Opinião
- 28 de junho de 2012
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A Bíblia como ferramenta missionária
No final de junho dei uma palestra em São Paulo por ocasião do VIII Fórum de Ciências Bíblicas, promovido pela Sociedade Bíblica do Brasil. O tema do fórum era “a relação entre missões e a Bíblia”. A minha contribuição foi em duas partes. Na primeira delas, considerei como podemos melhor correlacionar “missões” ou “missão” com a Bíblia. Era uma reflexão mais teológica e hermenêutica. Na segunda parte da palestra, considerei a Bíblia como ferramenta na expansão missionária do povo de Deus. Uma reflexão mais histórica. A partir de agora, falarei desta segunda parte da reflexão, uma vez que a primeira foi apresentada no mês passado.
Por esse motivo, consideremos a Bíblia em dois aspectos. Primeiro: a Bíblia como ferramenta no preparo missionário. Segundo: a Bíblia como ferramenta na prática missionária.
Com o desafio missionário, logo apareceram programas de preparo para o envio. A princípio, estes programas eram curtos, geralmente de poucas semanas, às vezes de um ou dois meses. Eventualmente os cursos se tornaram mais substanciais e incluíram matérias bíblicas³. Hoje, é comum estudar “teologia bíblica de missão” ou “fundamentos bíblicos para a obra missionária da igreja”. Nestas disciplinas, os grandes temas bíblicos de eleição, aliança, justiça e julgamento, esperança messiânica e salvação, criação e nova criação são interligados e tecidos em um pano de fundo bíblico essencialmente missionário.
Outro contexto muito importante onde a Bíblia é estudada com bastante proveito na perspectiva da missão da igreja é nos grandes encontros, congressos e conferências nacionais e internacionais. Recentemente, a carta aos Efésios foi estudada em pequenos grupos durante uma hora ou mais por milhares de líderes cristãos do mundo inteiro na Cidade do Cabo, no III Congresso Internacional de Evangelização – Lausanne III. Há anos que todas as reuniões do Concílio Mundial de Igrejas iniciam os dias com uma reflexão da Bíblia sobre a missão da igreja e o mesmo pode ser dito sobre o Congresso Brasileiro de Missões, além de outros semelhantes.
Com o retorno de alguns judeus para as suas terras depois do exílio babilônico e a dispersão de um número muito maior por todo o mundo antigo eventualmente dominado pelos gregos, a tradução das Escrituras hebraicas para grego durante os séculos II e III [Septuaginta] foi instrumental na manutenção da identidade cultural e religiosa dos judeus. Esta nova tradução para e a sua exposição nas sinagogas se tornaram os principais instrumentos missionários dos judeus para os não judeus e a inclusão destes “tementes a Deus” nas sinagogas por todo o império romano antes, durante e depois do surgimento do cristianismo.
A compilação dos documentos da igreja primitiva levou cerca de 300 anos, em grego, submetida a várias coletâneas até se completar, somente no século IV D.C.. Também exerceu um papel fundamental na consolidação e expansão da igreja primitiva. As citações feitas por Paulo na sua carta aos Romanos, o testemunho no livro de Atos da leitura regular das Escrituras nas reuniões da igreja e a afirmação de Pedro da circulação das cartas de Paulo nas primeiras comunidades cristãs são evidências do papel pastoral e missionário das Escrituras.
Não demorou muito para a expansão espantosa do cristianismo por todo o império romano. Tal expansão se deve a muitos fatores, acima de tudo, ao esforço missionário e testemunho corajoso dos primeiros cristãos. Hoje, sabemos que aspectos físicos e linguísticos facilitaram a expansão, como a rede de estradas romanas construídas para todos os lados e grego como língua franca pelo menos na parte oriental do império. Mas, outro fator enorme era a existência e a subsequente tradução das Escrituras. Desde o início, a fé judaico-cristã foi uma fé do “livro”, e este livro acompanhou o seu crescimento. Logo se fez necessária uma tradução para o latim. Jerônimo se encarregou de consolidar esforços anteriores e produzir eventualmente a Vulgata entre 382 e 420 D.C.. Assim, favoreceu a expansão missionária em Roma e regiões ocidentais e setentrionais.
Nas regiões do antigo império Sírio, conquistadas séculos atrás pelos gregos, o Antigo Testamento foi traduzido para siríaco já no século II D.C., e o Novo Testamento nos séculos II e IV. Lá, um dos maiores movimentos missionários da história ascendeu: os nestorianos, que levou o evangelho até a Índia e China. Até hoje esta tradução, conhecida como a Peshitta, é usada por cristãos por todo o Oriente Médio.
Havia outras traduções da Bíblia nesta época e o seu impacto missionário também era grande. Ulfilas fez uma tradução para godo no século IV, instrumento na evangelização de bárbaros germânicos na Romênia. Traduções também para saídica, língua egípcia. No século V, São Mesrob fez uma tradução para o armênio e assim evangelizou boa parte da Armênia, de tal modo que se este se tornou o primeiro país oficialmente “cristão”. Outras traduções deste período incluíam a copta para o Egito, a nubiana antiga para o Sudão, a etiópia para a Etiópia, e a georgiana para o sul da Rússia.
Avançando mais na história, importantes traduções incluem para o inglês antigo, por São Beda, e para o alemão antigo no século VIII. As primeiras traduções para o chinês pelos nestorianos5 também ocorreram no século VIII, e o antigo eslavônico por Cirilo e Metódio no século IX para a região dos Bálcãs e a Morávia. Essa lista vai longe. No século XIII a Bíblia já estava disponível em 22 línguas.
No século XVII, o Evangelho de Mateus foi traduzido para o malaio, na Polinésia. Também João Elliot traduziu a Bíblia para algoniquim, língua dos índígenas que habitavam Massachusetts, nordeste dos Estados Unidos. No período moderno, é preciso destacar a importância missionária da tradução da Bíblia, ou partes dela, para o Tamil na Índia, pelo missionário dinamarquês Bartolomeu Ziegenbalg. Para o Bengali, Sânskrito. Para outras línguas, pelo inglês William Carey, conhecido popularmente como o “pai” das missões modernas.
Na mesma época, o americano Adoniram Judson, que serviu na Birmânia, traduziu a Bíblia para a língua burmanesa e o inglês Henrique Martyn traduziu o Novo Testamento para o urdu, o persa e pérsico-judaico. E o dinamarquês, Paul Olaf Bodding, a traduziu para Santali, língua da Índia oriental. No século XIX, a Bíblia foi traduzida em cerca de 400 novas línguas e no século XX em mais de 800. Em cada um destes casos, é possível, até necessário, correlacionar a tradução da Bíblia com a expansão missionária do evangelho, e isto se repetiu centenas de vezes ao longo da história.
Conclusão
O mais surpreendente para nossa reflexão não é a correlação entre a Bíblia e a obra missionária. Também não é o papel prático da redação, compilação, tradução e distribuição da Bíblia no avanço dos propósitos de Deus no mundo desde a antiguidade. Mas, o mais surpreendente é que demoramos em reconhecer isto, promover fóruns sobre o assunto, estudar com bom proveito esta correlação a fim de nos perguntar: como, então, podemos melhor nos empenhar na missão de Deus em direção a sua nova criação, novos céus e nova terra, por meio deste instrumento e bússola tão precioso?
Por esse motivo, consideremos a Bíblia em dois aspectos. Primeiro: a Bíblia como ferramenta no preparo missionário. Segundo: a Bíblia como ferramenta na prática missionária.
A Bíblia como texto no preparo missionário (ou o estudo de missões)
No Brasil e fora dele, a Bíblia sempre foi um texto fundamental para o preparo tanto pastoral quanto missionário. No final dos anos 70, surgiu uma nova conscientização da responsabilidade missionária da igreja¹. Tipicamente havia forte apelo às passagens bíblicas classicamente “missionárias” como a “grande comissão nos Evangelhos”. Mas também havia tentativas de elaborar a temática missionária ao longo das Escrituras².
Com o desafio missionário, logo apareceram programas de preparo para o envio. A princípio, estes programas eram curtos, geralmente de poucas semanas, às vezes de um ou dois meses. Eventualmente os cursos se tornaram mais substanciais e incluíram matérias bíblicas³. Hoje, é comum estudar “teologia bíblica de missão” ou “fundamentos bíblicos para a obra missionária da igreja”. Nestas disciplinas, os grandes temas bíblicos de eleição, aliança, justiça e julgamento, esperança messiânica e salvação, criação e nova criação são interligados e tecidos em um pano de fundo bíblico essencialmente missionário.
Outro contexto muito importante onde a Bíblia é estudada com bastante proveito na perspectiva da missão da igreja é nos grandes encontros, congressos e conferências nacionais e internacionais. Recentemente, a carta aos Efésios foi estudada em pequenos grupos durante uma hora ou mais por milhares de líderes cristãos do mundo inteiro na Cidade do Cabo, no III Congresso Internacional de Evangelização – Lausanne III. Há anos que todas as reuniões do Concílio Mundial de Igrejas iniciam os dias com uma reflexão da Bíblia sobre a missão da igreja e o mesmo pode ser dito sobre o Congresso Brasileiro de Missões, além de outros semelhantes.
A Bíblia como ferramenta de missões.
A história do desenvolvimento e expansão do povo de Deus [missão] simplesmente não pode ser contada sem referência à tradução da Bíblia. São praticamente uma e a mesma história. Começa com o surgimento e a recuperação das Escrituras pelos judeus4.
Quando os judeus foram levados para o cativeiro no século VI, surgiram as primeiras traduções das Escrituras para o aramaico [o Targum], que se tornou a língua franca do exílio. Assim, estas traduções serviram tanto para manter a identidade dos judeus enquanto estavam longe das suas terras, quanto para divulgar os preceitos das Escrituras hebraicas entre os estrangeiros.
Quando os judeus foram levados para o cativeiro no século VI, surgiram as primeiras traduções das Escrituras para o aramaico [o Targum], que se tornou a língua franca do exílio. Assim, estas traduções serviram tanto para manter a identidade dos judeus enquanto estavam longe das suas terras, quanto para divulgar os preceitos das Escrituras hebraicas entre os estrangeiros.
A compilação dos documentos da igreja primitiva levou cerca de 300 anos, em grego, submetida a várias coletâneas até se completar, somente no século IV D.C.. Também exerceu um papel fundamental na consolidação e expansão da igreja primitiva. As citações feitas por Paulo na sua carta aos Romanos, o testemunho no livro de Atos da leitura regular das Escrituras nas reuniões da igreja e a afirmação de Pedro da circulação das cartas de Paulo nas primeiras comunidades cristãs são evidências do papel pastoral e missionário das Escrituras.
Não demorou muito para a expansão espantosa do cristianismo por todo o império romano. Tal expansão se deve a muitos fatores, acima de tudo, ao esforço missionário e testemunho corajoso dos primeiros cristãos. Hoje, sabemos que aspectos físicos e linguísticos facilitaram a expansão, como a rede de estradas romanas construídas para todos os lados e grego como língua franca pelo menos na parte oriental do império. Mas, outro fator enorme era a existência e a subsequente tradução das Escrituras. Desde o início, a fé judaico-cristã foi uma fé do “livro”, e este livro acompanhou o seu crescimento. Logo se fez necessária uma tradução para o latim. Jerônimo se encarregou de consolidar esforços anteriores e produzir eventualmente a Vulgata entre 382 e 420 D.C.. Assim, favoreceu a expansão missionária em Roma e regiões ocidentais e setentrionais.
Nas regiões do antigo império Sírio, conquistadas séculos atrás pelos gregos, o Antigo Testamento foi traduzido para siríaco já no século II D.C., e o Novo Testamento nos séculos II e IV. Lá, um dos maiores movimentos missionários da história ascendeu: os nestorianos, que levou o evangelho até a Índia e China. Até hoje esta tradução, conhecida como a Peshitta, é usada por cristãos por todo o Oriente Médio.
Havia outras traduções da Bíblia nesta época e o seu impacto missionário também era grande. Ulfilas fez uma tradução para godo no século IV, instrumento na evangelização de bárbaros germânicos na Romênia. Traduções também para saídica, língua egípcia. No século V, São Mesrob fez uma tradução para o armênio e assim evangelizou boa parte da Armênia, de tal modo que se este se tornou o primeiro país oficialmente “cristão”. Outras traduções deste período incluíam a copta para o Egito, a nubiana antiga para o Sudão, a etiópia para a Etiópia, e a georgiana para o sul da Rússia.
Avançando mais na história, importantes traduções incluem para o inglês antigo, por São Beda, e para o alemão antigo no século VIII. As primeiras traduções para o chinês pelos nestorianos5 também ocorreram no século VIII, e o antigo eslavônico por Cirilo e Metódio no século IX para a região dos Bálcãs e a Morávia. Essa lista vai longe. No século XIII a Bíblia já estava disponível em 22 línguas.
No século XVII, o Evangelho de Mateus foi traduzido para o malaio, na Polinésia. Também João Elliot traduziu a Bíblia para algoniquim, língua dos índígenas que habitavam Massachusetts, nordeste dos Estados Unidos. No período moderno, é preciso destacar a importância missionária da tradução da Bíblia, ou partes dela, para o Tamil na Índia, pelo missionário dinamarquês Bartolomeu Ziegenbalg. Para o Bengali, Sânskrito. Para outras línguas, pelo inglês William Carey, conhecido popularmente como o “pai” das missões modernas.
Na mesma época, o americano Adoniram Judson, que serviu na Birmânia, traduziu a Bíblia para a língua burmanesa e o inglês Henrique Martyn traduziu o Novo Testamento para o urdu, o persa e pérsico-judaico. E o dinamarquês, Paul Olaf Bodding, a traduziu para Santali, língua da Índia oriental. No século XIX, a Bíblia foi traduzida em cerca de 400 novas línguas e no século XX em mais de 800. Em cada um destes casos, é possível, até necessário, correlacionar a tradução da Bíblia com a expansão missionária do evangelho, e isto se repetiu centenas de vezes ao longo da história.
Conclusão
O mais surpreendente para nossa reflexão não é a correlação entre a Bíblia e a obra missionária. Também não é o papel prático da redação, compilação, tradução e distribuição da Bíblia no avanço dos propósitos de Deus no mundo desde a antiguidade. Mas, o mais surpreendente é que demoramos em reconhecer isto, promover fóruns sobre o assunto, estudar com bom proveito esta correlação a fim de nos perguntar: como, então, podemos melhor nos empenhar na missão de Deus em direção a sua nova criação, novos céus e nova terra, por meio deste instrumento e bússola tão precioso?
Notas
¹A ABUB promoveu uma primeira conferência missionária nacional em Curitiba em 1974.
2 Por exemplo, o meu livro, Missões na Bíblia. Princípios Gerais (São Paulo: Vida Nova, 1992) surgiu como uma compilação de palestras dadas em uma conferência missionária em 1983.
3 A primeira escola que ofereceu cursos de formação missionária de um a dois anos foi o Centro Evangélico de Missões (CEM), em 1983.
teólogo, missionário da Igreja Presbiteriana Independente, capelão d’A Rocha Brasil e surfista nas horas vagas. Pela Editora Ultimato, é autor de O Propósito de Deus e a Nossa Vocação, A Visão Missionária na Bíblia e Trabalho, Descanso e Dinheiro. É blogueiro da Ultimato.
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