Temos nosso próprio tempo: (sobre)vivendo no ritmo do progresso
Por Stela Portes Soares
“Sempre em frente. Não temos tempo a perder.”[1] Em 1986, Renato Russo já expressava, na letra da canção “Tempo perdido”, a angústia de um tempo que não para (nunca). Esse é um dos maiores problemas que enfrentamos hoje. Simplesmente não temos tempo.
Bob Goudzwaard, em sua obra capitalismo e progresso: um diagnóstico da sociedade ocidental, explica como uma fé no progresso se tornou a base sobre a qual se deu a sociedade moderna. O autor traz a escassez do tempo como um dos resultados desse processo. Temos nosso próprio tempo? Ou o tempo nos tem?
O ritmo do progresso
Como um sapato apertado no pé, o ser humano tenta se encaixar no ritmo do progresso. Abre mão do sono, da boa alimentação, da família e do que ele puder para se comprimir em uma agenda lotada. Se aperta por todos os lados, se equilibrando entre os muitos afazeres de um dia que parece não ter fim. E quase sempre se estende noite adentro. O homem se fez caber no molde estabelecido pelo progresso.[2] Submetemos o ritmo natural determinado pelo Criador àquele ditado pela busca de resultados.
“O homem ocidental aprendeu a aceitar essa obediência à lei do progresso moderno como algo natural (…) Em vez de ser o criador do progresso, o homem está cada vez mais se tornando servo dele”[3]. O próprio Deus estabeleceu ritmos para vivermos. Ele separou dia e noite. Ele trabalhou e, por fim, descansou. Assim, temos em Deus e em sua criação o parâmetro normativo para o uso do tempo. Entretanto, o homem subverte tais parâmetros em nome de uma vida produtiva, correndo atrás do ter e se perdendo do ser.
Estamos sobre(vivendo)
O ritmo apressado afeta diretamente nossas vidas. Somos (de)formados por essa nova cadência que vai ditando não só o ritmo das tarefas, mas das relações humanas. Os laços duradouros são substituídos por laços efêmeros e superficiais.[4] Relações profundas precisam ser cultivadas, mas na lógica do progresso não há tempo para florescer. Temos um paradoxo: os seres humanos estão desconectados, vivendo a era da conectividade. Nesse sentido, o homem se desconectou não só dos outros, mas de si. Não há tempo “a perder”. Desenvolvemos diversos artifícios para economizar tempo, mas ele nunca esteve tão escasso. Numa busca constante por um futuro que nunca chega, perdemos o significado do presente. Nas palavras de Vanessa Belmonte,
Nos tornamos máquinas de produção ao invés de pessoas vivas, cujas estações nos moldam, nos formam. Somos zumbis. Pessoas que já não estão mais vivas e, por isso, são incapazes de viver o presente e de responder ao que cada estação nos traz para ser vivido em liberdade. Ignoramos o processo lento (e doloroso) de transformação pessoal, de crescimento, de santificação. Desrespeitamos os ritmos necessários para esse processo acontecer. E estamos colhendo os resultados… imaturidade, esterilidade, falta de sentido, exaustão.[5]
A família ocidental mostra como em um espelho o reflexo das relações individualistas em que cada criança tem seu quarto, seu dinheiro para realizar seus desejos.[6] Ela é tratada como um mini adulto e não como criança. Um dia acreditamos que “ter” iria satisfazer todas as nossas necessidades. No entanto, nos afogamos em uma busca desenfreada por bens materiais à procura da felicidade que parece cada dia mais distante. Trocamos pessoas por coisas. Trocamos pacto por contrato.
Conclusão
Dessa forma, observamos como a lógica capitalista do progresso trouxe resultados à vida dos indivíduos e às suas relações. À medida que tomamos consciência desse processo, é preciso estarmos atentos para não sermos levados por ele. Buscar intencionalidade naquilo que fazemos e entender que o fazemos diante de Deus. Não vivemos para nós mesmos. Vivemos para aquele que nos criou.
Assim, é necessário escolher a direção oposta e parar, descansar, reduzir, repensar, refletir. E como já mencionado, isso também leva tempo, mas é um pequeno começo.
Referências
GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e progresso: Um diagnóstico da sociedade ocidental. Trad. Leonardo Ramos. 1.ª ed. Viçosa: Ultimato, 2019. Número de páginas.
[1] RUSSO, Renato. Tempo Perdido. EMI. Disponível em: https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/22489/. Acesso em 1 out. 2022.
[2] GOUDZWAARD, Bob. Capitalismo e progresso: Um diagnóstico da sociedade ocidental. Trad. Leonardo Ramos. 1.ª ed. Viçosa: Ultimato, 2019. p. 183.
[3] Ibid., p. 131 – 139.
[4] Ibid., p. 169.
[5] BELMONTE, Vanessa. Os Ritmos da Vida. In: Lecionário. 27 nov. 2017. Disponível em: https://lecionario.com/os-ritmos-da-vida-79bb14ffccec. Acesso em 1 out. 2022.
[6] Ibid., p. 168
Saiba mais:
» O progresso e o reino de Deus – uma avaliação da Teologia da Crise de Emil Brunner
» Calvinismo e capitalismo: análise da origem do capitalismo e sua relação com o calvinismo, conforme Max Weber e H.R. Trevor – Roper