Opinião
- 26 de fevereiro de 2015
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A falta que Robinson Cavalcanti faz
Falta-nos uma biografia de Robinson Cavalcanti. Sem as mitificações e reificações de um personagem elevado à categoria de herói. Certamente ele não simpatizaria com este enquadramento e construção. Podemos sugerir um esboço biográfico que o veria como um sujeito histórico visto sob diferentes lentes, desde o católico convertido, o estudante obreiro do movimento estudantil (ABU), o militante, o acadêmico e o bispo. Enquanto não temos esta leitura mais ampla, vale descrever algo que está preservado de sua vida, de maneira incompleta, dentre outras lembranças e memórias.
No retorno da Cidade do Cabo para o Rio de Janeiro, passando por Johannesburgo e Buenos Aires, numa viagem de 17 horas num avião lotado, pude conversar longamente com Robinson Cavalcanti a partir de uma pergunta sobre o anglicanismo no oriente.
O Terceiro Congresso Lausanne para Evangelização Mundial havia se encerrado com a participação de 4.200 líderes de 198 países (16-25/10/2010), e começávamos a digerir o que ali acontecera em termos de mensagem, desafios, comunhão e missão. Percebi o quanto o então bispo teria o que dizer num evento que ficou marcado pela ausência de uma perspectiva mais crítica acerca da missão, ainda sob a hegemonia de uma leitura norte-americana, pragmática, conquistadora e proselitista.
Sem ressentimentos quanto à não participação como palestrante, expôs numa mirada a situação do anglicanismo mundial, suas divisões eclesiásticas, as lideranças principais, as relações com a Igreja Católica Romana, as tendências teológicas e as tensões em torno da questão da homossexualidade. No Congresso, agiu mais nos bastidores dialogando e fomentando os debates, dentro e fora do círculo anglicano, um dos poucos ali que estiveram presentes em 1974, no primeiro congresso.
Esta lembrança se une a tantas outras em seus fragmentos, seletivamente guardados e que agora servem para responder à pergunta sobre a falta que Robinson Cavalcanti faz hoje para a igreja brasileira. Daí evocar três aspectos da personalidade de Robinson que fariam diferença ao cenário que estamos vivendo: a sua memória, o seu humor e a sua lucidez.
Sua memória tinha a facilidade de trazer à lume tanto experiências de vida como de acontecimentos tidos como importantes para a história protestante, fossem nomes, lugares, debates e episódios. O pensamento rápido sintetizava um personagem ou um evento com uma frase ou afirmação, demonstrando uma reflexão previamente feita e já assentada sobre algum tema, sem precipitações. Sua memória era extremamente rica em detalhes e se projetava aos primórdios do cristianismo e do evangelicalismo amalgamando um ao outro, bem como de passagens dos evangélicos na América Latina e Brasil.
Esta herança e compromisso com a fé histórica, a “fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos”, andam escassos e rarefeitos na imediatista igreja brasileira, tão ciosa de resultados a qualquer custo, sobretudo do sagrado depósito. Esta era uma das falas de um Robinson bispo, preocupado com o continuum da mensagem cristã às novas gerações e guardião daquilo que deveria ser considerado legado puro dos antepassados, ou seja, de uma tradição cristã e evangélica.
Os últimos anos de Robinson foram marcados por este alinhamento que lhe valeu uma postura mais combatente e polemista ante questões internas do anglicanismo, mas que as projetava à totalidade da igreja no ocidente e no Brasil. Estava episcopalizado com uma tonalidade de discurso afeito ao de um bispo, pensando na pluralidade, na diversidade e na unidade da igreja. Um Robinson mais conservador e reagente às tendências de uma igreja mais liberal teologicamente.
Entretanto, podemos retomar outros Robinson, antecedente ao episcopado, mais militante, acadêmico e provocador de temáticas conflituosas à igreja como a política e a sexualidade. Esta rica vivência no movimento estudantil, na vida político partidária, na universidade, nos congressos e nas mobilizações populares proveu-lhe de uma bagagem intelectual, crítica e espirituosa que confluiu para uma espiritualidade engajada com as questões sociais.
O humor era uma das suas marcas da personalidade, unido à capacidade da fazer pensar. Fosse numa conversa informal ou numa palestra sua fala nunca se reduzia ao jargão, conseguindo extrair um riso de canto da boca pela tirada inteligente que lançava. Isto nos remetia ao espírito de um sujeito oriundo das Alagoas e de Pernambuco, conhecedor da cultura nordestina e que transitava por entre a riqueza dos folclores, dos sofrimentos, das alegrias, dos ditos e das práticas do cotidiano. Pelo humor desconstruía armaduras teológicas rígidas, bem como discursos enviesados pelo preconceito e pelos medos de uma religiosidade preocupada com as aparências.
Faz muita falta a lucidez das análises das conjunturas políticas e suas relações com o mundo evangélico. O alinhamento evangélico predominante às pautas reacionárias era desmontado de uma maneira contundente e elegante, acadêmica e profética, desde o pertencimento a uma matriz ideológica de esquerda. Como cientista político sabia mapear os cenários, as tendências, os grupos e as forças atuantes na sociedade e no Estado, identificando os evangélicos e os seus posicionamentos.
Era uma fala que poucos faziam no contexto evangélico com agudas dificuldades de fazer um diálogo entre a teologia e as ciências sociais. Ao mesmo tempo, tal lucidez denunciava, desde cedo, os modos como estes evangélicos se inseriam na política reproduzindo os mesmos vícios políticos, as fraquezas éticas, os conluios e a nulidade profética.
A recente eleição presidencial projetou uma divisão tanto ideológica (socialismo e capitalismo) como geográfica (nordeste e sudeste), um tanto anacrônica, mas que interessa à tentativa de desestabilização política. A busca por um motivo fundante para deslegitimar o governo eleito pelo voto tem encontrado na corrupção e na crise da Petrobrás as razões para a justificativa conservadora e temerosa de transformações sociais mais profundas.
O que o Robinson militante, cientista político, acadêmico, de humor refinado e progressista diria para nós hoje? Seria esta análise que faria?
Leia também
Reflexões de uma vida [textos reunidos de Robinson Cavalcanti]
Igreja evangélica: identidade, unidade e serviço [e-book gratuito de Robinson Cavalcanti]
Memorial Robinson Cavalcanti
No retorno da Cidade do Cabo para o Rio de Janeiro, passando por Johannesburgo e Buenos Aires, numa viagem de 17 horas num avião lotado, pude conversar longamente com Robinson Cavalcanti a partir de uma pergunta sobre o anglicanismo no oriente.
O Terceiro Congresso Lausanne para Evangelização Mundial havia se encerrado com a participação de 4.200 líderes de 198 países (16-25/10/2010), e começávamos a digerir o que ali acontecera em termos de mensagem, desafios, comunhão e missão. Percebi o quanto o então bispo teria o que dizer num evento que ficou marcado pela ausência de uma perspectiva mais crítica acerca da missão, ainda sob a hegemonia de uma leitura norte-americana, pragmática, conquistadora e proselitista.
Sem ressentimentos quanto à não participação como palestrante, expôs numa mirada a situação do anglicanismo mundial, suas divisões eclesiásticas, as lideranças principais, as relações com a Igreja Católica Romana, as tendências teológicas e as tensões em torno da questão da homossexualidade. No Congresso, agiu mais nos bastidores dialogando e fomentando os debates, dentro e fora do círculo anglicano, um dos poucos ali que estiveram presentes em 1974, no primeiro congresso.
Esta lembrança se une a tantas outras em seus fragmentos, seletivamente guardados e que agora servem para responder à pergunta sobre a falta que Robinson Cavalcanti faz hoje para a igreja brasileira. Daí evocar três aspectos da personalidade de Robinson que fariam diferença ao cenário que estamos vivendo: a sua memória, o seu humor e a sua lucidez.
Sua memória tinha a facilidade de trazer à lume tanto experiências de vida como de acontecimentos tidos como importantes para a história protestante, fossem nomes, lugares, debates e episódios. O pensamento rápido sintetizava um personagem ou um evento com uma frase ou afirmação, demonstrando uma reflexão previamente feita e já assentada sobre algum tema, sem precipitações. Sua memória era extremamente rica em detalhes e se projetava aos primórdios do cristianismo e do evangelicalismo amalgamando um ao outro, bem como de passagens dos evangélicos na América Latina e Brasil.
Esta herança e compromisso com a fé histórica, a “fé que de uma vez por todas foi entregue aos santos”, andam escassos e rarefeitos na imediatista igreja brasileira, tão ciosa de resultados a qualquer custo, sobretudo do sagrado depósito. Esta era uma das falas de um Robinson bispo, preocupado com o continuum da mensagem cristã às novas gerações e guardião daquilo que deveria ser considerado legado puro dos antepassados, ou seja, de uma tradição cristã e evangélica.
Os últimos anos de Robinson foram marcados por este alinhamento que lhe valeu uma postura mais combatente e polemista ante questões internas do anglicanismo, mas que as projetava à totalidade da igreja no ocidente e no Brasil. Estava episcopalizado com uma tonalidade de discurso afeito ao de um bispo, pensando na pluralidade, na diversidade e na unidade da igreja. Um Robinson mais conservador e reagente às tendências de uma igreja mais liberal teologicamente.
Entretanto, podemos retomar outros Robinson, antecedente ao episcopado, mais militante, acadêmico e provocador de temáticas conflituosas à igreja como a política e a sexualidade. Esta rica vivência no movimento estudantil, na vida político partidária, na universidade, nos congressos e nas mobilizações populares proveu-lhe de uma bagagem intelectual, crítica e espirituosa que confluiu para uma espiritualidade engajada com as questões sociais.
O humor era uma das suas marcas da personalidade, unido à capacidade da fazer pensar. Fosse numa conversa informal ou numa palestra sua fala nunca se reduzia ao jargão, conseguindo extrair um riso de canto da boca pela tirada inteligente que lançava. Isto nos remetia ao espírito de um sujeito oriundo das Alagoas e de Pernambuco, conhecedor da cultura nordestina e que transitava por entre a riqueza dos folclores, dos sofrimentos, das alegrias, dos ditos e das práticas do cotidiano. Pelo humor desconstruía armaduras teológicas rígidas, bem como discursos enviesados pelo preconceito e pelos medos de uma religiosidade preocupada com as aparências.
Faz muita falta a lucidez das análises das conjunturas políticas e suas relações com o mundo evangélico. O alinhamento evangélico predominante às pautas reacionárias era desmontado de uma maneira contundente e elegante, acadêmica e profética, desde o pertencimento a uma matriz ideológica de esquerda. Como cientista político sabia mapear os cenários, as tendências, os grupos e as forças atuantes na sociedade e no Estado, identificando os evangélicos e os seus posicionamentos.
Era uma fala que poucos faziam no contexto evangélico com agudas dificuldades de fazer um diálogo entre a teologia e as ciências sociais. Ao mesmo tempo, tal lucidez denunciava, desde cedo, os modos como estes evangélicos se inseriam na política reproduzindo os mesmos vícios políticos, as fraquezas éticas, os conluios e a nulidade profética.
A recente eleição presidencial projetou uma divisão tanto ideológica (socialismo e capitalismo) como geográfica (nordeste e sudeste), um tanto anacrônica, mas que interessa à tentativa de desestabilização política. A busca por um motivo fundante para deslegitimar o governo eleito pelo voto tem encontrado na corrupção e na crise da Petrobrás as razões para a justificativa conservadora e temerosa de transformações sociais mais profundas.
O que o Robinson militante, cientista político, acadêmico, de humor refinado e progressista diria para nós hoje? Seria esta análise que faria?
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Lyndon de Araújo Santos é historiador, professor universitário e pastor da Igreja Evangélica Congregacional em São Luís, MA. Faz parte da Fraternidade Teológica Latino-americana - Setor Brasil (FTL-Br).
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