Por Daniel Theodoro

Agora Santiago era apenas um velho reverendo sozinho, calcificado ao apartamento depois que fora diagnosticado com perda severa de massa óssea. A caminhada matinal à beira da praia – mania adquirida ao lado da esposa quando era um jovem seminarista – foi barrada pela médica na última consulta. Qualquer nova queda traria outras consequências. Então tentava se acostumar à saudade da sensação dos pés na areia e das mãos com os dedos entrelaçados, açoitado pelo vento lateral da maresia que trazia o cheiro de leite de colônia dela.

Sem ter muito o que fazer depois de ler um salmo e orar, olhou pela janela da sacada luminosa e observou o movimentado porto. Esforçou-se para reparar nos desbotados navios cargueiros de cascos lascados, flutuando imponentes sobre a água esverdeada. Por causa da vista ofuscada pelo brilho da manhã de primavera, recolheu-se para dentro do apartamento para recuperar o equilíbrio da luminosidade na retina, topou com livros de Pessoa largados no chão e sentiu coragem de navegar. Era preciso.

Caminhou inseguro até o quarto que transformara em escritório. Lá estava o computador que nunca fora utilizado e servia de cabide para as roupas da semana. O maquinário era presente de um querido sobrinho-neto que o visitava muito pouco. Na última aparição, quatro meses atrás, o garoto surgiu com o aparelho e gastou menos de meia hora para ligá-lo e conectá-lo à Internet, deixando-o pronto para Santiago navegar nas redes sociais e, quem sabe, reencontrar velhos amigos de seminário. Tarefa nunca executada pelo reverendo.

Empurrado pela coragem, de frente para o computador, despiu a máquina de suas roupas, e clicou no único botão acessível à grossa mão teimosa. O branco da tela trouxe-lhe uma sensação de vitória, o computador ligou. Intuitivamente, Santiago procurou e achou na área de trabalho o ícone azul vazado com a letra F em branco, atalho feito pelo sobrinho-neto logo após criar um perfil para o reverendo na rede social.

Embora tivesse achado o símbolo, não conseguia tocá-lo com a seta do mouse; o indicativo não se movia. Havia algo errado. Tempos atrás, quando navegou ao lado do moço, tudo foi tão mais fácil. O jovem tinha agilidade nos dedos, movimentos seguros com a mão, habilidade em conduzir a pequena embarcação digital entre ondas de links, hipertextos e homepages. Agora, no entanto, a seta estava estática, inútil, ancorada, igual ao velho.

O Sol da tarde que entra pela janela do escritório divide a parede em metades de brilhos opostos. Santiago está sentado à cadeira em frente ao computador, exausto de lutar contra o mouse, derrotado, à deriva no mar infinito da tecnologia. Sente-se um inválido digital. Pega o mouse mais uma vez e nele percebe um escorrimento, um líquido verde oxidado. Abre com dificuldade o compartimento das baterias e nota que estouraram lá dentro. Então se conforma, porque sabe que não conseguirá caminhar até o mercado no quarteirão ao lado para comprar novas pilhas, nem pretende ligar pedindo ajuda ao atarefado sobrinho-neto.

Santiago caminha com cuidado de volta à sala e senta-se no sofá. Toma nas mãos uma novela qualquer de Hemingway e inicial a leitura. Se navegar não é possível, ler ainda é.

Daniel Theodoro, 33 anos. Cristão em reforma e de mudança para o Canadá. Casado com a Fernanda. Formado em Jornalismo e Letras.

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