passa de obrigação municipal. Os postes foram trocados, mas foi graças àquele governador corrupto. As árvores estão sendo podadas em final de expediente, o trabalhador acena, gentil, e ela acha muito desnecessário.
Nesse momento cruza um doido da cidade gritando banguela "ê vida amargurada!" Ele grita olhando pra ela. Ouve. Nunca houve momento mais inesperado. Enfim algo lhe alcança. O homem banguela e desinstruído. Um louco lúcido e preciso. "Amargurada", reverbera o grito do homem molhado.
A noite cai e cessa a chuva, a nuvem sorri pois há algo acontecendo. As nuvens estão em ajuntamento. Não chove mais, mas a noite é densa. A voz do homem ressoa no ar e ela pensa, pensa. O homem que descia a ladeira gritando, trazendo grande incômodo para as mesas de jantar trouxe um incômodo diferente para ela. Sua existência ridícula. As nuvens juntinhas pareciam um rebanho, nem uma estrela passava por suas pernas. Ela não notou a formação, nem mesmo se deu conta da hora.
Subiu as escadas e fechou a janela, agachada secou a água, e deparou-se com as manchas de suas mãos. Ver as manchas foi para ela um começo. Não lamentou, nem mesmo fez comentários. Apenas percebeu suas mãos, haviam duas e funcionavam bem. Até tinham manchas e sinais da sua vida. "ê vida..." não ousou afirmar para si. A nuvem impaciente soltou uma gargalhada e o som de trovão encheu a sacada. Ela olhou para o céu. Ver o céu foi para ela um movimento. Anos e anos apenas olhando para si e para suas vontades, nunca parou para olhar para fora. "Que noite escura", pensou, "ê vida..." essa frase não saía de sua cabeça, mas não se permitia admitir tudo.
Não fosse aquele banguela. Aquele grito, aquela janela. Não fosse sua vontade de algo mais. O dia terminaria como outro qualquer. Mas o grito enchia a sala. E toda agressividade daquelas palavras foram para ela um soco nos devaneios. O grito molhado dava-lhe poucas opções de saída. Se fosse verdade que triste seria, mas negar ela não podia. Admitir a verdade saindo da boca de um homem daqueles significando uma sabedoria obscura, seria esse o sinal que ela tanto procura? Pode haver algo de sublime em um maluco gritando?
Os trovões cobriram seus pensamentos. A nuvem chorando, chorando. Tanto esforço, tantas tentativas. Finalmente ela sorria. Mesmo não sendo fruto direto do esforço da nuvem ainda assim ela sentia. Entrou num banho quente e decidiu dormir mais cedo. Satisfeita, deitou. Era a sua primeira gota de doçura.
• Liz Valente é mestra em arquitetura e urbanismo. Também é cantora, compositora e autora de 4 peças teatrais. Casada com Pedro Paulo e mãe do João, do Davi e da Maria.
>> Conheça o livro A Arte e a Bíblia, de Francis Schaeffer.
Leia mais:
» Eu sei onde tudo começou
Por Liz Valente
O sol bate na janela aberta. A nuvem abre caminho e ri pra ela, que nem nota. Segue adiante. Veste a roupa, desce a escada. Põe a mesa, esquenta a água. Toma o café esperando um sinal dos céus para ter a paz que tanto quer. A brisa sopra e toca o seu rosto amargurado de desgostos. Olha pro lado em busca de um lugar, algum abrigo para aninhar a alma. Perdida em devaneios, nem nota a flor, ou a pipa, segue o dia em melancolia. Os desalentos a guiam. O emprego que não queria, a cidade indesejável, a moradia no alto da ladeira.
Descolorida, reprimida por anseios insaciáveis e sonhos fora da realidade. Vive em seus pensamentos sem viver de fato o que lhe está disponível. No céu, a dança da despedida, e as nuvens cedem lugar para uma ventania. Toca o sino da catedral, toca a banda no meio da praça, mas nem nisso ela vê qualquer graça. Ouve apenas o toque do telefone, só que quando atende era a venda de um plano mais caro. Ela não dá atenção à contradição óbvia, segue tentando, segue vivendo e reclamando.
Enfim é tarde, que sábado vazio! As cores do céu são para ela indiferentes, mais interessantes é a tela do seu smartphone. As nuvens retornam sincronizadas e mais uma vez desapreciadas. O tempo vira e cai uma garoa, porém tudo o que ela pensa é na janela aberta. Não sente o cheiro de terra molhada, não sente a pele sendo lavada, não se importa com o alimento dos passarinhos. Quer mais do mundo e mais de Deus e nada disso lhe atinge. Não entende de onde possa vir tanto descuidado por parte daquele que, vendo sua dor, não lhe responde. A garoa engrossa e vira chuva, o ônibus caminha lentamente. No cruzamento, em frente a igreja, uma placa diz "eis que faço nova todas as coisas". Mas tudo que ela vê é "disse Jesus" e o outdoor da pizzaria ao lado.
O motorista assobiando lhe faz perceber que está distraída. Desce no próximo ponto. Busca abrigo num shopping camelô onde dá de cara com uma promoção de guarda-chuvas e capas de bíblias. A Bíblia exemplar está aberta no salmo 23 o qual memorizou quando criança. Compra um guarda-chuva com o dinheiro da janta e sente a fome apertar.
Sobe a Ladeira dos Mineiros, onde o boeiro foi consertado, mas, em sua opinião, não passa de obrigação municipal. Os postes foram trocados, mas foi graças àquele governador corrupto. As árvores estão sendo podadas em final de expediente, o trabalhador acena, gentil, e ela acha muito desnecessário.
Nesse momento cruza um doido da cidade gritando banguela "ê vida amargurada!" Ele grita olhando pra ela. Ouve. Nunca houve momento mais inesperado. Enfim algo lhe alcança. O homem banguela e desinstruído. Um louco lúcido e preciso. "Amargurada", reverbera o grito do homem molhado.
A noite cai e cessa a chuva, a nuvem sorri pois há algo acontecendo. As nuvens estão em ajuntamento. Não chove mais, mas a noite é densa. A voz do homem ressoa no ar e ela pensa, pensa. O homem que descia a ladeira gritando, trazendo grande incômodo para as mesas de jantar trouxe um incômodo diferente para ela. Sua existência ridícula. As nuvens juntinhas pareciam um rebanho, nem uma estrela passava por suas pernas. Ela não notou a formação, nem mesmo se deu conta da hora.
Subiu as escadas e fechou a janela, agachada secou a água, e deparou-se com as manchas de suas mãos. Ver as manchas foi para ela um começo. Não lamentou, nem mesmo fez comentários. Apenas percebeu suas mãos, haviam duas e funcionavam bem. Até tinham manchas e sinais da sua vida. "ê vida..." não ousou afirmar para si. A nuvem impaciente soltou uma gargalhada e o som de trovão encheu a sacada. Ela olhou para o céu. Ver o céu foi para ela um movimento. Anos e anos apenas olhando para si e para suas vontades, nunca parou para olhar para fora. "Que noite escura", pensou, "ê vida..." essa frase não saía de sua cabeça, mas não se permitia admitir tudo.
Não fosse aquele banguela. Aquele grito, aquela janela. Não fosse sua vontade de algo mais. O dia terminaria como outro qualquer. Mas o grito enchia a sala. E toda agressividade daquelas palavras foram para ela um soco nos devaneios. O grito molhado dava-lhe poucas opções de saída. Se fosse verdade que triste seria, mas negar ela não podia. Admitir a verdade saindo da boca de um homem daqueles significando uma sabedoria obscura, seria esse o sinal que ela tanto procura? Pode haver algo de sublime em um maluco gritando?
Os trovões cobriram seus pensamentos. A nuvem chorando, chorando. Tanto esforço, tantas tentativas. Finalmente ela sorria. Mesmo não sendo fruto direto do esforço da nuvem ainda assim ela sentia. Entrou num banho quente e decidiu dormir mais cedo. Satisfeita, deitou. Era a sua primeira gota de doçura.
• Liz Valente é mestra em arquitetura e urbanismo. Também é cantora, compositora e autora de 4 peças teatrais. Casada com Pedro Paulo e mãe do João, do Davi e da Maria.
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