Opinião
- 04 de julho de 2024
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40 anos do álbum Contraste
Integrantes do Grupo Pescador relembram a gravação
Por Carlinhos Veiga
Os dias que separam os feriados de Natal e Ano Novo costumam ser tranquilos e calmos, exceto para áreas como o comércio. É uma semana que a maioria dedica à família, aos amigos, a avaliação de fim de ano e a reflexão do novo ciclo por vir. Mas não foi assim que cinco rapazes, entre 16 e 24 anos, viveram os últimos dias de 1983. Ao desembarcarem na capital paulista, tinham como meta a gravação de um álbum. Talentosos e movidos por sonhos juvenis, não poderiam imaginar que gravariam um dos mais emblemáticos discos da década, que se tornaria uma referência para a música popular brasileira cristã, se me permitem usar essa nomenclatura (reconheço ser uma expressão limitante e não ideal). Falo do álbum “Contraste”, gravado pelo Grupo Pescador, formado por Davi Kerr, Luciano Garruti Filho, João Alexandre Silveira, José Roberto Prado e Rogério Boccato.
O Grupo Pescador surgiu despretensiosamente. Davi e Luciano eram da mesma igreja e haviam participado do conjunto de jovens da Presbiteriana do Jardim Guanabara, em Campinas. Rogério frequentava também esta comunidade e só veio a participar do conjunto algum tempo depois, pois era mais jovem. Na época tocava o violão. Segundo Luciano, “Rogério sempre foi muito inteligente, daí talvez a razão de ser precoce em tudo que fazia, sempre se relacionando com pessoas mais velhas”. Participavam também de uma equipe que dirigia os momentos de louvor nos acampamentos “Comunhão”, realizados nos meses de férias escolares, ao lado de músicos vindos de outras cidades. Um amigo comum, Luiz Carlos de Oliveira, certa vez os convidou para integrarem um grupo musical inovador, voltado para a evangelização, o “Novo Concerto”, ao lado de Ueslei Fatareli.
Enquanto isso, em outro bairro da cidade, João Alexandre participava com sua família da Igreja Pedra Viva, advinda da Igreja Quadrangular. Servia ali especialmente na área musical. A nova igreja despertava o interesse daqueles que buscavam uma “renovação” espiritual. Luciano, Rogério e Luiz Carlos começaram a visitar a Pedra Viva e assim conheceram o João, um talentoso violonista, que acompanhava as canções nos cultos, na época frequentados por um grupo reduzido. A partir desse encontro um elo de amizade se formou.
João Alexandre tinha um aluno de violão, estudante universitário, que morava numa república no Jardim Primavera. Numa das aulas, conheceu um rapaz recém chegado, vindo de São Paulo, aluno de Fisioterapia da PUC Campinas. Seu nome, José Roberto. Ele havia sido presenteado pelo pai com uma flauta transversal há seis meses e foi estudar com o renomado músico João Dias Carrasqueira, em São Paulo. A cada final de aula recebia de seu professor uma pequena canção para apresentar no encontro seguinte. “Eram serestas, valsinhas, choros e xotes, um mais lindo que o outro”, relata José Roberto. Quando João Alexandre ouviu o Zé tocar ficou maravilhado e começou a harmonizar as canções. Os encontros se tornaram frequentes e assim nasceu uma forte amizade.
Para prosseguirmos na história, preciso chamar atenção para essa confluência de anseios comuns. Nada acontece unilateralmente. Em janeiro de 1983, o João Alexandre assistiu o show “Folia” do grupo Boca Livre, no antigo Teatro Tuca, em São Paulo, ao lado dos amigos que formavam a 39ª equipe de Vencedores Por Cristo (VPC). E saiu de lá inquieto: “Por que não existe uma música cristã com essa verve mais brasileira?”. Naquela mesma época, Rogério, agora se dedicando à bateria, estava bastante empolgado com a música e cogitava chamar os amigos em sua casa para simplesmente “reunir, tocar e fazer canções”. Convidou o Luciano, o João e o Davi para esse encontro. O José Roberto, que recebeu do grupo o apelido de Zé da Flauta, veio um pouco depois, trazido pelo João Alexandre. Assim, no dia 31 de outubro de 1983, uma segunda feira, eles se reuniram para arranjar algumas músicas de suas autorias ao estilo Boca Livre, vozes e instrumentos. A ideia era ensaiar durante a tarde e depois, à noite, irem para o aniversário de uma amiga comum. Porém a empolgação fez com que mudassem os planos. Perderam o aniversário, mas deixaram prontos três arranjos que seriam utilizados no disco que ansiavam gravar.
O certo é que em pouco menos de dois meses estavam os cinco rapazes, entrando pelas portas do estúdio COMEV, na 24 de maio, centro de São Paulo, para gravar o sonhado LP. Vieram numa Kombi abarrotada de instrumentos e malas, conduzida pelo Dan Kerr, irmão do Davi. O COMEV era na época um estúdio de 16 canais, com um gravador de fita de uma polegada. No grupo, apenas o João Alexandre e o Davi tinham alguma experiência em gravação. O João havia participado ali mesmo no disco “Tudo ou Nada”, de Vencedores Por Cristo. O Davi, em algumas outras gravações também com VPC. Conseguiram emprestado com o Nelson Bomilcar o seu Fender Precision Bass, com VPC o violão de 12 cordas, a bateria e trouxeram seus instrumentos pessoais. No primeiro dia de gravações contaram com a presença do Sérgio Pimenta que deu valiosas dicas de estúdio para os meninos. Em gratidão e reconhecimento o convidaram para escrever a apresentação na contracapa do disco. Um detalhe o João recorda com carinho e fez questão de registrar: “no estúdio, todo dia antes de gravar, a gente botava o joelho no chão e pedia para que este trabalho alcançasse a vida das pessoas de alguma maneira”.
O processo escolhido foi de gravarem todos ao mesmo tempo, como se tocassem ao vivo. Depois vinham com os overdubs e as coberturas com outros instrumentos. Tinham pressa, pois tudo precisaria ser concluído em poucos dias. Pela ficha técnica dá para perceber que havia uma versatilidade entre os músicos, especialmente nas cordas. O Luciano e o Davi se revezaram nos baixos, violões e guitarras, dependendo da música. O João gravou os violões, alguns ovations, os violões de 12 e a maioria das guitarras. Rogério fez todas as baterias e percussões; o Zé Roberto todas as flautas. Contaram ainda com a participação especial da Rosa Maria Gomes nos teclados. Rogério lembra que ela veio na quinta feira e passou o dia no estúdio gravando as coberturas no Prophet 5 e no piano elétrico Sueti, emprestado pelo Nelson Pinto Júnior. Os arranjos instrumentais foram criados coletivamente. A gravação foi feita por José Claudemir Terrengui, técnico do COMEV.
Para o vocal, exatamente por falta de tempo e dinheiro, decidiram que o João Alexandre gravaria todas as vozes. Primeiramente, porque assim acelerariam o processo de gravação; segundo, porque ele havia concebido os arranjos vocais e tinha tudo “na cabeça”; em terceiro, pelo desgaste vocal de alguns que ficaram gripados ou roucos, depois de horas e dias submetidos ao ambiente com ar condicionado. Precisamos lembrar que estamos falando de tempos onde ainda não havia o recurso tecnológico de afinação de vozes, por meio do Melodyne ou algo parecido. O cantor realmente precisava cantar bem e afinado e isso demandava tempo e cuidado. “O João tinha uma capacidade muito mais depurada de cantar e afinar”, descreveu o Rogério. Apenas em um trecho da música “De Trem” houve uma rápida participação do Rogério no vocal, cantando as notas graves que o João não alcançava. O certo é que houve unanimidade e tomaram essa decisão. Davi, porém, lamenta: “Em minha opinião, empobreceu a sonoridade pela falta de outros timbres vocais... a pressão por tempo levou-nos a essa opção”. E o José Roberto ressalta que apesar dos imprevistos e da falta de tempo, “todos nós estávamos prontos, pois ensaiamos muito”.
Sem dúvida, a questão financeira pesou. O disco foi gravado praticamente sem recursos próprios. Os rapazes até conseguiram com o José Grilo, diretor do estúdio, boas condições para o pagamento. Cotizaram algumas despesas entre si, mas ainda não era suficiente. Imagine só, cinco estudantes tendo que bancar um projeto desses. Quem deu uma generosa e fundamental ajuda foi o Reginal Vieira, amigo próximo do João, custeando as horas de estúdio. Além disso, relembram a cooperação do Ziltinho Neves, irmão de integrantes da equipe do Comunhão, que ofereceu seu apartamento na Brigadeiro Luiz Antônio, quase esquina com a Paulista, para se hospedarem, sem custos. As refeições eram tomadas próximas do estúdio, em restaurantes simples que serviam, segundo o João Alexandre, “os bifes Rambo: frios, duros e com nervos de aço”.
Uma das dificuldades que encontraram foi na definição do repertório. Havia uma efervescência de novas canções que se adaptavam muito bem ao estilo do grupo. A maioria na lista de candidatas era do João Alexandre, mas também constavam composições do Luciano Garruti, Ueslei Fatareli, João Carlos de Oliveira, entre outros. Precisariam escolher apenas dez músicas. Davi lembra que a escolha foi feita pelo João, Luciano e o Ueslei Fatareli, tendo como critério o objetivo evangelístico e a variedade de estilos. Luciano, no entanto, recorda que para a escolha ser a mais democrática possível decidiram realizar um sorteio. João diz que foi uma escolha de todos.
Na noite do dia 30 de dezembro, sexta-feira e penúltimo dia do ano de 1983, os meninos voltaram de Kombi para casa, felizes com o resultado e sonhando com o trabalho pronto. Mas, a história não encerrava ali. Algum tempo depois, João Alexandre e Luciano Garruti retornaram ao COMEV para a mixagem do trabalho com o Claudemir. Depois de mais uns dias de trabalho, finalmente a fase de gravação e mixagem estava concluída. Agora, seriam necessários outros passos igualmente importantes e onerosos: prensagem, capa e distribuição. Como não tinham recursos, o trabalho ficou guardado por um tempo esperando que aparecesse uma produtora ou editora que se interessasse pela obra.
Finalmente a gravadora adventista Novo Tempo decidiu prensar e lançar o “Contraste”. O Grupo Pescador assinou um contrato inicial de três mil cópias, mantendo o direito de propriedade da obra. Assim, no final de 1984, um ano depois do término das gravações, o público teve a oportunidade de conhecer as canções do disco: “Canção da Alvorada”, “Não preciso sonhar”, “A Andorinha”, “Vento Ligeiro”, “Conversão”, “De Trem”, entre outras pérolas.
Só que nesse meio tempo muita coisa aconteceu. Movido por uma visão de criar um grupo brasileiro de louvor e adoração, o Pr Nelson Pinto Júnior reuniu uma equipe de excelentes músicos e formou o MILAD – Ministério de Louvor e Adoração, no ano de 1984. Dentre os convidados estavam o João Alexandre e o José Roberto. É inegável quanto o ministério do MILAD foi relevante para todo o país. Mas é certo que a saída do João e do Zé custou o fim do Pescador antes mesmo do lançamento do disco. Segundo o Rogério, a saída dos dois foi um choque tremendo para os demais: “Eles estavam convictos de que era isso que tinham de fazer”. Davi ressalta que não houve discussão se deveriam sair ou não, mas sim, frustração e depois oração para que Deus os guiasse e abençoasse. O Pescador até tentou seguir adiante com os demais integrantes. Convidaram um tecladista, o Karl Nicolaev, para cooperar, mas entenderam que sem os cinco não seria possível prosseguir.
Entre a gravação e o disco prensado o Pescador se apresentou duas ou três vezes. Na verdade, nem mesmo eles conseguem dizer com precisão quantas foram. Citam uma na Igreja Batista Central, que seria considerada como um pré-lançamento do disco, outra na Igreja Nazareno Central, ambas em Campinas, e uma viagem ao Rio de Janeiro para participar da gravação do disco “Janires e amigos”, em dezembro de 1984, na Rádio Boas Novas. Esse disco também marcou época. Janires, na época integrante do Rebanhão, reuniu cerca de dez bandas e artistas cristãos, entre eles o Grupo Pescador, e produziu um dos primeiros LPs de música cristã gravados ao vivo no Brasil.
Quando o contrato com a gravadora Novo Tempo se encerrou, os músicos do Grupo Pescador acertaram com a GKerr Produções, do Guilherme Kerr, o lançamento de uma nova tiragem, em 1989, mudando a arte da capa. A distribuição foi realizada pela Luz para o Caminho (LPC). Findando esse período, a matriz ficou com o João Alexandre que fez uma nova capa e lançou o trabalho em CD, em 1997, com distribuição de VPC. Para a edição digital, contou com o trabalho excepcional do Eduardo Sider, que recuperou a obra, juntando trechos da fita, danificada pelo tempo, com o vinil, igualando o som por meio de análises de frequências. Segundo o João Alexandre, o Eduardo fez um verdadeiro milagre, coisa de gênio. Hoje está disponível nas plataformas de música por streaming (para ouvir, clique aqui).
Depois de mais de 40 anos o “Contraste” ainda embala os sonhos e a fé de muita gente. São inúmeros os depoimentos que chegam até eles, vindos de pessoas que ainda ouvem e se sentem abençoados por essas canções. Os meninos hoje são sessentões, ou quase. Davi Kerr é formado em ciências da computação e trabalha como perito computacional. Luciano Garruti é tradutor juramentado; atualmente grava um novo trabalho com a participação de artistas conhecidos. João Alexandre Silveira seguiu na carreira musical e se despontou com um dos maiores nomes da música cristã no Brasil; hoje tem seu próprio estúdio e produz o trabalho de inúmeros artistas. José Roberto Prado é pastor e dirige uma organização humanitária voltada especialmente aos refugiados, apátridas e migrantes em risco social. Rogério Boccato também prosseguiu na música; há quase vinte anos atua nos Estados Unidos como educador em universidades; como baterista e percussionista acompanha grandes nomes do jazz contemporâneo.
Ouça o podcast Novos Acordes, com Carlinhos Veiga, edição 408 de Ultimato aqui.
REVISTA ULTIMATO | PARA QUE SERVE A TEOLOGIA?
A resposta à pergunta “Para que serve a teologia?” revela que ela serve a Deus, exaltando-o como Senhor. Serve a igreja, ajudando-a a conhecer e a adorar seu Deus. Serve o mundo, revelando a verdadeira fonte de sabedoria, beleza, sentido e salvação.
A teologia é resultado de esforço acadêmico e também do convívio singular entre cristãos; envolve profundo estudo, mas também ocorre na singela e comprometida leitura das Escrituras. Depende do Espírito, por isso implica humildade. Ajuda a conhecer a Deus e a amá-lo.
É disso que trata a matéria de capa da edição 408 da revista Ultimato. Para assinar, clique aqui.
Saiba mais:
» Ser Evangélico sem Deixar de Ser Brasileiro, Gerson Borges
» A Arte e a Bíblia, Francis Schaeffer
» Dezenove cantores e sete músicos de quinze países diferentes participam da gravação da música “Em Cristo só”, por Carlinhos Veiga
» Coragem estética, responsabilidade teológica e criatividade poética são os pilares do Coletivo Candiero, por Carlinhos Veiga
» Ouça o podcast “Novos acordes” da edição 408 de Ultimato aqui.
Por Carlinhos Veiga
Os dias que separam os feriados de Natal e Ano Novo costumam ser tranquilos e calmos, exceto para áreas como o comércio. É uma semana que a maioria dedica à família, aos amigos, a avaliação de fim de ano e a reflexão do novo ciclo por vir. Mas não foi assim que cinco rapazes, entre 16 e 24 anos, viveram os últimos dias de 1983. Ao desembarcarem na capital paulista, tinham como meta a gravação de um álbum. Talentosos e movidos por sonhos juvenis, não poderiam imaginar que gravariam um dos mais emblemáticos discos da década, que se tornaria uma referência para a música popular brasileira cristã, se me permitem usar essa nomenclatura (reconheço ser uma expressão limitante e não ideal). Falo do álbum “Contraste”, gravado pelo Grupo Pescador, formado por Davi Kerr, Luciano Garruti Filho, João Alexandre Silveira, José Roberto Prado e Rogério Boccato.
O Grupo Pescador surgiu despretensiosamente. Davi e Luciano eram da mesma igreja e haviam participado do conjunto de jovens da Presbiteriana do Jardim Guanabara, em Campinas. Rogério frequentava também esta comunidade e só veio a participar do conjunto algum tempo depois, pois era mais jovem. Na época tocava o violão. Segundo Luciano, “Rogério sempre foi muito inteligente, daí talvez a razão de ser precoce em tudo que fazia, sempre se relacionando com pessoas mais velhas”. Participavam também de uma equipe que dirigia os momentos de louvor nos acampamentos “Comunhão”, realizados nos meses de férias escolares, ao lado de músicos vindos de outras cidades. Um amigo comum, Luiz Carlos de Oliveira, certa vez os convidou para integrarem um grupo musical inovador, voltado para a evangelização, o “Novo Concerto”, ao lado de Ueslei Fatareli.
Enquanto isso, em outro bairro da cidade, João Alexandre participava com sua família da Igreja Pedra Viva, advinda da Igreja Quadrangular. Servia ali especialmente na área musical. A nova igreja despertava o interesse daqueles que buscavam uma “renovação” espiritual. Luciano, Rogério e Luiz Carlos começaram a visitar a Pedra Viva e assim conheceram o João, um talentoso violonista, que acompanhava as canções nos cultos, na época frequentados por um grupo reduzido. A partir desse encontro um elo de amizade se formou.
João Alexandre tinha um aluno de violão, estudante universitário, que morava numa república no Jardim Primavera. Numa das aulas, conheceu um rapaz recém chegado, vindo de São Paulo, aluno de Fisioterapia da PUC Campinas. Seu nome, José Roberto. Ele havia sido presenteado pelo pai com uma flauta transversal há seis meses e foi estudar com o renomado músico João Dias Carrasqueira, em São Paulo. A cada final de aula recebia de seu professor uma pequena canção para apresentar no encontro seguinte. “Eram serestas, valsinhas, choros e xotes, um mais lindo que o outro”, relata José Roberto. Quando João Alexandre ouviu o Zé tocar ficou maravilhado e começou a harmonizar as canções. Os encontros se tornaram frequentes e assim nasceu uma forte amizade.
Para prosseguirmos na história, preciso chamar atenção para essa confluência de anseios comuns. Nada acontece unilateralmente. Em janeiro de 1983, o João Alexandre assistiu o show “Folia” do grupo Boca Livre, no antigo Teatro Tuca, em São Paulo, ao lado dos amigos que formavam a 39ª equipe de Vencedores Por Cristo (VPC). E saiu de lá inquieto: “Por que não existe uma música cristã com essa verve mais brasileira?”. Naquela mesma época, Rogério, agora se dedicando à bateria, estava bastante empolgado com a música e cogitava chamar os amigos em sua casa para simplesmente “reunir, tocar e fazer canções”. Convidou o Luciano, o João e o Davi para esse encontro. O José Roberto, que recebeu do grupo o apelido de Zé da Flauta, veio um pouco depois, trazido pelo João Alexandre. Assim, no dia 31 de outubro de 1983, uma segunda feira, eles se reuniram para arranjar algumas músicas de suas autorias ao estilo Boca Livre, vozes e instrumentos. A ideia era ensaiar durante a tarde e depois, à noite, irem para o aniversário de uma amiga comum. Porém a empolgação fez com que mudassem os planos. Perderam o aniversário, mas deixaram prontos três arranjos que seriam utilizados no disco que ansiavam gravar.
O certo é que em pouco menos de dois meses estavam os cinco rapazes, entrando pelas portas do estúdio COMEV, na 24 de maio, centro de São Paulo, para gravar o sonhado LP. Vieram numa Kombi abarrotada de instrumentos e malas, conduzida pelo Dan Kerr, irmão do Davi. O COMEV era na época um estúdio de 16 canais, com um gravador de fita de uma polegada. No grupo, apenas o João Alexandre e o Davi tinham alguma experiência em gravação. O João havia participado ali mesmo no disco “Tudo ou Nada”, de Vencedores Por Cristo. O Davi, em algumas outras gravações também com VPC. Conseguiram emprestado com o Nelson Bomilcar o seu Fender Precision Bass, com VPC o violão de 12 cordas, a bateria e trouxeram seus instrumentos pessoais. No primeiro dia de gravações contaram com a presença do Sérgio Pimenta que deu valiosas dicas de estúdio para os meninos. Em gratidão e reconhecimento o convidaram para escrever a apresentação na contracapa do disco. Um detalhe o João recorda com carinho e fez questão de registrar: “no estúdio, todo dia antes de gravar, a gente botava o joelho no chão e pedia para que este trabalho alcançasse a vida das pessoas de alguma maneira”.
O processo escolhido foi de gravarem todos ao mesmo tempo, como se tocassem ao vivo. Depois vinham com os overdubs e as coberturas com outros instrumentos. Tinham pressa, pois tudo precisaria ser concluído em poucos dias. Pela ficha técnica dá para perceber que havia uma versatilidade entre os músicos, especialmente nas cordas. O Luciano e o Davi se revezaram nos baixos, violões e guitarras, dependendo da música. O João gravou os violões, alguns ovations, os violões de 12 e a maioria das guitarras. Rogério fez todas as baterias e percussões; o Zé Roberto todas as flautas. Contaram ainda com a participação especial da Rosa Maria Gomes nos teclados. Rogério lembra que ela veio na quinta feira e passou o dia no estúdio gravando as coberturas no Prophet 5 e no piano elétrico Sueti, emprestado pelo Nelson Pinto Júnior. Os arranjos instrumentais foram criados coletivamente. A gravação foi feita por José Claudemir Terrengui, técnico do COMEV.
Para o vocal, exatamente por falta de tempo e dinheiro, decidiram que o João Alexandre gravaria todas as vozes. Primeiramente, porque assim acelerariam o processo de gravação; segundo, porque ele havia concebido os arranjos vocais e tinha tudo “na cabeça”; em terceiro, pelo desgaste vocal de alguns que ficaram gripados ou roucos, depois de horas e dias submetidos ao ambiente com ar condicionado. Precisamos lembrar que estamos falando de tempos onde ainda não havia o recurso tecnológico de afinação de vozes, por meio do Melodyne ou algo parecido. O cantor realmente precisava cantar bem e afinado e isso demandava tempo e cuidado. “O João tinha uma capacidade muito mais depurada de cantar e afinar”, descreveu o Rogério. Apenas em um trecho da música “De Trem” houve uma rápida participação do Rogério no vocal, cantando as notas graves que o João não alcançava. O certo é que houve unanimidade e tomaram essa decisão. Davi, porém, lamenta: “Em minha opinião, empobreceu a sonoridade pela falta de outros timbres vocais... a pressão por tempo levou-nos a essa opção”. E o José Roberto ressalta que apesar dos imprevistos e da falta de tempo, “todos nós estávamos prontos, pois ensaiamos muito”.
Sem dúvida, a questão financeira pesou. O disco foi gravado praticamente sem recursos próprios. Os rapazes até conseguiram com o José Grilo, diretor do estúdio, boas condições para o pagamento. Cotizaram algumas despesas entre si, mas ainda não era suficiente. Imagine só, cinco estudantes tendo que bancar um projeto desses. Quem deu uma generosa e fundamental ajuda foi o Reginal Vieira, amigo próximo do João, custeando as horas de estúdio. Além disso, relembram a cooperação do Ziltinho Neves, irmão de integrantes da equipe do Comunhão, que ofereceu seu apartamento na Brigadeiro Luiz Antônio, quase esquina com a Paulista, para se hospedarem, sem custos. As refeições eram tomadas próximas do estúdio, em restaurantes simples que serviam, segundo o João Alexandre, “os bifes Rambo: frios, duros e com nervos de aço”.
Uma das dificuldades que encontraram foi na definição do repertório. Havia uma efervescência de novas canções que se adaptavam muito bem ao estilo do grupo. A maioria na lista de candidatas era do João Alexandre, mas também constavam composições do Luciano Garruti, Ueslei Fatareli, João Carlos de Oliveira, entre outros. Precisariam escolher apenas dez músicas. Davi lembra que a escolha foi feita pelo João, Luciano e o Ueslei Fatareli, tendo como critério o objetivo evangelístico e a variedade de estilos. Luciano, no entanto, recorda que para a escolha ser a mais democrática possível decidiram realizar um sorteio. João diz que foi uma escolha de todos.
Na noite do dia 30 de dezembro, sexta-feira e penúltimo dia do ano de 1983, os meninos voltaram de Kombi para casa, felizes com o resultado e sonhando com o trabalho pronto. Mas, a história não encerrava ali. Algum tempo depois, João Alexandre e Luciano Garruti retornaram ao COMEV para a mixagem do trabalho com o Claudemir. Depois de mais uns dias de trabalho, finalmente a fase de gravação e mixagem estava concluída. Agora, seriam necessários outros passos igualmente importantes e onerosos: prensagem, capa e distribuição. Como não tinham recursos, o trabalho ficou guardado por um tempo esperando que aparecesse uma produtora ou editora que se interessasse pela obra.
Finalmente a gravadora adventista Novo Tempo decidiu prensar e lançar o “Contraste”. O Grupo Pescador assinou um contrato inicial de três mil cópias, mantendo o direito de propriedade da obra. Assim, no final de 1984, um ano depois do término das gravações, o público teve a oportunidade de conhecer as canções do disco: “Canção da Alvorada”, “Não preciso sonhar”, “A Andorinha”, “Vento Ligeiro”, “Conversão”, “De Trem”, entre outras pérolas.
Só que nesse meio tempo muita coisa aconteceu. Movido por uma visão de criar um grupo brasileiro de louvor e adoração, o Pr Nelson Pinto Júnior reuniu uma equipe de excelentes músicos e formou o MILAD – Ministério de Louvor e Adoração, no ano de 1984. Dentre os convidados estavam o João Alexandre e o José Roberto. É inegável quanto o ministério do MILAD foi relevante para todo o país. Mas é certo que a saída do João e do Zé custou o fim do Pescador antes mesmo do lançamento do disco. Segundo o Rogério, a saída dos dois foi um choque tremendo para os demais: “Eles estavam convictos de que era isso que tinham de fazer”. Davi ressalta que não houve discussão se deveriam sair ou não, mas sim, frustração e depois oração para que Deus os guiasse e abençoasse. O Pescador até tentou seguir adiante com os demais integrantes. Convidaram um tecladista, o Karl Nicolaev, para cooperar, mas entenderam que sem os cinco não seria possível prosseguir.
Entre a gravação e o disco prensado o Pescador se apresentou duas ou três vezes. Na verdade, nem mesmo eles conseguem dizer com precisão quantas foram. Citam uma na Igreja Batista Central, que seria considerada como um pré-lançamento do disco, outra na Igreja Nazareno Central, ambas em Campinas, e uma viagem ao Rio de Janeiro para participar da gravação do disco “Janires e amigos”, em dezembro de 1984, na Rádio Boas Novas. Esse disco também marcou época. Janires, na época integrante do Rebanhão, reuniu cerca de dez bandas e artistas cristãos, entre eles o Grupo Pescador, e produziu um dos primeiros LPs de música cristã gravados ao vivo no Brasil.
Quando o contrato com a gravadora Novo Tempo se encerrou, os músicos do Grupo Pescador acertaram com a GKerr Produções, do Guilherme Kerr, o lançamento de uma nova tiragem, em 1989, mudando a arte da capa. A distribuição foi realizada pela Luz para o Caminho (LPC). Findando esse período, a matriz ficou com o João Alexandre que fez uma nova capa e lançou o trabalho em CD, em 1997, com distribuição de VPC. Para a edição digital, contou com o trabalho excepcional do Eduardo Sider, que recuperou a obra, juntando trechos da fita, danificada pelo tempo, com o vinil, igualando o som por meio de análises de frequências. Segundo o João Alexandre, o Eduardo fez um verdadeiro milagre, coisa de gênio. Hoje está disponível nas plataformas de música por streaming (para ouvir, clique aqui).
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- Carlinhos Veiga é pastor, músico e jornalista. Blog Carlinhos Veiga.
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