Evangelize sempre, quando necessário, fale.

Praticamente todo evangélico já ouviu afirmarem que Francisco de Assis disse essa frase. Alguns a atribuem a Agostinho de Hipona. Quanto ao bispo, me abstenho de comentar, pois não li muito a obra dele. Mas com relação a Francisco, nunca a encontrei nos seus escritos. Na verdade, ele nos deixou pouca coisa escrita. Quase tudo que se conhece do Poverello (Pobrezinho, como ele, às vezes, é chamado em italiano) é fruto dos seus hagiógrafos.

Embora tudo indique que Francisco não tenha deixado por escrito essa recomendação, ela se aproxima do que os seus escritos e primeiros hagiógrafos nos ensinam sobre ele: que viveu e ensinou que a vivência social não é algo que o cristão deve evitar, mas, pelo contrário, buscar. Mas Francisco não usaria essa frase para justificar a evangelização apenas como uma vida de exemplo, como se faz hoje, só que de forma velada. O exemplo, para ele, não anula a proclamação.

Francisco foi muito importante para que pudéssemos entender que o mundo é o nosso lugar de busca de santidade e o nosso lugar de serviço, tanto por meio da palavra quanto por meio do exemplo. Até o final do século XI, a vida no claustro (claustrum) era o ideal de santidade. Só eram considerados cristãos de primeira categoria aqueles que viviam fora do mundo (sociedade). Ser monge era antecipar a vida no céu.

O Sacrum Commercium (Santa Aliança), documento do século XIII, representa bem como era diferente a relação de Francisco e dos menores com o mundo social. O Pobre de Assis e alguns companheiros tiveram um encontro com a Senhora Pobreza. Eis um dos diálogos:

Ela, […] levantou-se ligeiramente, pedindo que se lhe mostrasse o claustro. Conduzindo-a a uma colina, mostraram-lhe todo o orbe [mundo] que podiam ver, dizendo: ‘Senhora, este é o nosso Claustro’.”

Embora o vocabulário da história nos soe muito estranho (“Senhora Pobreza”, “claustro”, “orbe”, “sono muito tranqüilo”), ela nos ensina algo que a Reforma Protestante desenvolveu séculos depois, ou seja, a idéia de que a vida cristã, apesar de ser uma caminhada para a Eternidade, é vivida na história. Essa parábola é um convite para deixarmos de olhar apenas para o Céu (que os monges pensavam estar no fundo escuro das celas monásticas) para direcionarmos nossos olhos para os homens e a criação, isto é, o mundo, pois este revela a beleza do Criador. Para Francisco, “não amar o mundo” significava não amar o pecado e não se apegar a essa existência em detrimento da outra, pois defendia que o cristão deve sair do mundo (a vida dominada pelo pecado) para pregar ao mundo (os homens) enquanto caminha para o mundo que é bem melhor do que este (Vida Eterna). O Evangelho faz com que os homens sintam o cheirinho do banquete chamado Eternidade e desejem dele participar.

Só que o pessoal gostou tanto da idéia de olhar para a terra novamente (digo isso porque Cristo e os primeiros cristãos olharam) que parou de olhar para o céu. Para alguns, o que a Bíblia chama de Eternidade é uma sociedade justa; e “Volta de Cristo” nada mais é do que os ensinos dele vividos aqui e agora. Outros, mais coerentes com o que realmente querem, não falam e cantam mais sobre o “Céu, lindo Céu, Céu, lindo Céu” ou sobre o “Dia Glorioso”, pois querem as bênçãos, todas, nessa vida. Esqueceram-se de que o Poverello nos ensinou que o mundo é o nosso lugar de busca de santidade e onde servimos; que podemos amar, sem sentimento de culpa, a vida na história, desde que sem prejuízo do grande amor pela Vida Eterna.

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Flávio Américo Dantas de Carvalho, 26, presidente da ABUB Natal, é licenciado em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e mestrando em História da Igreja Medieval pela UFRN (Título da Dissertação: Espelho Claríssimo da Bondade de Deus: São Francisco e o mundo na obra de Tomás de Celano). Professor de História da Igreja. Candidato ao Sagrado Ministério pela Igreja Presbiteriana de Cidade Satélite.

  1. Observando o texto do lembrado sempre amigo Flávio, não posso deixar de admirar ainda mais a exposição do ora amigo então Francisco de Assis e ainda mais, perceber que a voz do que clama no deserto está ainda mais presente neste nosso tempo 21. O templo está de portas abertas, o mundo exposto à necessidade e o kerigma, bem necessário, poderá ser audível pelos tantos, se porventura entendermos a igreja como o “link” celestial para nos encher de motivação. De resto, fica minha saudade, não do céu, nem do inferno, mas de delicias que tornam este mundo ainda mais doce, o santo evangelho.

  2. Estou pensando nas palavras do Flávio (como sempre!). Meu mundo tem andado tao caótico, e talvez a urgência da proclamação esteja meio perdida. A gente fala tanto nessa vida, que o equilíbrio da palavra virou uma busca constante, juntamente com a coerência das atitudes.
    E o céu… eu gostava tanto de falar dele…
    Que bom ler esse texto do Flávio. Desse jeito que fala aos nossos corações e às nossas mentes. Faz-nos pensar de forma criativa, amável e consistente.

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