Por Ana Terra

 

Em um barco de papel no meio do mar, está uma família. Os ventos rugem sobre o barco, chicoteiam seus rostos – os mesmos ventos que os trouxeram para tão longe. Em um dia, acordaram com o sol para trabalhar, o tilintar de talheres na cozinha, o cheiro de chá pela casa, a voz de um vizinho chamando à porta, o canto das aves pela janela. Noutro dia, ervas foram fervidas no fogão, e uma notícia foi sussurrada para que as crianças não a escutassem. À medida que o tempo passou, a cidade continuou com seu ritmo. O vento pareceu parado, denso e carregado de incertezas. Até que subitamente os rumores explodiram em realidade, deixando estilhaços, gritos e corpos sem vida no chão. Só lhes restou partir.

Agora, em meio ao mar revolto, está essa família. E, sobre tudo ao que se deve agarrar, agarram-se a si mesmos. De todos os lados, ondas pontiagudas ameaçam submergir vidas inteiras no esquecimento; transformá-las em números frios numa manchete de jornal. Mas os números nunca contarão suas histórias, não dirão o que os fazia sorrir, não ressoarão o som de suas risadas nem perpetuarão o calor de seus abraços.

No entanto, neste momento, não há números. Em um efêmero barco de papel, eles permanecem. Até que, em meio à escuridão, uma luz rompe as cortinas da noite e se estende até seus rostos – os vê! Luz que acalenta a alma e, em seu último suspiro de esperança, lhes permite sonhar de novo.

Como tocar corações com tinta e papel? Como cristã e artista, esse questionamento sempre me acompanha e permeia, desde o meu tempo devocional, à mesa de criação. Esta ilustração surgiu de um projeto de pesquisa na universidade chamado “A ilustração crítica no design ativista”, que se propôs a compreender como designers e ilustradores podem criar soluções de design que vão além da apreciação estética ou de motivações mercadológicas, e que abracem causas pelas quais vale a pena lutar.

Partindo de uma cosmovisão bíblica, sabemos que o trabalho é um chamado a servir o próximo. Timothy Keller diz que, ao exercermos nossos trabalhos, somos “agentes do amor providencial de Deus sobre os outros”.1 Assim, neste cenário de reflexão sobre as mazelas do mundo e aquilo que, em contrapartida, dignifica o ser humano, foi que encontrei na crise mundial de refugiados motivação para a composição desta ilustração.

Para me permitir contar essa história por meio da arte, foi necessário dar um passo para fora da minha zona de conforto. E para, com sorte, emocionar aqueles que observam esta obra final, tive que, primeiro, eu mesma chorá-la. Mas como é precioso o ofício de criar e, por meio dele, despertar olhares atentos e corações dispostos. Pintar em um mundo sedento por paz e trazer vislumbres de um reino de justiça e acolhimento que um dia será, mas que começa agora.

 

Nota

  1. KELLER, Timothy; ALSDORF, Katherine. Como integrar fé e trabalho: nossa profissão a serviço do reino de Deus. São Paulo: Vida Nova, 2014. p. 23.

 

  • Ana Terra, 22 anos. Sou cristã, ilustradora e estudante de design gráfico pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisadora de Iniciação Científica por dois anos na área de design social, aplicado a questões de migração e refúgio. Uma admiradora das obras do grande Criador, que como filha não pode deixar de criar. Instagram: @anaterra.art.

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