Opinião
- 27 de maio de 2016
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The Walking Dead
Desta vez resolvi fazer diferente, e não vou comentar um filme. Resolvi escrever sobre uma série, e uma que está fazendo grande sucesso. Quando era menino, no final dos anos de 1960, me divertia imensamente com algumas séries de TV. Acredito que muitos que lerão este texto têm lembrança de “Terra de Gigantes”, “Túnel do Tempo”, “Viagem ao fundo do mar”, “A Família Robinson” e do absolutamente impagável e sem noção “Perdidos no espaço”. Anos mais tarde descobri que todas elas eram do mesmo produtor, Irwin Allen. O homem era um gênio! Errou em praticamente todas as suas previsões nas séries de ficção científica, mas sabia como ninguém prender a atenção e divertir. Quem não se lembra também de “Daniel Boone”? Quem não se emocionou com a leveza e a singeleza com que dramas familiares eram retratados em “A Família Walton”?
O tempo passou, e o conceito de série mudou. Antes as séries eram unidades completas, cada episódio uma história completa com início, meio e fim. A única série dos anos de 1970 que tinha uma ideia de continuidade e sequência era “Kung Fu”, com David Carradine, sucesso estrondoso de público em todos os lugares em que foi exigida. E já faz um tempinho que várias das séries televisivas adotaram de vez o conceito de sequência, como uma novela. Todas fazem sucesso. Algumas mais, outras, nem tanto.
Em geral tenho relutância para assistir séries exatamente para não ficar preso muito tempo. O pior é quanto maior a audiência, mais temporadas a série terá... É exatamente este o caso de “The Walking Dead”, literalmente, “os mortos que andam” (doravante, TWD), baseada nos quadrinhos homônimos publicados nos Estados Unidos desde 2003. A sexta temporada acabou, a sétima está anunciada para iniciar em outubro próximo, e as legiões de fãs em todo o mundo não aguentam esperar outubro para saber quem o perverso Negan matou nos últimos dois ou três segundos do último episódio da, por enquanto, última temporada.
TWD é uma distopia que apresenta um cenário de destruição das estruturas da sociedade tal como a conhecemos por conta de um “apocalipse zumbi”. Tudo indica que por conta de um vírus (este é um detalhe que por enquanto não foi explicado) as pessoas morrem, mas voltam, porém como zumbis, que não falam (apenas rosnam), com uma ferocidade impressionante e um apetite insaciável. Eles se alimentam apenas do que é vivo, animais ou humanos. Neste estado, só morrem definitivamente se forem atingidos no cérebro. Quando se começa a assistir, há que se ter muita persistência para continuar, pois as cenas de zumbis estraçalhando pessoas para comer-lhes as tripas são horripilantes. A história circula em torno de Rick Grimes, um policial de uma cidade pequena no interior da Georgia, que acorda em um hospital após ter sido baleado, e encontra o mundo destroçado. Ele é ajudado inicialmente por Morgan, um homem que viu a esposa se transformar em uma morta-viva, e agora cria o filho em meio ao caos em que o mundo se tornou. A partir daí Rick lutará para reencontrar sua família, fará amigos, formará um núcleo do qual será o líder. E, claro, enfrentará inimigos. Não apenas os zumbis (que na série são chamados de “walkers”, literalmente, “caminhantes”, “biters”, literalmente, “mordedores”, mas na legendagem brasileiras, são inexplicavelmente chamados de “bichos”), ou simplesmente, “dead” (“mortos”). É curioso que em nenhum momento a série utiliza a palavra inglesa “undead”. Não há correspondente direto para “undead” em português. A ideia é de “não morto” ou “desmorto”. Provavelmente porque em inglês “undead” é usada para se referir a cadáveres reanimados por meio de forças sobrenaturais, invariavelmente, do mal, enquanto que na série a questão parece ser científica. Não há apelo ao transcendente, celestial ou infernal.
Enfim, a sociedade sofre um retrocesso, tudo entra em colapso, e os humanos precisam reinventar sua convivência comunitária. Este é o mote da série. Tudo ao redor de Rick e seu grupo. E nas aventuras e desventuras que enfrentam, descobrem que os humanos muitas vezes podem ser muito, mas muito piores que os zumbis. A vida passa a ser uma constante luta por sobrevivência. Penso que uma das primeiras frases do personagem Max Rockatanski de “Mad Max – Estrada da Fúria”, de George Muller (o grande injustiçado do Oscar 2016) exprime bem o que a vida se tornou para os humanos em TWD: “tornei-me alguém cujo principal instinto é a sobrevivência”.
Rick e seu grupo procuram um lugar para se estabelecer e tentar, tanto quanto possível, levar a vida como “antes de tudo começar” (esta expressão se repete muitas vezes ao longo dos muitos episódios das temporadas até o momento). Parece que estão em uma grande peregrinação à procura da terra prometida, que seria o lugar de descanso e segurança. Nesta jornada, encontram-se com pessoas maravilhosas, incríveis, de bondade impressionante e caráter nobre, como Herschell, um fazendeiro formado em Veterinária, Deanna, a líder de uma comunidade denominada Alexandria, e Daryl, um jovem de origem pobre e história de vida muito sofrida, que em pleno século XXI é caçador e rastreador, usa uma besta e tem pontaria de Guilherme Tell. Mas encontram-se também com psicopatas, muito mais monstruosos que os zumbis. A série mostra uma progressão na maldade, pois a cada encontro com um grupo inimigo, a maldade dos adversários piora: um autonomeado “Governador” de uma cidade, um grupo que engana os humanos prometendo refúgio em um lugar chamado Terminus (“Terminal”), mas é um grupo de canibais, um grupo de loucos que se autodenominou Wolves (“Lobos”), que matam por matar, e por fim, um grupo imensamente grande, com centenas de integrantes, chamado Saviors (“Salvadores”), que de salvadores não têm nada, e que oprime, explora e violenta a todos os demais grupos que encontram. Eles deveriam se chamar “Destruidores”. O Negan acima citado é o líder dos “Salvadores”. Difícil saber quem é mais doentio e mais perverso em sua malignidade.
Alguns pontos têm chamado a minha atenção no desenrolar da trama. Um, a virtual ausência de Deus. Vários personagens têm fé, oram, leem e citam a Bíblia. Mas a narrativa parece apontar para a fé como inútil. Orações não são respondidas.
Outro, a questão moral do assassinato. Dificilmente há um capítulo no qual não há uma cena de gente matando gente. Alguns personagens têm trajetórias interessantes neste sentido. Uma é Carol, uma excelente dona de casa, ótima cozinheira e mãe, mas perde o marido que a espancava continuamente e depois, perde a filha. Pelas circunstâncias, Carol se transforma em uma máquina de matar, capaz de fazer inveja a Paul Kersey, o personagem de Charles Bronson na série “Desejo de matar”, megassucesso das décadas de 1970 e 1980. Mas chega um momento em que ela passa a ter peso na consciência, e não consegue se perdoar por matar, mesmo sabendo que o fez para salvar pessoas a quem ama. Em contraste, outros integrantes do grupo, como Michone, Daryl e Rick matam, e não parecem ter o menor incômodo por causa disso. Mas eles não matam por prazer. Fazem-no para proteger o grupo. Já Morgan se torna um pacifista radical, influenciado que foi pelo encontro com um psiquiatra forense, exímio lutador de aikidô, adepto de uma filosofia de vida de inspiração budista. Seguindo estes princípios, toda vida é preciosa, e enquanto há vida, há esperança de mudança, para melhor. Mas eis que chega um momento em que até Morgan se vê obrigado a matar um dos Salvadores, para salvar a vida de Carol. Estas situações nos fazem pensar em questões sérias como o assassinato em legítima defesa, ou em defesa de uma pessoa amada. É lícito matar um psicopata assassino em série para que ele não cometa mais crimes? Ou deve-se esperar para que ele mude seu modo de ser? TWD faz pensar também na questão da “guerra justa”, um problema para o cristianismo desde o princípio de sua trajetória. Afinal, o cristianismo é ou não pacifista? Agostinho desenvolveu os princípios que entendeu justificariam uma guerra justa. Ao longo dos séculos esta questão tem sido divisiva para os cristãos. Não há resposta fácil ou pré-fabricada para este problema ético e moral.
TWD apresenta lições impressionantes de amizade, cuidado mútuo, lealdade, fidelidade, altruísmo, sacrifício em prol do outro, superação de obstáculos aparentemente intransponíveis, tendo como motivação uma esperança inquebrantável. Apresenta também as possibilidades mais sombrias e assustadoras do ser humano, como covardia, crueldade pura e simples, violência pelo prazer da violência, alegria mórbida em ver o sofrimento alheio, quando homens se transformam em demônios encarnados, tudo isto, certamente por opção do diretor, envolto em um cinismo irritante da parte dos vilões que se sucedem na trama. As situações que a narrativa apresenta na maior parte das vezes são fortes o bastante para levar qualquer um a enlouquecer.
Pelo sucesso que a série vem fazendo no mundo inteiro é razoável admitir que ainda virão muitas temporadas. Como não li as HQ’s, não sei se há um fim definitivo da trama, e se tiver, como será. A série não é recomendada para quem tem estômago fraco ou são facilmente impressionáveis. Algumas das cenas dos zumbis são de um realismo impressionante.
Não dá pra saber por quanto tempo ainda a série será exibida, quantas temporadas ainda serão produzidas. Enquanto outubro não chega, e não sabemos quem do grupo do Rick foi morto pelo Negan (há um sem número de vídeos no Youtube e grupos de discussão no Facebook com teorias a respeito), temos uma pausa para pensar nas questões difíceis que a narrativa de TWD nos sugere – e se enfrentarmos uma situação de desespero absoluto? E se não pudermos confiar nas pessoas à nossa volta? E se nossas orações não forem respondidas? Como agir se estivermos em uma situação que mais se parece um quadro de Hieronymus Bosch, aquele pintor holandês que viveu na virada do século XV para o XVI, famoso por suas pinturas surreais (Salvador Dali deve ter se inspirado nele), bizarras, talvez a melhor representação visual de um pesadelo produzida pela arte? Vale a pena manter uma ética na vida e se preocupar com o próximo? Ou é melhor pensar apenas na própria sobrevivência?
Creio que a grande luta de TWD é a luta pela manutenção da sanidade e da dignidade em um mundo caótico, o peso de aceitar e assumir as consequências das decisões tomadas, a luta por insistir em esperar contra a esperança. Se pararmos para pensar, veremos que não precisamos de zumbis horripilantes andando por aí tentando nos pegar. A vida é cheia de obstáculos de todo tipo, muitos destes desesperadores. E aí surge a pergunta constante que não quer e não pode calar: como viveremos?
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É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, onde coordena o GPRA – Grupo de Pesquisa Religião e Arte.
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