Opinião
- 05 de fevereiro de 2015
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Tortura, evangélicos e a Comissão da Verdade
“Ele pode fingir e esconder o seu ódio, mas a sua maldade será exposta em público”. (Provérbios 26.26)
Nos últimos dias de 2014 o Brasil revisitou páginas dolorosas da sua História. Instalada em 16 de maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade apurou transgressões aos direitos humanos ocorridas no período entre 1946 e 1988, incluindo especialmente a Ditadura Civil Militar que se instalou nos anos de 1964 até 1985.
O resultado desse documento é uma grande vitória para todos aqueles que lutam por direitos humanos em nosso país. É também precioso porque nos permite conhecer episódios que precisavam vir à tona. Em tempos que alguns sentem saudades da Ditadura Civil Militar de 1964, o registro desses fatos investigados é um clamor ao bom senso de um país que precisa superar tais discursos anacrônicos.
Deve ser lido com atenção o capítulo que relata as violações cometidas contra religiosos. Há, inclusive, testemunhos de vários protestantes que foram martirizados pela estupidez ditatorial que assaltou o Brasil por 21 anos. Testemunhos como o do pastor metodista Fred Morris, nascido nos Estados Unidos e que atuou como missionário no Brasil. Preso e expulso do país em 1974, sequer foi concedido a ele o direito de defesa. Depois de um longo silêncio, em 2008 o bispo presidente do Colégio Episcopal da Igreja Metodista registrou o pedido de perdão pela injustiça cometida contra ele. Abaixo segue um breve relato de Morris:
Outro forte relato descrito nesse documento é do assembleiano Manoel da Conceição, líder camponês do Maranhão. Conceição, que antes perdera uma perna que gangrenou depois de seis dias preso após um ataque da polícia ao sindicato que participava, padeceu com torturas como choque elétrico, pau de arara e espancamentos. No relatório, Conceição conta:
Uma informação importante é o envolvimento de líderes evangélicos que colaboraram para esse regime de horror. O Antropólogo Rubem César Fernandes, então na época jovem da Igreja Presbiteriana do Brasil, lembra:
Leonildo Campos, seminarista da Igreja Presbiteriana Independente, relata o “modus operandi” do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que à noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o Novo Testamento:
O pastor batista afirmou, apontando para uma pistola debaixo do paletó:
Ao falar sobre democracia, o anglicano John Stott dizia que ela “...reconhece também a nossa depravação humana, quando se recusa a concentrar poder nas mãos de poucos, uma vez que isso não é seguro5 “. É no jogo democrático que se pode trazer à luz aquilo que precisa ser sarado no corpo social; caso contrário, estamos fadados a não avançar como nação.
Nosso processo de redemocratização ainda tem um longo caminho a ser percorrido para aprimorar-se. Esse aperfeiçoamento passa por melhorar os canais de participação social, combater desigualdades, desmontar a concentração de mídia na mão de um punhado de poderosos, garantir plenitude de vida digna de jovens pobres que morrem em nossas periferias, dentre outros passos. Porém, tudo isso é tão precioso quanto desvelar a memória de um passado dolorido do qual torço para que nosso povo jamais tenha saudade. É na luz que a verdade libertadora nos põe de pé para exercer nossa cidadania de maneira integral.
Nossa oração é que, mediados por essa dura recordação dos dias sombrios do tempo da Ditadura, sejamos reconciliados com nossa História e assim possamos semear a tão desejosa justiça que esperamos. Tortura? Nunca mais!
• O cearense Caio Marçal é missionário e facilitador da Rede FALE. É casado com Viviane, membro da Igreja Batista da Redenção em Belo Horizonte (MG).
Notas:
1. Relatório final da CNV, págs. 187-88
2. Relatório final da CNV, págs. 187-88
3. Relatório final da CNV, pág. 180
4. Relatório final da CNV, pág. 180
5. John Stott. Por Que Sou Cristão, p 84. Editora Ultimato.
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Nos últimos dias de 2014 o Brasil revisitou páginas dolorosas da sua História. Instalada em 16 de maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade apurou transgressões aos direitos humanos ocorridas no período entre 1946 e 1988, incluindo especialmente a Ditadura Civil Militar que se instalou nos anos de 1964 até 1985.
O resultado desse documento é uma grande vitória para todos aqueles que lutam por direitos humanos em nosso país. É também precioso porque nos permite conhecer episódios que precisavam vir à tona. Em tempos que alguns sentem saudades da Ditadura Civil Militar de 1964, o registro desses fatos investigados é um clamor ao bom senso de um país que precisa superar tais discursos anacrônicos.
Deve ser lido com atenção o capítulo que relata as violações cometidas contra religiosos. Há, inclusive, testemunhos de vários protestantes que foram martirizados pela estupidez ditatorial que assaltou o Brasil por 21 anos. Testemunhos como o do pastor metodista Fred Morris, nascido nos Estados Unidos e que atuou como missionário no Brasil. Preso e expulso do país em 1974, sequer foi concedido a ele o direito de defesa. Depois de um longo silêncio, em 2008 o bispo presidente do Colégio Episcopal da Igreja Metodista registrou o pedido de perdão pela injustiça cometida contra ele. Abaixo segue um breve relato de Morris:
“Fui jogado de um lado a outro por uns três a cinco homens que gritavam insultos e começaram a golpear-me. [...] Daí, eu disse, ‘Eu sou cidadão dos EUA. Que quero ver meu cônsul’. A resposta a esta foi o primeiro chute nos testículos, que me colocou no chão. Logo me levantaram e continuaram a gritar até que recebi outro chute, que produziu o mesmo resultado do primeiro.
Este baile continuou por uns 15 minutos ou mais e, de repente, parou. [...] Logo escutei água enchendo um balde. Aí, tive um grande susto de medo, pois pensei que ia me afogar, pois sabia que eles gostavam (sic) de fazer isto. Mas não era isto. Ele simplesmente chegou a mim com a água e a jogou nas minhas pernas e pés, molhando todo o chão em volta. Logo ele chegou com uns eletrodos. [...] Logo ele começou a repetir as mesmas perguntas de antes, mas agora minhas respostas produziram choques elétricos. [...] Mais choques, cada vez aumentando a intensidade.
A dor era insuportável. Pensei que ia desmaiar. Depois de talvez 20 minutos, eu estava quase paralisado (sic) de dor e medo e susto [...] Aí fiquei por 15 a 20 minutos até estar mais ou menos recuperado. Vieram por mim de novo e repetimos tudo (sic). Assim foi o dia. Choque elétrico e golpes até que não estava mais aí, recuperar um pouco e repetir. Umas vezes colocaram o eletrodo no meu pênis em vez do peito.
Na tardinha, me levaram a outra sala de tortura e me colocaram numa cadeira com braços. Amarraram meus braços e pernas na cadeira com faixas de coro, colocaram os eletrodos de novo, esta vez um no pé e outro na orelha. Estes choques foram os piores. Minha cabeça ficou cheia de luz, quase como relâmpago, e pelo menos uma vez desmaiei1.”
Este baile continuou por uns 15 minutos ou mais e, de repente, parou. [...] Logo escutei água enchendo um balde. Aí, tive um grande susto de medo, pois pensei que ia me afogar, pois sabia que eles gostavam (sic) de fazer isto. Mas não era isto. Ele simplesmente chegou a mim com a água e a jogou nas minhas pernas e pés, molhando todo o chão em volta. Logo ele chegou com uns eletrodos. [...] Logo ele começou a repetir as mesmas perguntas de antes, mas agora minhas respostas produziram choques elétricos. [...] Mais choques, cada vez aumentando a intensidade.
A dor era insuportável. Pensei que ia desmaiar. Depois de talvez 20 minutos, eu estava quase paralisado (sic) de dor e medo e susto [...] Aí fiquei por 15 a 20 minutos até estar mais ou menos recuperado. Vieram por mim de novo e repetimos tudo (sic). Assim foi o dia. Choque elétrico e golpes até que não estava mais aí, recuperar um pouco e repetir. Umas vezes colocaram o eletrodo no meu pênis em vez do peito.
Na tardinha, me levaram a outra sala de tortura e me colocaram numa cadeira com braços. Amarraram meus braços e pernas na cadeira com faixas de coro, colocaram os eletrodos de novo, esta vez um no pé e outro na orelha. Estes choques foram os piores. Minha cabeça ficou cheia de luz, quase como relâmpago, e pelo menos uma vez desmaiei1.”
Outro forte relato descrito nesse documento é do assembleiano Manoel da Conceição, líder camponês do Maranhão. Conceição, que antes perdera uma perna que gangrenou depois de seis dias preso após um ataque da polícia ao sindicato que participava, padeceu com torturas como choque elétrico, pau de arara e espancamentos. No relatório, Conceição conta:
“Levantaram meus braços com cordas amarradas ao teto, colocaram meu pênis e os testículos em cima da mesa e com uma sovela fina de agulhas de costurar pano deram mais de trinta furadas. Depois bateram um prego no meu pênis e o deixaram durante horas pregado na mesa2”.
Uma informação importante é o envolvimento de líderes evangélicos que colaboraram para esse regime de horror. O Antropólogo Rubem César Fernandes, então na época jovem da Igreja Presbiteriana do Brasil, lembra:
“Pastores fizeram uma lista com 40 nomes e entregaram aos militares. Um almirante que vivia na igreja achava que tinha o dever de me prender”3.
Leonildo Campos, seminarista da Igreja Presbiteriana Independente, relata o “modus operandi” do pastor batista Roberto Pontuschka, capelão do Exército que à noite torturava os presos e de dia visitava celas distribuindo o Novo Testamento:
“Um dia bateram na cela: ‘Quem é o seminarista que está aqui?’” (...) “De terno e gravata, ele se apresentou como capelão e disse que trazia uma Bíblia para eu ler para os comunistas f.d.p. e tentar converter alguém.”
O pastor batista afirmou, apontando para uma pistola debaixo do paletó:
“Para os que desejam se converter, eu tenho a palavra de Deus. Para quem não quiser, há outras alternativas“4.
Ao falar sobre democracia, o anglicano John Stott dizia que ela “...reconhece também a nossa depravação humana, quando se recusa a concentrar poder nas mãos de poucos, uma vez que isso não é seguro5 “. É no jogo democrático que se pode trazer à luz aquilo que precisa ser sarado no corpo social; caso contrário, estamos fadados a não avançar como nação.
Nosso processo de redemocratização ainda tem um longo caminho a ser percorrido para aprimorar-se. Esse aperfeiçoamento passa por melhorar os canais de participação social, combater desigualdades, desmontar a concentração de mídia na mão de um punhado de poderosos, garantir plenitude de vida digna de jovens pobres que morrem em nossas periferias, dentre outros passos. Porém, tudo isso é tão precioso quanto desvelar a memória de um passado dolorido do qual torço para que nosso povo jamais tenha saudade. É na luz que a verdade libertadora nos põe de pé para exercer nossa cidadania de maneira integral.
Nossa oração é que, mediados por essa dura recordação dos dias sombrios do tempo da Ditadura, sejamos reconciliados com nossa História e assim possamos semear a tão desejosa justiça que esperamos. Tortura? Nunca mais!
• O cearense Caio Marçal é missionário e facilitador da Rede FALE. É casado com Viviane, membro da Igreja Batista da Redenção em Belo Horizonte (MG).
Notas:
1. Relatório final da CNV, págs. 187-88
2. Relatório final da CNV, págs. 187-88
3. Relatório final da CNV, pág. 180
4. Relatório final da CNV, pág. 180
5. John Stott. Por Que Sou Cristão, p 84. Editora Ultimato.
Leia também
Relatório completo da Comissão Nacional da Verdade
Sociólogo relembra a abertura dos evangélicos para a realidade social brasileira nos anos 60
A igreja, o país e o mundo
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