Não devemos nos manter distantes da Criação, mas caminhar pelo Jardim, como fez o Senhor, e enxergar o potencial de cada canto que nos causa encanto debaixo do sol – cultivar

Por Julia Gomes

Nos últimos tempos passei a prestar atenção em como pessoas cristãs têm enxergado a natureza e as possíveis implicações para as perspectivas observadas. Entre sermões, aulas, falas, diálogos, notei algo recorrente em praticamente todos: a natureza é feita para o ser humano, a Terra é nossa. Mas será que essa é a verdade que as Escrituras alegam sobre a Criação?

Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem. (Sl 24.1)

Essa lente hegemônica dentro das igrejas reflete algo não compatível com o cristianismo, uma visão antropocêntrica acerca da Criação. Pois quando tentamos, por menor que seja o esforço, obter parte do que não é nosso, estamos buscando uma glória que não nos pertence.

Note, ensinamos nossas crianças desde cedo na escola dominical que somos mordomos do Senhor Criador ao passo que alegamos a posse da Criação. Tal afirmação é no mínimo contraditória, pois há quem consiga possuir algo e ser mordomo?

Se a Terra é nossa, então podemos fazer o que bem entendemos com ela, inclusive, por mais estúpido que soe, destruí-la. No entanto, caso essa afirmação esteja incorreta, como declaram as Escrituras, então, existem maneiras corretas de habitá-la, visto que somos apenas peregrinos aqui por um breve instante.

Isso é constatado na Lei de Deus quando os israelitas estavam para adentrar em Canaã. O Senhor faz questão de ressaltar que aquela mesma terra prometida que estavam prestes a chegar não lhes pertencia. Ademais, no livro de Apocalipse é dito a sobre o destino daqueles que destroem a Terra.

Também a terra não será vendida em definitivo, porque a terra é minha; pois vocês são para mim estrangeiros e peregrinos. (Lv 25.23)

As nações se iraram; e chegou a tua ira. Chegou o tempo de julgares os mortos e de recompensares os teus servos, os profetas, os teus santos e os que temem o teu nome, tanto

pequenos como grandes, e de destruir os que destroem a terra. (Ap 11.18)

O leitor pode estar pensando neste momento: “Mas e quanto a Gênesis 1.26?”. Vejamos o texto:

E Deus disse: — Façamos o ser humano à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.

Tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os animais que rastejam pela terra.

O texto é claro: “tenha o ser humano domínio sobre toda a terra”. Entretanto, questiono a forma como interpretamos domínio. O modo como o Criador tem domínio sobre toda a existência não é de tirania ou ditatorial, afinal, em toda a Bíblia vemos um Soberano criativo que sustenta, cuida, cultiva e contempla a obra de suas mãos. Francis Schaeffer expressou muito bem seu pensamento a respeito:

Nós temos domínio sobre a natureza: ela não é nossa. Pertence a Deus, e nós devemos exercer nosso domínio sobre estas coisas não como se fossêmos destinados a explorá-las, mas como coisas emprestadas ou confiadas a nós. ¹

Muito diferente do nosso domínio após a Queda, com práticas destrutivas, utilitaristas, irresponsáveis e exploratórias. Assim, o que Deus espera de seu povo é que continuemos o que Ele um dia começou, o cultivo e cuidado para com a Criação, de forma criativa nos vários âmbitos da existência (arte, ciência, natureza, sociedade, etc.) – o Mandato Cultural.

Em João 3.16 o próprio Cristo revela o motivo de sua vinda “porque Deus amou o κόσμος (cosmos)”. O amor do Criador a tudo o que Ele criou. Isso é grande! Significa que essa é a razão de enviar seu Filho, tanto amou que encarnou. Para tanto, nós, como seus discípulos, devemos amar o que o Mestre ama.

Paulo também parece se apossar deste raciocínio em sua teologia. Em sua segunda carta à igreja de Corinto o apóstolo escreve:

Ora, tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos seres humanos e nos confiando a palavra da reconciliação (5:18-19).

Ele utiliza a mesma palavra no grego quando se refere ao mundo, o κόσμος (cosmos). Assim, tem-se mais uma vez a explicação para a vinda do Cristo, o Criador reconciliou-se com sua Criação, e ele expande o mandato cultural (de todo ser humano) para o ministério da reconciliação na vida de todo o cristão. Somos alvo e parte de sua maravilhosa obra na cruz.

Então, percebemos que, para habitar o Jardim de Deus, devemos seguir sua forma de dominar, em amor. Nós seres humanos temos de remodelar nosso modo de domínio, porém, os únicos que sabem esse “novo” modelo são os cristãos. Por conhecermos o Senhor, temos de ensinar e espelhar ao mundo seu jeito de cuidar e cultivar a Criação. Um dia, a natureza que fora confiada aos cuidados dos seres humanos será devolvida ao seu verdadeiro Senhor, e teremos de prestar contas do que cultivamos neste solo.

Contudo, da mesma forma que o egoísmo invade a maneira como nos relacionamos com a criação, também corrompe o modo como se pensa conservação da natureza, mostrando novamente a face antropocêntrica. A preservação da natureza vai além da apologética (apontar para o Criador supremo), e transcende a utilidade dos recursos naturais para nossa sobrevivência.

Mesmo se a Terra não nos desse de seu fruto, e não dependêssemos de seus recursos para sobreviver, a Criação teria lugar na existência pela verdade que o próprio Senhor a chamou para existir. Ela possui seu valor inato. Sabemos que se não cuidarmos e manejarmos direito os recursos sofreremos e, de fato, já estamos a sofrer; mas conservar a natureza por medo de perder o conforto reflete o narcisismo de nossa espécie. A beleza tem o direito à existência.

Desta forma, se em nossa visão cristã da natureza nós não tivermos feito nada pela natureza além de salvá-la e desfrutar da sua beleza, ainda assim seria de valor e valeria a pena. (Francis Schaeffer). ²

Ao pensar em conservação, logo associamos o pensamento à impressão de que a natureza é e deve permanecer intocável. Nada mais longe da verdade. Ela é tocável, pode ser degustada, contemplada, cheirada, escutada, imaginada, cultivada, transformada. O cristão deve pensar em preservar segundo o mantado cultural e o ministério da reconciliação, o que significa que não devemos nos manter distantes da Criação, mas caminhar pelo Jardim, como fez o Senhor, e enxergar o potencial de cada canto que nos causa encanto debaixo do sol – cultivar.

O Criador caminhou pelo Jardim após a Queda. Jesus, o carpinteiro, Deus em carne no mundo material, transformando a matéria, isto é, realizando trabalho. Fico a imaginar o que seus olhos viram em cada tábua de madeira, o que sua mente projetou e o que suas mãos realizaram. Cada farpa que lhe incomodou, cada obra que produziu. Sejam nossas pegadas como as do Mestre, o Deus que trabalha, descansa na provisão do Pai ao contemplar as flores e os pássaros, cultiva a criação e transforma a matéria em cultura – para a glória de Deus Pai.

Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre.

Amém! (Rm 11.36)

Notas
1. SCHAEFFER, F. Poluição e a morte do homem. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
2. Ibidem

 

  • Julia Oliveira Gomes, 20 anos, graduanda em ciências biológicas pela UFSCar. Ama C. S. Lewis, café e a Criação.

Saiba mais:

» Assim Na Terra Como no Céu – Experiências socioambientais na igreja local, Gínia César Bontempo, org.
» Caminhos de Um Evangelho Integral – Um roteiro teológico, Valdir Steuernagel, EDITOR
» As boas novas da criação, Juan Stam
» O gemido da criação e a missão da igreja, Timóteo Carriker
» Culto – Estação da Criação, Daniel Vieira

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