Opinião
- 04 de dezembro de 2014
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Unidade: modelo, causa e propósito
“Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim” (Jo 17.20-23).
Na “Oração Sacerdotal”, como normalmente é chamada a oração de João 17, nosso Senhor intercede junto ao Pai pelos Seus, suplicando pela a unidade da Igreja (vs 21-23). Não há nenhuma dúvida de que, para nosso Senhor, esse é um valor inegociável que revela a santidade da Igreja, afirma sua catolicidade e legitima sua missão.
Como, porém, falar de unidade na diversidade, se no contexto da própria Igreja muitos confundem unidade com uniformidade de governo, liturgia e corrente teológica. Além disso, houve um tempo em que a Igreja se dividia por divergência doutrinária, especialmente entre os anos 1960 e 1970. E se a partir da década de 1980, a Igreja passou a se dividir por questões de poder eclesiástico, nas últimas eleições, as divisões se intensificaram por motivos ideológicos ou político-partidários. Termos como “direitista” ou “esquerdista” têm sido utilizados no objetivo de desqualificar o irmão "opositor". Eu falei opositor? Mas, afinal, Cristo não morreu para que fôssemos um só povo?
A verdade é que a unidade proposta por Jesus encontra na cultura atual uma realidade de profunda adversidade. A conduta individualista, a mentalidade descartável, a lógica de competição e o modelo religioso de mercado são alguns fatores da cultura vigente que explicam os cismas como uma prática rotineira na experiência da Igreja.
A cooperação deu lugar à competição e o espírito de concorrência torna a comunhão impraticável. Por isso falar de Igreja não significa falar de Cristianismo; o deus presente no discurso religioso, com frequência, não é o Deus da Bíblia; "outro" evangelho tomou o lugar do Evangelho de Cristo; o ensino sobre pecado é raro; falar de mandamento bíblico e de transgressão moral é politicamente incorreto; e o mais grave, a concepção de salvação é temporária, materialista e terrena. A expectativa de fé de ordem meramente terrena faz de novos evangélicos “os mais miseráveis de todos os homens” (1 Co 15.19).
Estamos inseridos numa sociedade regida pelo financismo. Não há mais lugar para a contemplação, a meditação, a piedade e a transcendência. Valoriza-se a ação, o poder, a conquista e a inovação. A vida se reduz a uma experiência de produção, lucro, consumo e exploração. O drama é que nada disso, em última instância, é capaz de satisfazer e plenificar a alma. O homem se "coisifica" à medida que seu valor é atribuído pela capacidade de produção e de consumo. Assim, ele vale pelo que faz e/ou pelo que tem, não importando seu caráter, sua história e valores.
Diante desse processo de secularização, a Igreja vai se tornando obsoleta, uma peça de museu em completo desuso. Existimos, porém, sem exercer qualquer influência na cultura, na educação, no trabalho e nos diversos modos de relação econômica. Nossa ética não interfere nem influencia nos valores, decisões e escolhas do homem moderno. Daí, então, emerge uma “moral” anticristã, que determina novos costumes, o modelo de família, a política partidária e a promulgação de novas leis.
A cultura pós-moderna com sua lógica de consumo investe em conceitos de bem-estar, estética e autonomia. Nos “supermercados da fé”, a filosofia é semelhante. A oferta de crenças segue a lógica do marketing, prometendo status, prazer e autorealização. No fim de tudo, o que temos é o reinado da egolatria em que o homem fez de si mesmo o seu ídolo de estimação.
A Igreja sofre com o imediatismo e o pragmatismo da cultura. Diviniza-se “o aqui e o agora”, negando sua identidade histórica e se abstendo da esperança para o futuro. Assim, a Igreja vai se “asfixiando na clausura do agora”, como já disse Zygmunt Bauman. Tudo isso tem contribuído para a fragmentação e o divisionismo da Igreja, o que representa um grande desafio para quem não desistiu de sonhar com a “utopia” de uma igreja una.
Devemos considerar a oração do nosso Senhor, na dependência do Espírito Santo, com a finalidade de discernirmos pelo menos três verdades: (1) o modelo de unidade; (2) a causa primária da unidade; (3) o propósito da unidade.
1. O modelo de unidade (vs. 20-21)
Em sua oração, nosso Senhor suplica por uma unidade extraordinariamente inclusivista, envolvendo crentes de todas as épocas, culturas e lugares: "E rogo não somente por estes, mas também por aqueles que virão a crer em mim pela palavra deles" (v 20). O que quer dizer que a unidade da igreja repousa sobre o princípio da catolicidade. Logo, nenhuma igreja local é a igreja de Cristo. Afinal, se assim fosse, Cristo teria várias igrejas e não uma só. Semelhantemente, nenhum ministro é, antes de tudo, ministro da igreja local. Isso porque, antes de pertencermos a uma igreja local, Deus nos inseriu na igreja universal. Todo crente ou líder tem por dever zelar pela edificação da igreja universal e de sua unidade:
"O crente não é, em absoluto, tanto um membro de qualquer igreja local quanto da igreja católica de Cristo, que não se encontra confinada em nenhum lugar e nenhum povo. De forma semelhante, os ministros da igreja cristã não são apenas ministros de determinada comunidade específica, mas de toda a comunidade visível de crentes" (BANNERMAN, James) 1
Embora no plano local a Igreja seja plural, quanto à catolicidade a Igreja é una, significando que o Senhor Jesus tem uma só Igreja. Em inúmeras passagens, o apóstolo Paulo refere-se à Igreja de Deus sempre no singular (1Co 15.9; Gl 1.13; Ef 1.22; Fp 3.6; Cl 1.18, 24-25). Assim, quem enxerga a Igreja local com status de catolicidade termina se sentindo e agindo como o papa universal. Apesar das dificuldades que são reais e visíveis, devemos somar esforços em prol da Igreja espalhada em toda terra, caso contrário estaremos não apenas negando a unidade, mas também rejeitando o princípio da catolicidade.
Nesse sentido é que devemos atentar para as palavras de Henry Bullinger, antigo reformador da igreja:
“Assim como há somente um Deus, uma Palavra, um Filho, etc., da mesma forma há somente uma verdade divina, somente uma fé cristã verdadeira e somente uma igreja cristã universal na qual todos os crentes ouvem e aderem somente à verdade divina, amam o único Deus verdadeiro com todo o seu coração e alma e força, cultuam e invocam e reverenciam somente a Ele”. 2
Devemos considerar, ainda, que o relacionamento entre o Deus Pai e o Deus Filho se constitui no padrão de unidade que os crentes devem evidenciar como o povo do Reino. A unidade entre os crentes, ministros e igrejas locais deve ser semelhante àquela revelada na Trindade: "para que todos sejam um; assim como tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti, que eles estejam em nós..." (v 21).
Jesus não ora por uma unidade de natureza meramente externa. Trata-se de uma unidade essencialmente espiritual. Convém que, assim como as pessoas da Trindade são uma em essência, a Igreja seja uma em propósito, espiritualidade e missão. Significando que a unidade da Igreja precede e transcende qualquer estrutura eclesiástica tais como: ordem, convenção, sínodo, associação, confissão ou credo. Uma vez que a unidade emana de Cristo e para Cristo, afirmamos, então, que a unidade precede qualquer ministério, denominação ou documento doutrinário. Isto é, antes de ser externa, a unidade é interna; antes de ser formal, é mística; como mística, é a união de todos os membros num só corpo em Cristo Jesus.
O fato, porém, de pertencermos à igreja corpo místico e universal do nosso Senhor não garante a unidade automática de todos os crentes, ministros e comunidades locais. É dever de todos e expressão da espiritualidade bíblica cultivar e promover a unidade do corpo, mesmo em face às diferenças e divergências.
2. A causa primária da unidade (v. 22)
Após destacar o modelo e a abrangência dessa unidade, o Senhor nos revela porque sua oração é muito mais do que um sonho utópico: “Eu lhes dei a glória que me deste, para que sejam um, assim como nós somos um” (v 22). Em outras palavras, nosso Senhor está dizendo que essa unidade é possível porque Ele mesmo já deu a igreja o que ela precisa para tornar prática a verdadeira unidade.
Convém, então, que perguntemos: Que glória é essa que Cristo recebeu do Pai e concedeu a igreja a fim de torná-la una? Essa não é uma questão fácil de responder, porém há pelo menos três elementos que podem elucidar, trazendo luz à nossa interpretação.
Primeiro, devemos lembrar que o uso da palavra “glória” na Bíblia é normalmente a maneira de nos fazer entender que o Deus transcendente se revela, isto é, se faz imanente. Glória é um termo usado para falar da majestade, poder, santidade e justiça divinas. "Glória" é o modo como os atributos de Deus são comunicados ou simplesmente revelados ao Seu povo. Quando Cristo diz que deu dessa glória recebida, Ele está declarando que, em sua deidade, Ele é mediador da glória do Pai; nEle o próprio Deus se tornou a dádiva maior para o Seu povo (Jo 1.14). Logo, Cristo como mediador da glória de Deus é a causa primária ou a fonte da verdadeira unidade.
Cristo também é a causa primária da unidade nas analogias paulinas que tratam da natureza Igreja. Em cada uma delas, evidencia-se que a referida unidade é de natureza cristocêntrica: 1) Corpo de Cristo (Rm 12.5; 1Co 12.12-28; 2) Família de Deus (Ef 2.19); 3) Edifício espiritual (Ef 2.20-22; 1Co 3.10-17); 4) Noiva de Cristo (Ef 5.32)
A unidade da Igreja está mística e intrinsecamente relacionada à obra e à pessoa de Cristo. Não podemos pensar a Igreja destituída do atributo da unidade. Uma vez que Cristo é a cabeça do corpo, o governante da família, a principal pedra do edifício e o noivo da noiva, isso quer dizer que a unidade da igreja repousa em Cristo como mediador crucificado, ressurreto e exaltado. Dependemos totalmente de Cristo para vivermos em unidade como destaca o reformador João Calvino ao comentar Romanos 12.4-5:
“Somos chamados com a condição de vivermos unidos em um só corpo... E já que os homens não podem chegar a tal união por si mesmos, o próprio Senhor se tornou o vínculo dessa união”. 3
Ao comentar Efésios 4.13, Calvino enfatiza ainda mais essa nossa necessidade de Cristo para um viver em unidade: “A fraqueza de nossa natureza é de tal porte, que é preciso que a cada dia alguém se aproxime mais dos outros e todos se aproximem mais de Cristo”. 4
O apóstolo Paulo aponta de muitas maneiras que a fonte da verdadeira unidade é Cristo. Contra a tendência separatista e exclusivista, de orgulho e soberba racial dos israelitas, ele proclama que em Cristo, por um só Espírito, Deus batizou para ser um só corpo, judeus, gregos, escravos e livres. Sendo dado a todos beber de um só Espírito (1Co 12.13). A isso ele acrescenta que Cristo se tornou a nossa paz e depois de demolir o muro de separação, desfez a inimizade, fazendo de ambos os povos, judeus e gentios, um só (Ef 2.14). Cristo se opôs a todo preconceito de superioridade ou de inferioridade por conta das diferenças: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Ef 3.28).
Segundo, precisamos lembrar que Jesus é o verbo eterno de Deus que veio comunicar as boas novas de salvação. O verbo encarnado e proclamado é de fato a glória que torna essa unidade possível (vs. 6,8). Isso quer dizer que aqueles que são submetidos à Palavra, que são libertos e alimentados por ela, são desafiados a andar em unidade.
A Oração Sacerdotal mostra que nosso Senhor também orou pela santidade da igreja (v 17). E quando o fez, Ele considerou a verdade como meio indispensável para tal fim. Podemos concluir, ainda que por inferência, que assim como não existe santidade sem a verdade, tão pouco poderá haver unidade sem a verdade normalizadora e transformadora do Evangelho.
Terceiro, a declaração do nosso Senhor de que concedeu a glória recebida, visando à unidade da Igreja, pode perfeitamente ser uma referência ao Espírito Santo que embora já estivesse em plena evidência no ministério de Cristo e na vida dos discípulos, ainda assim, haveria de ser derramado como torrente d'água após Sua ascensão aos céus.
Ainda no Evangelho de João, nosso Senhor prometeu que enviaria outro consolador, o Espírito Santo, e que Ele guiaria os discípulos na verdade (Jo 16.13). Posteriormente, o apóstolo Paulo exorta a Igreja em Éfeso à unidade, denominando-a de “unidade do Espírito”. O apóstolo destaca, também, que temos todos “um só Espírito”, fator determinante para que vivamos em unidade. Significando, portanto, que o Espírito que guia o crente na verdade do Evangelho é o mesmo Espírito que promove a unidade (Ef 4.3-4). Afinal, nada acontece na vida do crente sem a ação do Espírito e nada o Espírito faz sem a devida aplicação do Evangelho.
Portanto, a unidade é possível porque Cristo nos deu a Sua glória. Ele é a causa primária e a fonte da unidade da igreja. Que Deus nos ajude a imitar a Cristo, ouvir o Espírito e a praticar o Evangelho. Se assim fizermos, haveremos de ser uma igreja una.
3. O propósito da unidade (v. 23)
Conforme o verso 23, podemos concluir que a unidade representa um apelo evangelístico de grande impacto e poder de persuasão. A unidade tem o propósito missiológico de fazer o mundo entender que: a) Cristo é o enviado de Deus; b) A Igreja é o povo amado de Deus. É um contrassenso pensarmos que o mundo compreenderá a mensagem sobre Cristo e seu amor se isso não se traduz em unidade, comunhão e solidariedade.
Ao comentar Efésios 4.16, Calvino destaca o amor prático como meio de unidade:
“Caso queiramos ser considerados em Cristo, que nenhum de nós seja tudo para si mesmo, senão que, tudo quanto venhamos a ser, sejamos em relação uns aos outros. Isso só pode ser realizado pelo amor; e onde o amor não reina, também não existe edificação para igreja, senão mera dispersão”. 5
Porém, a igreja não poderá se evidenciar como um projeto de comunidade saudável, confiável e relevantemente frutífero, caso prevaleça a cultura cismática e fragmentária dos nossos dias. O divisionismo não apenas enfraquece a missão, mas revela nossas profundas contradições em relação a nossa pregação. No divisionismo, a pregação do amor, do perdão, da humildade e da tolerância, simbolizada no princípio da “outra face” e da “outra milha”, é sufocada por ações e motivações egoístas, pelo radicalismo raivoso, pela soberba arrogante e pelas crises de poder da política eclesiástica.
A unidade é imprescindível para a missão. Dada a imensidão dos desafios, é nosso dever unir as forças, os recursos e dons que Deus tem nos dado a fim que tenhamos bom êxito na gloriosa missão de levar o Evangelho a toda criatura.
Ao comentar 1 Coríntios 12.11, Calvino denuncia o pecado da autossuficiência:
“Paulo intima os Coríntios à unidade, lembrando-os de que todos os dons que possuíam, obtiveram-nos de uma única fonte; mas, ao mesmo tempo, ele prova que ninguém possui tanto para que se sinta autossuficiente, que não necessite do auxílio de outrem... Ele (O Espírito de Deus) não distribui tudo a um só indivíduo, para evitar que alguém fique tão satisfeito com sua porção, que procure isolar-se dos demais, vivendo unicamente para si”. 6
E na prática?
Chamo a atenção, agora, para que consideremos e reflitamos sobre algumas implicações de ordem prática e para os cuidados que precisamos ter no compromisso de promover a unidade, conforme o que vimos na oração do nosso Senhor:
- Devemos nos esforçar para evitar os cismas
Às vezes somos acusados de trazer nas nossas origens protestantes a cultura do cisma. Que seja dito, porém, que Lutero não foi um mero iconoclasta. É fato que ele chamou a hierarquia romana de “a igreja-prostituta do diabo” e que queimou alguns documentos da igreja. No entanto, Lutero queria apenas que a verdadeira igreja, una, santa e universal fosse resgatada das trevas medievais.
Lutero não era um individualista arrogante e, muito menos, um desses desistentes da fé, cujas críticas não têm o menor propósito de promover exortação, edificação e consolo à Igreja de Deus. Ele jamais negou o caráter comunal da Igreja de Deus. Dizia ainda: “a igreja cristã é tua mãe”. Justificativa? “É ela ‘que te faz nascer e te guia pela Palavra’”. Lutero tinha a igreja na mais alta conta:
"Ela me é querida, a digna donzela,
E não a posso esquecer;
Dela o louvor, a honra e a virtude se comentam;
Então meu amor ainda mais cresce.
Eu busco o bem dela é, se eu quisesse endireitar os caminhos do mal,
Não me importo, ela vai me recompensar,
Com amor e verdade que não se esgotarão,
Que ela sempre me mostrará;
E fará tudo o que eu desejar”. 7
Quando perguntado, certa vez, sobre o que é a igreja, Lutero respondeu: “Ora, uma criança de sete anos sabe o que é a igreja, isto é, cristãos santos e ovelhas que ouvem a voz de seu pastor” (ibid). 8
Calvino acreditava que quem abandona a Igreja renuncia o próprio Deus e a Cristo e que os cismas consistem em grande pecado:
“Pois o senhor estima tanto a comunhão da sua igreja que Ele considera como um traidor e apóstata da religião quem perversamente se retira de qualquer sociedade cristã que preserva o verdadeiro ministério da Palavra e os sacramentos” (ibid). 9
O cisma é um pecado terrível que se comete contra a autoridade de Cristo. Em nossos dias, as questões mais triviais se constituem em motivo de divisão. Há três práticas que, corriqueiramente, fazem o corpo de Cristo "sangrar" nesse país:
a) A constante troca de igreja por motivos de contenda. A incapacidade de superar diferenças e dificuldades torna-se razão para que muitos crentes não fixem residência em nenhuma igreja local por muito tempo. O problema é que se a igreja é católica, como posso ter unidade com a “nova” igreja se continuo com a comunhão quebrada com a “antiga” igreja?
b) O movimento dos “desigrejados”. Se não há lugar para mim em nenhuma igreja local como posso pertencer à igreja universal? Como membro do corpo místico de Cristo, sou convocado a dar visibilidade ao Reino de Deus por meio da Igreja visível. Quem desiste da Igreja alegando pecados e contradições, nada mais faz se não atestar sua própria arrogância e desamor pela noiva de Cristo.
A oração do Pai Nosso pressupõe a existência de uma corporação. Em nenhum momento, encontramos alguma expressão voltada para o individual ou para o enclausuramento personalista e isolacionista. As expressões presentes na oração do nosso Senhor apontam para uma experiência comunitária, inclusivista, relacional, comunal, fraternal e solidária.
O Rev. Ricardo Barbosa, falando do credo apostólico, diz o seguinte sobre nosso dever de pelejar pela unidade da igreja:
“O credo apostólico afirma nossa crença em Deus Pai, Criador de todas as coisas; em seu Filho Jesus Cristo, nosso Salvador; no Espírito Santo, na remissão dos pecados; na ressurreição; na vida eterna... E na igreja. Ela faz [a igreja] parte das convicções básicas do Credo. Da mesma forma como precisamos crer em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, precisamos crer também na igreja como ambiente de comunhão dos salvos em Cristo. Ela é a comunidade do Reino que dá visibilidade ao que Cristo fez em sua obra no mundo”. 10
Ao comentar Efésios 4.12, Calvino parece falar dessa tendência atual dos chamados sem-igrejas:
“Nossa verdadeira plenitude e perfeição consiste em estarmos unidos no corpo de Cristo... Tais são os fanáticos, que inventam para si mesmos revelações secretas do Espírito, bem como os soberbos que acreditam que lhes é suficiente a leitura privativa das Escrituras, não tendo qualquer necessidade do ministério da igreja... A melhor forma de promover a unidade é congregar [o povo] para o ensino comunitário...”. 11
Ainda em Efésios 4.4, Calvino vê a unidade da igreja como um sinal visível do reino:
“Quanto deveríamos odiar todas as discórdias, se porventura refletíssemos convenientemente que todos quantos se separam de seus irmãos, eles mesmos se fazem estranhos ao reino de Deus!”. 12
c) A filosofia de ministério que norteia a abertura de novas igrejas. O crescimento entre evangélicos dá-se mais por divisão do que por multiplicação, dá-se mais por proselitismo do que por evangelização e discipulado. O surgimento de muitas igrejas, antes de ser o resultado de uma ação missionária promovida pelo Espírito Santo, decorre da luta pelo poder, dificuldade de se submeter a alguma autoridade e até mesmo como fonte de lucro dos atores envolvidos. Lembremo-nos, porém, que assediar crentes de outra comunidade é ignorá-la como parte constitutiva do corpo de Cristo. Além do mais, no proselitismo evangélico, o princípio de cooperação e comunhão é substituído pela lógica da concorrência e da competição.
Que atentemos, então, para a advertência de James Bannerman: “Não pode ser ofensa pequena aquela que faz o reino único de Deus neste mundo parecer dividido contra si mesmo, e propenso a desabar”. 13
- Devemos preservar a unidade sem negociar os conteúdos da fé
Destacamos, aqui, o exemplo do Rev. John Stott, que frequentemente era questionado do porquê da sua permanência na igreja da Inglaterra, uma vez que ele discordava de muitas das suas práticas e doutrinas. Stott procurava explicar sua posição, delineando três caminhos possíveis:
Primeiro, Stott apresenta a opção de separação da igreja. Essa seria, segundo ele, a decisão de preservar a pureza doutrinária da Igreja. Stott observa, porém, que, via de regra, a tendência aqui é de "buscar a pureza da verdade à custa da sua unidade". Identificamos nessa prática a tendência de uma apologia do desamor. A indiferença e o descaso para com o outro é justificada em nome da verdade. Nesse caso, resta o moralismo e o legalismo impiedoso, bem ao estilo do exclusivismo separatista dos fariseus que Jesus tanto combateu.
A despeito dessa questão, Stott pondera, dizendo que:
"Precisamos lembrar, porém, que os próprios reformadores do século XVI eram cismáticos muito relutantes. Eles não queriam deixar a Igreja Católica. Pelo contrário, sonhavam com um catolicismo reformado, uma Igreja reformada de acordo com a Escritura, estando interessado tanto na pureza quanto na sua unidade. Calvino, por exemplo, escreveu em 1522 que a separação das igrejas estava ‘entre as maiores desgraças de nosso século’”. 14
Segundo, Stott menciona a opção da concessão e até da conformidade. Trata-se do posicionamento de que devemos lutar pela unidade a qualquer custo. Ainda que para preservar a unidade tenhamos que sacrificar a verdade no altar da pluralidade, do relativismo e do liberalismo teológico. É como se alguém dissesse que, em nome da unidade proposta por Jesus, nós devêssemos abrir mão da verdade ensinada nas Escrituras.
Observe que as duas opções até aqui mencionadas contrastam em seus extremos e caminham de modo irreconciliáveis, promovendo o empobrecimento da fé, minando a identidade da igreja, enfraquecendo a missão e comprometendo a credibilidade do seu testemunho. Afinal de contas, como preservar a identidade se não houver clareza quanto aos fundamentos da fé? Como falar de missão se a igreja estiver sangrando ou se os conteúdos da sua pregação forem retirados, substituídos ou deturpados?
Terceiro, Stott opta pela opção da abrangência sem concessão. O Rev. John Stott destaca que essa é a mais difícil das três opções. De fato. A primeira é muito fácil. Só precisamos entrar no nosso “mosteiro” ou na “caverna” da superespiritualidade, separar-se de todo mundo e optar pelo o enclausuramento religioso. A segunda opção é a da conveniência. No mundo do politicamente correto, da pluralidade e da rejeição a todo conceito de verdade absoluta, nada é mais conveniente do que se tornar um desistente da verdade. Porém abrangência sem concessão é sempre um caminho de tensão, de reflexão, de reconstrução, de negociação, de resgate e redescoberta do que se perdeu, de se despojar de tradições ou costumes que nada tem a ver com a catolicidade da Igreja.
Por isso mesmo é que Stott propõe “que a unidade deve ser na verdade e que a abrangência deve ser regida por princípios...”. Porém, nossa tendência natural é de nos isolarmos e de nos fecharmos em torno da nossa caverna eclesiástica. Pensamos, então, como Elias que não há nada nem ninguém além de nós mesmos. O resultado disso é depressão nas crises e orgulho no sucesso. Além disso, tornamos absolutas as nossas opiniões, liturgias, métodos de crescimento e modelo de funcionamento, ao mesmo tempo em que ignoramos quaisquer expressões da Igreja em outros lugares ou épocas.
- Devemos cultivar a comunhão e realizar a missão com outros irmãos
A questão aqui é das mais controversas. Como saber em que situação eu posso deixar a igreja sem cometer o pecado do cisma? Quem eu devo ou não considerar evangélico? Com quem eu posso me juntar para comer o pão e cumprir a missão?
Em tese, só há uma situação que justifica o abandono da igreja: quando ela renega o Evangelho e se recusa arrepender-se desse terrível pecado. Acreditamos que tenha sido esse o caso de Lutero. Como disse Orígenes: "Às vezes acontece que a pessoa que sai [da igreja] está dentro e a pessoa que parece permanecer está fora". 15
Devemos considerar, à luz da Escritura e da História, que igrejas apostatam da fé. Toda vez que uma igreja se desvia da sã doutrina e impõe sobre seus membros o pesado jugo de costumes, práticas e ensinos que contradizem a Palavra de Deus, não havendo como reverter tal situação, o crente que decide desligar-se dela não será culpado de tal cisma. Como, porém, saber se a igreja local é parte constitutiva da Igreja universal para que eu possa permanecer nela e com ela manter comunhão?
A grande tensão aqui é como preservar a unidade evangélica sem que isso resulte em prejuízo para a doutrina, a ética e a credibilidade do testemunho da Igreja. Quanto a essa tensão, que de fato existe, considero importantes as palavras do escritor R. C. Sproul:
"O termo evangélico chegou à preeminência durante a Reforma, quando foi virtualmente um sinônimo para protestante. Ser protestante por sua vez significava abraçar as duas causas principais da Reforma: (a) Sola Scriptura - que diz respeito a autoridade e suficiência da Escritura; e (b) Sola fide - a fé nos méritos graciosos de Cristo, como único meio de justificação e, portanto, de salvação". 16
É fato que o termo “evangélico” tem passado por mudanças radicais nos últimos anos. Como definir o que é evangélico num evangelicalismo sincretista e marcado pela pluralidade de seitas “neo-evangélicas”? É exatamente aí que devemos perguntar: a igreja em questão adota esses princípios de fé, reconhecendo a autoridade e suficiência da Escritura e a justificação pela fé somente?
Assim como fizeram os reformadores, caso a resposta seja positiva, devemos primar pela unidade da igreja, andando em comunhão com outros irmãos, pois, ainda que sejamos discordantes em muitas questões, consideradas secundárias, nas questões centrais e inegociáveis da fé, cremos e confessamos uma só verdade.
Ao comentar Efésios 4.1, Calvino destaca a importância da humildade para que possamos superar as diferenças triviais: "Aquele que se desfaz da arrogância e cessa de agradar a si próprio se tornará manso e acessível. E quem quer que persista em tal moderação ignorará e tolerará muitas coisas nos irmãos". 17
Conclusão
Cremos que a unidade é um ensino bíblico que exige de todo crente, especialmente, dos líderes, um compromisso prático. Precisamos suplicar ao Senhor para que Ele nos dê coração quebrantado e verdadeira humildade. O corpo de Cristo não pode continuar "sangrando" por conta de vaidades e intolerâncias gratuitas. Uma vez que o amor é a expressão maior da vontade de Deus para Seu povo, revelada na Sua palavra, convém, então, que o amor triunfe, que o perdão prevaleça e que o viver em comunhão transcenda sobre a mesmice da contenda e da hipocrisia.
Que Deus promova temor em nossos corações no intuito de andarmos em conformidade com Evangelho, sendo instruídos e corrigidos pelo Seu Espírito, amando e servindo Sua igreja com zelo e santa devoção. Pois, se assim procedermos, viveremos como membros do corpo de Cristo, membros da família de Deus e como edifício “bem ajustado [que] cresce para ser templo santo no Senhor”, seremos todos “edificados para morada de Deus no Espírito” (Ef 2.19-22).
• Aurivan Marinho da Costa é pastor da Igreja Evangélica Congregacional da Estância, em Recife (PE), professor de Teologia pelo SETEBAN-PE e licenciado em Filosofia pela UFPE. Este artigo tem a forma original de palestra proferida no Encontro Nacional da Aliança Evangélica, no último dia 21 de novembro.
Notas de referência:
1. BANNERMAN, James. A Igreja de Cristo. Editora Os Puritanos. v. 1 e 2. p. 67.
2. BULLINGER, Henry apud MCKIM, Donald K. (Ed.). Grandes temas da tradição reformada. Editora Pendão Real. p 154.
3. CALVINO, João. Romanos. Editora Edições Paracletos. p. 440.
4. CALVINO, João. Efésios. Editora Edições Paracletos. p. 126.
5. CALVINO, João. Efésios. Editora Edições Paracletos. p. 132.
6. CALVINO, João. 1 Coríntios. Editora Edições Paracletos. p. 381.
7. LUTERO, Martinho apud GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. Editora Vida Nova, p. 88.
8. LUTERO, Martinho apud GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. Editora Vida Nova, p. 88.
9. LUTERO, Martinho apud GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. Editora Vida Nova, p. 155.
10. BARBOSA, Ricardo. O desafio bíblico da espiritualidade cristã. In: O melhor da espiritualidade brasileira. Editora Mundo Cristao, p. 28.
11. CALVINO, João. Efésios. Editora Edições Paracletos. pp. 124-125.
12. CALVINO, João. Efésios. Editora Edições Paracletos. p. 110.
13. BANNERMAN, James. A Igreja de Cristo. Editora Os Puritanos. v. 1 e 2. p. 68.
14. STOTT, John. A Igreja Autêntica. Editora Ultimato, p.159.
15. ORÍGENES apud BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada. v. 4.p. 286.
16. SPROUL, R. C. O que é teologia reformada. Editora Cultura Cristã p.24).
17. CALVINO, João. Efésios. Editora Edições Paracletos. p. 108.
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