Será que sofremos do mesmo tipo de esnobismo cronológico descrito por C. S. Lewis em seu livro “Surpreendido pela Alegria”?

Por Mariana Santana Souza

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No livro “Surpreendido pela Alegria”, C. S. Lewis define o termo esnobismo cronológico da seguinte forma:

A aceitação acrítica do ambiente intelectual comum à nossa época e a suposição de que tudo o que ficou desatualizado é por isso mesmo desprezível.1

Lewis nos conta que ele mesmo sofria deste esnobismo cronológico e é interessante ler em seu relato como isto o levou a uma posição de ceticismo.

Em seus primeiros anos em Oxford, na época um ateu convicto, ele nos conta que havia decidido levar uma vida intelectual livre de pessimismo, autocomiseração ou flerte com qualquer ideia romântica ou sobrenatural se deixando guiar apenas pelo que ele chamava de “bom senso”.

E bom senso significava para mim, naquele momento, um afastamento, quase uma fuga espavorida, de toda sorte de romantismo, que até então fora o principal interesse de minha vida.2

Além disso, ele havia acabado de conhecer um “velho pároco irlandês que havia muito perdera a fé, retendo, porém, o meio de vida”3 e também precisou cuidar de uma pessoa querida que estava adoecendo e sofrendo de distúrbios mentais, na época Lewis atribuiu este sofrimento a crença deste homem no sobrenatural.

E esse homem, como eu bem sabia, não se mantivera na trilha habitual. Flertara com a teosofia, com a ioga, com o espiritismo, com a psicanálise e coisas afins. Provavelmente essas coisas não tinham na verdade ligação alguma com sua insanidade, para a qual (acredito) havia causas físicas. Mas não era essa minha análise na época. Eu pensara ter recebido um alerta; era a isso, a esse esperneio delirante no rés do chão, que no final todos os anseios românticos e especulações sobrenaturais conduziam o homem.4

Tudo isto cooperou para que ele abandonasse qualquer ideia de sobrenatural. Ele as havia “desmascarado” e não seria iludido novamente, de acordo com suas próprias palavras.

Esta costuma ser a posição de muitos atualmente em relação ao cristianismo. Muitos provavelmente respondem ao cristianismo como Lewis respondia ao antroposofismo de seu amigo Owen Barfield, dizendo:

“Ora — dane-se! — isso é coisa medieval” — exclamei; pois eu ainda tinha todo o esnobismo cronológico de meu período e usava os nomes de períodos anteriores como termos de desdém.5

Pois afinal o que uma religião antiga pode acrescentar em nossa vida presente? E foi este ceticismo, baseado na suposição de que ideias antigas precisam ser superadas, que Lewis chamou de “esnobismo cronológico”.

Foi durante acalorados debates com seu grande amigo Owen Barfield que Lewis começou a mudar este pensamento. Enquanto Barfield tentava convencer Lewis a aderir ao antroposofismo, Lewis acabou por se convencer a eliminar seu esnobismo cronológico. Ele entendeu que sua própria época era “um período” e certamente tinha, como todos os períodos, as próprias ilusões características. E que ideias não podem ser descartadas apenas por serem antigas e sim que precisam ser bem refutadas antes de serem rejeitadas.

Será que atualmente sofremos do mesmo tipo de esnobismo cronológico que Lewis sofreu?

Talvez, como disse anteriormente, esta característica possa ser encontrada nas pessoas que rejeitam o cristianismo, o comparando a algum tipo de “superstição medieval”. Porém e os cristãos? Será que estamos rejeitando tudo que é antigo e tradicional a favor do que é novidade?

Eu sinceramente acredito que não. Na verdade, o leitor cristão atual me lembra o Gil Pender, personagem principal do filme Meia-noite em Paris, que vive idealizando um passado que é melhor na imaginação do que na realidade.

Caímos no extremo oposto. Me parece que aceitamos acriticamente tudo que é antigo e rejeitamos qualquer novidade pelo simples fato de ser novo.

Eu não sei se isso se aplica em todas as áreas, mas quando o assunto é arte e literatura acredito que isto é um fato. E falando em literatura, o cristão ama um bom clássico. Principalmente se for estrangeiro. Cristãos leem de Jane Austen aos russos. E quanto mais velho melhor!

Não me entendam mal, obviamente vejo o valor destes livros. E por muito tempo eu li apenas eles. Eu era uma adolescente que amava ler os clássicos! De fato, eu era uma esnobe intelectual que gostava de ler “livros difíceis” enquanto meus poucos colegas que gostavam de ler estavam lendo livros típicos da adolescência. Ok eu não era tão esnobe assim, eu também lia Thalita Rebouças e John Green e não tinha vergonha de dizer isso para ninguém. Na verdade, minha teoria era de que todo gênero literário (inclusive o infanto-juvenil, como era o caso) tinha seus livros ruins e suas pérolas e eu continuo defendendo esta teoria!

Porém meu ponto é: eu era adolescente. Eu não tinha meu senso crítico formado e não sabia diferenciar um livro bom de um livro mediano ou mesmo ruim. E eu morria de medo de ler um livro ruim sem perceber! Era mais fácil ler um clássico pois ali eu já tinha a certeza garantida de qualidade.

E eu acho que é essa facilidade que guia as escolhas de leituras dos cristãos atualmente. É mais fácil assinar um clube de leitura que entrega belas edições de calhamaços todo mês do que ter que escolher o que ler. E não tem problema se for este o motivo! Se sua escolha for baseada na praticidade do clássico tudo bem. Ninguém é obrigado a ser um crítico literário e saber avaliar obras, por isso é “fácil” ler um clássico afinal centenas de pessoas por centenas de anos já comprovaram que é uma boa leitura. Se a facilidade do clássico for sua motivação leia os clássicos e se divirta!

Porém minha impressão é que nem sempre o cristão escolhe ler os grandes clássicos por querer uma diversão fácil e despretensiosa, mas sim por medo ou talvez, como a Mariana adolescente, por esnobismo – um tipo de esnobismo diferente do Lewis, mas igualmente enganoso.

Talvez seja o medo de não saber discernir entre boas histórias e histórias medíocres. Talvez seja o medo de “perder tempo” com livros que não valem tanto a pena. No entanto nós podemos sempre abandonar a leitura. Sim, isso é permitido. E eu entendo estes medos, mas eles podem estar nos impedindo de descobrir livros que amamos e de descobrir nosso gosto literário. Talvez estes medos estejam tornando o que devia ser o prazer da leitura em um ato de tortura e penitência com a falsa obrigação de encontrar o livro “certo”. E se talvez o medo for o de gastar dinheiro com um livro e no fim das contas não gostar dele, eu tenho uma solução infalível para este problema: bibliotecas públicas! A melhor invenção da humanidade (quem concorda respira).

Ou, na pior das hipóteses, talvez seja puro esnobismo. A falsa ideia de que nenhuma leitura contemporânea é digna do nosso investimento. Como disse anteriormente, é fácil escolher ler os grandes clássicos afinal centenas de pessoas, muito mais inteligentes do que nós, já disseram que eles são bons (e a gente parece super inteligente repetindo isso). Porém não seria divertido descobrir uma leitura atual que seja de boa qualidade? Eu vivo essa experiência com frequência, tanto no trabalho quanto nas minhas leituras pessoais, e posso afirmar que é uma sensação ótima.

Claro que de vez em quando encontro livros que podem até ser bons, mas que não são para mim (e isso também pode acontecer com um livro clássico), ou, pior, encontro livros que são realmente ruins. Mas lembra? Nós podemos abandonar a leitura! Sem peso nenhum na consciência. Afinal livro é igual chocolate, tem quem goste de chocolate branco, tem quem goste de chocolate ao leite e tem quem goste de chocolate amargo e orgânico de produção local. No final das contas não existe bem um certo ou errado, embora alguns possam causar um desconforto estomacal, no fim, é tudo chocolate.

Comecei o texto citando C. S. Lewis e terminei falando de chocolate, mas acho que Lewis aprovaria “pois comer e ler são dois prazeres que se combinam admiravelmente.”6

Notas:

  1. Surpreendido pela Alegria, capítulo 13.
  2. Idem.
  3. Idem.
  4. Idem.
  5. Idem.
  6. Surpreendido pela Alegria, capítulo 9.

 

    • Mariana Santana, estudante de Letras e membro da Igreja Presbiteriana do Brasil junto com seu marido. Escreve sobre literatura e teologia no Instagram @marianaeoslivros.
    • Não acredito muito nisso. Existe sim um valorização da literatura antiga, sobretudo no meio acadêmico, mas não é o que as pessoas mais querem ler, principalmente em ficção. Não vejo de forma alguma que tenha uma maior valorização do antigo, ao contrário, cada vez mais se ignora o antigo. As pessoas, principalmente os mais jovens, até gostam do antigo, mas ainda preferem vê-lo sobre uma perspectiva superior como tudo o que é atual é melhor do que o que é antigo e na vida do cristão isso também é muito visível quando vemos grande tendência de se ignorar ou desvalorizar a grande tradição, a história da igreja, os teólogos do passado, as confissões de fé e até o Primeiro Testamento. A busca por novas respostas para problemas atuais é intensa, e poucos consideram a eficácia de considerar as respostas que já foram dadas. Talvez o debate sobre esnobismo cronológico seja mais necessário que nunca.

  1. Thiago Francisco da Silva Paula

    Acho que já tinha ouvido você comentar sobre esse esnobismo cronológico. Rejeitar o passado ou rejeitar o presente, a gente vive de extremos. Sobre os clássicos, é óbvio que passaram pelo crivo do tempo, mas isso não quer dizer que eles eram os melhores livros da época. Alguns podem ter se perdido. E outra coisa, esses livros são clássicos porque muitas pessoas os perceberam como tal. Os clássicos do futuro – que são os livros presentes – vão ter que ser selecionados por alguém. É um pouco como a diferença de uma criança, que recebe as coisas quase mastigadas, a um adulto, que prepara a própria comida, sabe discernir. Não deveria ser uma blasfêmia admitir que um livro da semana passada é melhor do que um livro do milênio passado.

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